Numa aldeia do Congo, um pescador sai todas as manhãs para o mar sobraçando, com as redes, um livro de poemas. Regressa a casa com um par de peixes e o ar de extenuado de quem presenciou um prodígio. Os vizinhos admiram-se com o seu lucro nunca mais do que humilde e com a sua expressão cansada. Se lhe perguntam porque não procura servir-se de outras redes ou de mergulhá-las noutras águas, o pescador responde invariavelmente que «A perfeição é a arte da espera.»
No leste da Escócia, em Aberdeen, o vento e a chuva são infalíveis nesta altura do ano. Um e outra costumam fustigar as janelas a maior parte do dia, razão por que uma das grandes necessidades aqui é o bocado entre turnos do trabalho, ou então à noite, que se passa ao lado de um par de canecas altas de cerveja, chips e caraoque. Os pubs existem por toda a parte, muitas vezes porta sim, porta sim.
Nélida viajou de Espanha para estudar os artefactos e incisões nas rochas na aldeia de Rhynie e para rever e documentar-se sobre as maravilhosas, antiquíssimas e enigmáticas esferas de pedra que nas últimas décadas foram desenterradas do chão misterioso desta e de outras regiões limítrofes, aumentando a aura que desde Júlio César esconde este país do mundo fácil e óbvio do saber.
Em mau inglês pediu e foi servida. A língua franca tem ainda muito que se lhe diga. Alguém pusera a tocar The Whole of The Moon numa Jukebox anacrónica. Almoçava-se, bebia-se e fumava-se alegremente em linha, em cadeiras altas, rostos desconhecidos frente a frente, nos dois lados da simétrica bancada, separados pelo exército de galheteiros, saleiros e pimenteiros e pelas inevitáveis bases dos copos. Discutia-se tudo, ao mesmo tempo, em pares quase sempre, às vezes em grupo, um falando todos ouvindo, como nos tempos comunitários das tabernas: futebol, caça às orcas, fraudes eleitorais, pornografia. Nada é mais prazenteiro que uma boa conversa, mantida à custa do álcool e de um prato de bangers and mash ou de surf and turf ou mesmo haggis, seguido de um victoria sponge cake ou de um scone com geleia.
Nélida explicou a sua paixão. Um dos comensais sorriu: para ele a História era como a Matemática, uma treta.
– Como assim?
– Vocês historiadores passam a vida a tentar dizer-nos que o passado foi assim, deixando de fora informações que nunca poderão ter e que seriam preciosas para que soubéssemos como tudo aconteceu realmente…
– O senhor exagera. A História baseia-se em provas, em testemunhos, em evidências, em documentos, caramba…
– E que importa dizer que foi assim, se não for capaz de explicar todo o mecanismo de emoções, todas as fases de um pensamento, todo o cenário de uma batalha, todas as perspetivas de uma revolução, toda a verdade escondida na mentira de uma omissão e de uma peça a menos?
– Meu caro senhor, isso é como o paradoxo de Tarski.
– Ora, explique lá!
– Qualquer coisa como isto: entre o zero e o um há todos os números. Se os números são infinitos, então será logicamente impossível avançar de um número para o outro. E, no entanto, veja: tenho aqui um pedaço de pudim. – Engoliu-o – E agora tenho zero pedaços de pudim. Meu caro, a História é prática, é razoável e tem imenso charme!
Todos em volta se riram. Muito bem respondido. Pediu-se uma rodada de Belhaven para celebrar. Nélida recusou. Agora só o café.
Quem assistia sem participar olhava o céu fusco, de uma cor esverdeada e suja, que caía sobre os telhados e sobre a marina. Ao longe, um navio de carga descia a Edimburgo ou a Newcastle. Também ele parecia cheio de sono e sem vontade de tagarelar.
Um homem amava perdidamente uma mulher, mesmo não sendo correspondido, apesar de saber que jamais ela o amaria, ainda que admitisse que o amor é muitas vezes um veneno capaz de consumir-nos. Amou-a anos a fio até começar a esquecer-se de amar, porque tudo na vida esquece e cai, como caem (desfeitas em pó) as flores muito belas que nos ofuscam.
Um dia, o homem voltou a ver a mulher. Estava tão envelhecida e distante do rosto com que sonhara interminavelmente nas suas noites da juventude que não pôde deixar de sentir-se fascinado: para se libertar do sofrimento, ele antigamente punha-se a imaginá-la velha e feia. Agora, por piedade, esforçava por recordar-se da sua beleza aos vinte anos.
Um jovem humorista romeno tentou sem sucesso, ao longo da noite, divertir uma plateia na capital do seu país. Usou algumas das suas melhores armas, como a sátira inteligente, o burlesco absurdo ou a paródia. Em vão procurou ridicularizar-se a si mesmo, porque a assistência se não manifestava, o que o fulminou.
Decidiu procurar então a ajuda de um bar, onde expôs o sucedido. Um professor de literatura confessou a mesma estupefação. Dias antes lera para a sua turma do primeiro ano cenas hilariantes do Anfitrião, mas ninguém se rira. Como era possível?
Os dois homens saíram juntos. Já na rua viram um velho desdentado a girar a manivela de um realejo. Tinha um chapéu de coco e fizera prender à volta do pescoço uma grande túlipa amarela, iguais às que tinha num cesto à sua frente, porque era um vendedor-pedinte. Balançava-lhe no nariz uma argola dourada e nas pernas uns corsários listrados, demasiados grandes e demasiados largos, sobre os quais vestia uma camisa com enormes colarinhos azuis. Nunca o tinham visto, pelo que a visão do exótico e anacrónico homem, misturada com a cançoneta circense que saía do mecanismo, produziu neles uma gargalhada.
O velho, tomado pela indignação, interrompeu-se para se pôr a insultá-los. Os transeuntes, repletos de indignação também, apoiavam-no. As imprecações pareceram-lhes tão ébrias e tão roufenhas que o riso cresceu. Humorista e professor punham a mão na barriga e limpavam as lágrimas, quando a voz do velho os fez voltar. Foram então agraciados com um penico cheio de urina.
Houve aplausos dos circunstantes. Mas, entre eles, nem um sorriso.
O outro, muito envelhecido, os olhos apequenados pela miopia, a tez escavadíssima entre rugas, levantou a custo o rosto, como quem desperta a custo de um sonho, e redarguiu:
– Nossa irmã há muito que está morta!
Fora, no jardinzinho, flocos de neve queimavam o corpo embalsamado dos agapantos. A brisa, não menos álgida que nos dias anteriores, varria o claustro, penetrava nas frestas, impunha na sacristia e em torno da madeira lavrada um ar desolador, inabitável, cruel.
Manuel, com as mãos uma sobre a outra, arrastava-se pelo deambulatório, às voltas. Observava-o de longe o dominicano com quem havia instantes trocara a dúzia de palavras. Madalena de Vilhena morrera. Parecia impossível aquele nome, tão vago e traiçoeiro agora como a memória que se tem de um sonho. Manuel pisava com as cambadas sandálias nomes e números gravados em lajes, ecos de gente que viveu, que existiu, que possuiu certezas, que alimentou cobiças, e crenças, que decerto como ele se penhorou a um amor terreno, que como ele sofreu o piso insuportável do silêncio, que lentamente como ele definhou até confundir verdades e mentiras, realidade e fantasia…
Tantas mortes: Maria, Madalena, ele próprio. Madalena morrera… Que significava morrer, se morta estava ela já tanto havia tempo, como morto e morrendo andava ele, sem que a misericórdia de Deus tornasse mais breve, mais abrupta, mais feliz a pedra do túmulo.
Somente o outro, que não quisera morrer, vivia ainda. Grande prodígio o sustinha nesta vida.
Manuel colocou sobre uma peanha o seu livro de orações. Depois abriu uma das portas ogivais do transepto. Precisava de respirar esse ar frio que tudo aquieta. No íntimo da sua alma, impossíveis como brasas de uma noite nunca apagada, as emoções regressavam.
Aos oitenta e cinco anos. Quem poderia imaginá-lo?
O retábulo (um pequeno painel em três partes, com a Virgem e o Menino ao centro e anjos nos volantes direito e esquerdo) foi descoberto no interior de uma pequena igreja românica de meados do século XIII.
O caruncho absorvera de tal forma a madeira e a pátina as cores e firmeza das santas figuras que a paróquia desistira havia muito desse objeto como se de lixo sagrado se tratasse. Em diversas ocasiões, podia deduzir-se do rol de “baixas” de sucessivos inventários, fora a peça despromovida pela ignorância dos zeladores (especialmente após o terramoto de fevereiro de 1969) a entulho, junto com infindáveis baldes de talha esmagada e vitrais partidos.
Ainda assim, ninguém sabia explicar bem como, o retabulozinho que sofria de carcomas e padecera de gretamentos de calor e mofos de humidades, que padecera da incúria secular dos homens e do sagrado aborrecimento divino, foi salvo para reaparecer na gaveta de um pesado armário de sacristia, embrulhado num pano de estamenha, sem maior cuidado que o não estar exposto ao relento e ao convite displicente dos ratos.
A técnica, Andreza Merino, uma estagiária da capital, pertencente a uma das brigadas móveis, descobriu-o acidentalmente durante uma visita ao norte, quando, no âmbito do seu doutoramento, demandava por uma escultura de São Romão de Antioquia. Ninguém ali se opôs a que levasse ela consigo a impensável relíquia, sobretudo depois da promessa que fez de interceder junto do Ministério para salvar o negligenciadíssimo recheio do templo medieval: os sinos e telhas cambando miseravelmente, o soalho carcomido e rangente, os caixotins e predelas manchados, os altares rachados, a talha sem brilho, os serafins desasados e repletos de úlceras, o Menino Jesus de Praga invadido pela lepra, o coração da Senhora das Dores negro das setes espadas que a ferrugem venceu.
A jovem, calçando luvas de proteção, avaliou e fotografou então cuidadosamente o ícone tresdobrado. Espantou-se da profunda degradação das tábuas, do entalhamento, da pintura. A imagem tripartida aparecia como uma planície de terra árida, repleta de gretas, aqui e além (em crateras terríveis) desprovida já de tinta, semelhante no seu todo a um moribundo repleto de chagas.
Com a ajuda de uma pinça, Andreza retirou os fragmentos avulsos e mal seguros, dispondo-os na mesa de trabalho pela mesma ordem em que surgiam no tabuleiro. Eram como lascas inúteis e insoldáveis. Depois, usando uma sonda, calculou o grau de resistência e fixidez da restante pintura. Raspou meticulosamente, com um bisturi, a base de madeira aonde haveriam de regressar os pedaços soltos, de forma a limpá-la do gesso e dos restos de cola. Larvas fossilizadas de besouro, que urgia remover, haviam formado cavidades. Sobre elas, nas fendas entre as tábuas, sob as finas camadas de madeira pintada, para dentro das monstruosas falhas, injetou uma solução de resina (mais tarde aplicaria outra de solvente ativo). Fez no reverso correr uma trincha embebida num líquido idêntico para saturar os poros e as galerias escavados pelos daninhos insetos. Demorou dias nesta simples operação de reforçar e estabilizar a estrutura do painel.
Depois derramou, sobre as zonas nascidas da decapagem e servindo-se de uma espátula, uma solução esbranquiçada de gesso acrílico. Deixou-a secar e repetiu duas vezes o processo. Só então pôde pincelá-las com uma espécie de goma transparente e, como quem reconstitui um puzzle, devolver ao seu lugar de origem cada pedaço. Em seguida, de molde a pressionar e a reuni-los à madeira original, aplicou sobre películas acamadas de silicone e feltro a ponta de um ferro quente. Tinham passado duas semanas.
Experimentou, seguidamente, em copos graduados de vidro, usando pipetas e cotonetes, teste após teste, a dosagem certa de metiletilcetona para iniciar a limpeza das tintas. Paulatina, maravilhosamente, como um rosto que de súbito se vê iluminado e aquecido pelo sol de uma manhã de março, principiou a renascer nos movimentos cautelosos dos seus dedos, uma Virgem de cabelos loiros e ondulados, coberta por um manto azul esverdeado e uma auréola diáfana, segurando com a mão esquerda Jesus e poisando a direita sobre um livro aberto, esplendorosamente preenchido de linhas e góticas inscrições. O Menino, nédio, rosado, cingido já pela coroa de espinhos que o haveria de atormentar, voltava o rosto sobre a mãe num misto de interrogação e piedade, como se também ele soubesse já que o seu belo rosto jovem (na casta expressão que Botticelli ensinou) teria de enrugar e envelhecer na armadilha do sofrimento que Deus lhe destinava. Era de resto uma cena doméstica, como a mesa e o cesto de coloridos frutos deixava concluir. Depois, aos poucos, a cada movimento circular do algodão e do produto gelatinoso, também aos anjos tutelares (um, à direita, tocando uma pandeireta; outro, à esquerda, soprando para uma flauta de pã) foi restituída a luz primitiva. Merino usou, por fim, um verniz para proteger e separar o cromado primitivo das intervenções que viessem posteriormente a ser feitas.
Com paciência, com amor, a jovem técnica passou ao alto relevo envolvente, usando todos os instrumentos e materiais de douradura de que pôde servir-se. Com um coxim cortou pequenos segmentos de folhas de ouro e com uma paleta fê-los cair sobre os rebordos. Depois, com um pincel, servindo-se de uma pequena tina onde misturara pigmentos diversos de mica, deslizou sobre os rebordos restaurando o rútilo primitivo. O brilho era agora tão belo e tão veemente que Merino confirmou a sua suspeita: a peça que tinha em mãos seguia a escola de Gregório Lopes, em tudo similar ao óleo que o artista deixou na charola de um dos altares do Convento de Tomar. Era uma obra-prima!
Faltava ainda, contudo, recuperar as perdas na imagem, os pedaços que o tempo fizera desaparecer. Andreza colocou o retábulo sobre um cavalete e recorrendo aos conhecimentos do tratteggio principiou, repetindo incansavelmente as tentativas de seleção cromática, a preencher os lapsos, a completar os traços interrompidos, a tornar una, prístina e perfeita a cena retratada.
Quando ao cabo de sete meses deu por concluído o restauro, aplicados os produtos finais de fixação e proteção da madeira e das tintas, designadamente um verniz ultravioleta 292 para estabilização do anverso, deixou-se invadir pelo sentimento de humildade e gratidão de que tanto falava o seu orientador no Departamento de Conservação e Restauro.
Documentou profusamente o trabalho feito. Depois viajou de novo ao norte do país. Na paróquia discutiu-se muito o lugar onde exibir o tríptico. O padre desconfiou dos ladrões, o sacristão suspeitou do telhado ameaçador, as beatas lamentaram a pequenez física do retábulo, toda a gente se esqueceu de agradecer a Andreza Merino, a quem de resto, se sobejava o talento, o devia a Nosso Senhor.
Teodorico, o Rei tinha-o mandado chamar e ele foi. Três dias de jornada até perto da capital, até à praia onde o esperava um ror de gente. O desgrenhado eremita entrou no areal, trajando farrapos, segurando um longo cajado, sem um esgar de ansiedade, medo ou hesitação. À medida que avançava para o baldaquino ou tenda real abria-se à sua frente uma clareira de espaço e de silêncio. Por fim, João deteve-se diante do monarca.
Teodorico levantou-se impressionado e deu um pequeno passo na sua direção, mas o monge barbudo recuou um passo maior ainda. Depois, em modo de compasso, o monge escreveu com o cajado um círculo na areia. Ninguém poderia nele entrar, sob pena de extrema maldição e vergonha para a posteridade. O bispo enojou-se do cheiro e do aspeto dos seus andrajos, os nobres arregalaram os olhos, o povo sussurrou.
Teodorico sentou-se e disse:
– Bom homem, agradeço que tenhas vindo. Há muito que te procuro. Os meus batedores trouxeram a boa notícia de que vinhas. Sei da tua santidade, conto com ela para que me ilumines o pensamento!
Os guardas trouxeram então, atados e sujos, sem sinal da anterior opulência e de magnificência, o deposto Almostancir e seis dos seus filhos, califa e senhores das ricas províncias do sul, terras ímpias e infiéis, em cujos palácios se cultivava agora o hábito de lançar seguidores da religião de Cristo a covis de leões e de víboras.
Teodorico não sabia que destino dar a tais prisioneiros. Confundia-o o amor devido ao próximo e o ódio merecido a estes distantíssimos inimigos da fé. Dar-lhes a morte atentava contra os preceitos, deixá-los vivos contra a vitória dos seus exércitos e a segurança do seu império.
– Este homem, rei nascido e agora execrado, matou impiedosamente, com ódio absoluto, incontáveis dos nossos irmãos. Quis a mão de Deus que se fizesse justiça. Tu, o mais desapegado dos filhos de Deus, que escolheste as montanhas para refúgio de todos os perigos do mundo, dirás o que fazer com ele e com os seus descendentes!
O monge ouviu estas e todas as palavras de Teodorico.
– Escutei as palavras do nosso bispo (o bispo afetou uma vénia ao ser apontado pelo rei), escutei as palavras dos meus generais (os chefes militares endireitaram mais o tronco), escutei os homens mais sensatos de entre os mesteirais e camponeses (os representantes do povo ergueram orgulhosamente o rosto), mas em boa verdade o digo: Deus por ti falará!
Viviam-se tempos agónicos, apocalípticos. Nunca como então, no virar do milénio, se desejara com tal veemência o ouro, em lado nenhum como ali se desprezava tanto o sagrado exercício de Paulo de Tebas, Antão ou Macário, santos anacoretas. Era preciso que as Escriturasvoltassem a ser lidas, era preciso que as palavras de Jesus voltassem a soar, nesse terrível século de lutas, limpas e desembestadas, como soaram outrora nas praias da Judeia.
O eremita olhou o rei nos olhos, profundamente, demoradamente, afetivamente. Depois sentou-se no meio do círculo, fechou os olhos, cruzou as pernas, colocou sobre elas o bordão e permaneceu imóvel, ausente, sem uma palavra, durante muito tempo. Teodorico, inquieto, escutava os cochichos crescentes dos conselheiros, o murmurar da multidão, o abespinhar das ondas, o grito selvagem das gaivotas.
Por fim, cansado, impaciente, cheio de tédio, perguntou.
– Então?
O asceta abriu os olhos de novo, levantou-se, fitou o céu e, brandindo o cajado, declarou:
– Porque me perguntas, Teodorico, o que tu próprio sabes já?
O corpo dos prisioneiros pendia, exausto, macerado, sem esperança. Teodorico, o Rei voltou a inquirir.
– Como podes tu saber o que eu sei?
– Foste ungido. A tua semente nasceu da semente d’Aquele que entre nós viveu um dia, as palavras d’Ele habitam as tuas palavras, o que Ele disse tu o dirás… Não perguntes mais!
Depois, perfurando pelo meio da multidão, pelo mesmo caminho por onde veio, o eremita partiu, infundindo nela o mesmo temor de antes. Afastavam-se os homens à passagem, juntavam as mulheres curiosas cabeças nas suas costas. Em breve desaparecia, sumindo-se na floresta que havia de o levar aos lugares trogloditas onde gastava os seus dias.
O monge dissera nada e tudo dissera. As suas palavras eram a afirmação de uma ideia, mas podiam sê-lo também da ideia contrária. Teodorico, perplexo, quis saber o que pensavam os outros da enigmática resposta do monge João.
Era um doido, declarou o anelado bispo: a resposta dele era um opróbrio, uma estultice, uma marca do demónio. O que o eremita quis dizer era óbvio, defenderam os generais, olho por olho, dente por dente: aqueles cães moiros mereciam ser atirados a um poço e deixados apodrecer à fome e ao frio! Isso não, corrigiram os homens do povo, devia era negociar-se a sua vida, exigir-se os resgates devidos a um rei e a príncipes: se o nosso dinheiro é útil, o do inimigo é-o duas vezes mais, para curar as feridas da guerra!
Teodorico levantou-se. Todos se ajoelharam.
Era mister que olhasse para o fundo, para dentro, para onde não podia mais enganar-se. Ele sabia, sim. O monge acertara. O paradoxo é inerente à condição de mandar.
Beijou a cruz que trazia no peito e ergueu-a para que os infiéis conhecessem o novo poder. Depois, brandindo a espada fê-la descer sobre as odiosas cordas que sujeitavam os cativos. Libertou-os, sem saber porque o fazia ou com que riscos. Ordenou que os montassem nos cavalos saqueados.
E eles foram, pelo mesmo caminho do eremita, a caminho da floresta. Ninguém sabia em direção a que deserto.