O rapaz gostava de coisas antigas. Todo ele, digamo-lo, caía para o antiquado. A começar pelo pullover sem mangas, de um tom amarelo pastel. Não havia uma única mulher no escritório que o não achasse piroso.
Depois havia aquela coisa entre o nariz e o lábio superior, aquela pelagem a parecer-se com um bigode, ou um buço, e que o tornava mais feio e antipático. E as raras palavras que dirigia aos colegas não ajudavam:
– Pode, por obséquio, arremessar esse agrafador na minha direção?
Era realmente muito desagradável. Ser-se interpelado de um modo cortês, à antiga, dificilmente pode aceitar-se num espaço onde crápulas e devassas se prestam todos os dias a uma feroz demonstração de animalidade.
Ponhamo-nos de acordo: o escritório é um lugar errado para se pedir o que quer que seja por favor. Ainda menos com palavras que ninguém entende.
O rapaz possuía outro grande defeito. Chamava-se Valdemiro. Valdemiro Perestrelo. Não convém hoje que se seja chamado de Valdemiro e Perestrelo. Não perguntemos porquê.
Outra disformidade merece ser assinalada. Embora fosse calmo, o rapaz escrevia demasiado depressa. Matraqueava o teclado do computador com força, com vigor, com fanatismo, num estilo que importunava toda a gente.
O chefe de departamento alertou-o em várias ocasiões para os perigos de uma escrita rápida:
– Fixe o que lhe vou dizer, Perestrelo: não me escreva coisas como “Recebemos com agrado o seu pedido” apagando uma letra na palavra pedido, entendeu? Nem que “Vamos verificar a sua conta” com uma letra a menos na palavra conta. Tem ido malta para o olho de rua por causa deste tipo de equívocos…
Mas o rapaz não se enganava. Possuía treino e devoção, outro grande mal nos dias que correm.
Habitava um apartamento modesto cheia de objetos obsoletos. Dedicava-se a traduzir Shakespeare. Fazia-o de um modo bastante simples: primeiro espreitava o texto original, depois repetia-o sotto voce, a seguir martelava na máquina de escrever a sua versão. Não usava dicionário.
A máquina de que se servia – uma pesadíssima Remington, modelo 12 de 1930 – nas noites mais criativas do rapaz prensava o papel num delírio que não deixava ninguém dormir no prédio.
O treino de Valdemiro vinha daqui.
Datilografava sem necessidade de conferir as teclas redondas. Fazia-o depressa e bem. Limitava-se a corrigir de quando em quando a posição dos oculinhos redondos. No fundo, alimentava o seu modo de vida, que nos parece tão bom como qualquer outro.
Foi, por isso, um espanto ouvir-lhe na manhã do dia de anteontem o insulto.
O chefe de que falámos atrás, impacientou-se com qualquer coisa. Incomodou toda a gente no escritório e toda a gente no escritório descarregou no rapaz, de tendência calado e sorumbático.
O insulto é uma prova corriqueira da nossa fraqueza. Ou das nossas fraquezas.
Esquecemos – e não será desprezível mencioná-lo – que a máquina de escrever de Valdemiro Perestrelo era gaga. Gaguejava nos P e nos A. Por vezes, quando o seu dedo tradutor apertava contra as respetivas teclas, havia um soluço e saíam dois caracteres juntos, ambos mal desenhados. Isso, admitamos, aborrece. Isso estragava, se não a boa disposição, o ótimo papel munken de que o rapaz se servia.
Porque lembramos isto? Porque a nossa cabeça se enreda amiúde em aborrecimentos de que nos não livramos facilmente.
De maneira que o colega mais chegado lhe disse algo como isto:
– Ó pancrácio, tem lá cuidado ou ainda rebentas a mesa!
De maneira que Valdemiro se interrompeu uns vinte segundos e, tomado por uma ira mansa, respondeu a direito e sem rodeios:
– Peço-lhe encarecidamente, Rui Maciel, que vá à berdamerda…
Um insulto, ainda que proferido por alguém desacostumado de os proferir, é sempre motivo de coletiva indignação. Assinalemos aqui o despropósito: não se manda ninguém à berdamerda, menos ainda quando se traduz Shakespeare.
Não há gosto que mais me anime do que rir com vontade. Nestes débeis intervalos de entre-inverno-e-primavera deu-me para remexer na papelada do avô. Já antes o havia dito, é um dossiê muito baralhado de ideias, mas cheio de realismo e de graça.
Dou por mim a partilhar outra das suas histórias.
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Leitor, e se nos aprouvesse contar num livro a História Universal das Bebedeiras? Nele teria de constar, evidentemente, a carraspana célebre de Noé, o condutor da Arca. E também as borracheiras em que se deixaram apanhar, tanto como Hércules como Sansão, dois desgraçados cheios de força e pouco juízo. E também as cardinas de Li Bai e de Rumi (não sei se mais fabricantes de poesia, se bebedores de néctar de Baco). Convinha que, igualmente, as do meu cunhado Francisco (precocemente reduzido à condição de ex-motorista, após terem confiscado a licença que lhe permitia conduzir o camião e a semi-trailer – “semitrel” como ele dizia – e tudo por se obstinar a fazê-los embater contra tudo o que fosse matéria dura e merecedora de estar em pé).
Grande ultraje seria – se não peco por imodéstia – não incluir nesse tratado as minhas próprias bezanas ao longo da formatura, uma em particular, quando etilizado em extremo me levaram aos cuidados de uma enfermeira amiga, que me disse “Ai, meu menino, tu és tão bonito, mas estás tão bêbedo”.
Mas isso, leitor amigo, isso são bagatelas se cotejadas com as digníssimas pielas da Mena e do Miro. Quem eram a Mena e o Miro perguntarás e com razão. Eram o mais bem-aventurado casal de alcoólicos que conheci nestes rugosos anos de vida e de que vale – de que vale muito – ocuparmos esta pena por alguns instantes.
Ela, Maria Filomena Rodrigues Feital, nascida em 16 de março de 1938, na freguesia de Antime, concelho de Fafe. Ele, Casimiro Manuel da Costa Fontão, nascido em 16 de março de 1938, na freguesia de Darque, nos arredores de Viana do Castelo. Terras excelentes as duas, paróquias de muitos devotos cristãos e boa maternidade de ilustres e incontáveis ébrios e ébrias.
Não será de pouca monta a coincidência ou a simbologia da data em que os viu o mundo pela primeira vez. Investiga, leitor ocioso, e sabê-lo-ás.
Nem o terem-se conhecido na Feira de Barcelos, numa tenda de cacaria. Havemos de convir: que melhor prenúncio de vida a dois do que comprarem para enxoval um cantarozinho pintado?
Gostaram um do outro, casaram, nunca tiveram filhos. Entendiam-se como o vento e o fogo, especialmente à quarta-feira quando mergulhavam na Tasca da Porcina e logo o aroma do fígado frito em cebolada os agarrava a ambos pelo colarinho e os obrigava a sentarem-se a uma mesa lá no canto, à beira dos presuntos pendurados.
Era uma romaria de beberrões. Entrava-se, encomendava-se a broa, as azeitonas, o fígado frito (o dita da cebolada ou, em lugar dele, o bacalhau – desfiado cru, assado às postas, frito com ovo) e pedia-se, sobretudo, a vinhaça.
Berrava o Miro pelo par de quartilhos:
– Venham dois: um pra agora, outro pra depois!
Era a sua maneira de começar, a sua frase de guerra. E chegava a vinhaça, a vinhaça magnífica que fazia espumar canecas e tingir as malgas.
A Mena, cheia de sede, gostava que ele enchesse até cima. Só dizia “bonda!” quando o líquido atingia os beiços esbotenados do barro. Dava um beijinho à tigela, acariciava-a um pouco sobre a mesa de pinho antes de a erguer com jeito. A seguir punha-se a incliná-la sobre os seus próprios beiços arreganhados e, zás, descia tudo goela abaixo num abrir e fechar de olhos. A Mena regougava, dava com a língua estalos de aprovação, atirava para o lado a contrassenha blasfema:
– Se este é o sangue de Cristo, bendito seja quem no matou!
Nunca a Mena teve forças para trabalhar. Jamais o Miro atinou com emprego que pudesse manter por muito tempo.
Andou pelas fábricas têxteis, mas enganava-se muito nos fios. Carregou a massa das betoneiras, mas estorvava nas obras. Nos talhos ninguém lhe dava emprego, que afiados são os cutelos e magros os dedos são. Somente na terra, na poética lavoura, arranjava ele serviço às vezes como jornaleiro, recebendo vinte e cinco, trinta, cinquenta escudos por semana, conforme o préstimo e a bondade do agricultor contratante.
O problema era sempre o mesmo. O Miro arava, abria valeiras, semeava e plantava, estrumava e sachava, mondava e colhia, mas a cabeça portava-se mal, a cabeça ardia-lhe como ferro ao sol. Exigia-lhe sumo de uva a toda a hora, tanto dele no bucho como de ar nos pulmões.
Foi assim que uma vez se voltou sem mais nem menos para a Dona Antoninha, a fidalga da Luz, e com ar sofrido lhe rogou:
– Ó minha senhora, pelas almas! Dê-me um copo de vinho, que eu já não me tenho em mim…
Era um escândalo.
O Miro sorvia ruidosamente o copo alto, a malga funda, a caneca bem medida. Era como se morresse à míngua, como se comesse vinho, os queixos muito sujos, a barba ensopada, a camisa sarapintada de nódoas. Bebia rubro do esforço, vermelho da secura.
Daí para a frente era o desastre. A fidalga vociferava:
– Aquele homem põe-me a alma no inferno. Aquele homem só faz bordel…
“Fazer bordel” era o mesmo que trocar sementes, esquecer a ferramenta no meio dos campos, deixar a água fluir pelos canais errados, não trancar a porta da pocilga. Pior, muito pior do que isto, era pregar sustos à fidalga.
Leitor atento, queres exemplos, não é assim?
Hesito qual deles dar-te, visto que não foram poucos os que testaram a paciência da pobre senhora. Talvez este caso, que é de boa índole. E se dentro dele escutas já o assobio do Miro, não julgues que a Mena ficou de fora.
Em agradecimento de certo obséquio que realizou o fidalgo a gente de fora da freguesia, ofereceram em vésperas de S. João um anho a Dona Antoninha, para o assado.
Foi o bicho posto nas catacumbas do solar, preso numa corte feita de improviso, à espera que lhe dessem um destino. Precisavam de alguém para o matar e de alguém para o esfolar, dado que nem as criadas da casa conseguiam isto, nem os criados estavam para aquilo. Chamaram, portanto, o Miro e a Mena.
O animal era muito bonito, coberto – como não podia deixar de ser – pelo lanoso macio de todos os espécimes da sua espécie, balindo a todos os que lhe afagavam o pelo como a pedir misericórdia, igual a uma figura de presépio.
A Menina Constança, a fidalga mais nova, afligia-se. A Menina Rita, a fidalga mais velha, afastou-se para não ter de olhar e ouvir. As criadas amparavam mal as lágrimas, de tal modo a cena metia dó. Apenas o Miro, que havia emborcado um par de cálices de vinho do porto e outros tantos de aguardente, parecia saber o que fazer – ele e a Mena, que afiava as facas e tinha já duas panelas com água a ferver e um alguidar grande de barro com rodelas de limão.
– Segura-lhes nos cornos, Miro!
– O rais ta parta, Mena. Este peludo tem cornos, por um acaso?
O Miro desferiu-lhe uma marretada na cabeça, que assim se matavam os anhos. O animal tombou. Estava feito! Dona Antoninha, vencendo a relutância, espreitava do eirado. A Mena arrastou-o, deixou-o junto do alguidar, porque queria acabar de amolar as facas. Mas eis que num ápice o anho se levantou e se pôs a barregar outra vez.
– Ai, meu Deus! – berrou a fidalga.
– Ai, meu Deus! – afligiram-se as criadas.
– Ai, meu Deus! – disse o Custodinho, neto da fidalga, que nessa altura estudava no Seminário de Braga e tinha vindo para a missa da solenidade de S. João Batista.
A Mena, já muito emperrada na voz e com os olhos a luzir, disparou imprecações contra o matador incompetente. O Miro, sem se importar com a consternação geral, emendou a mão e acabou à segunda o serviço.
– Ó minha senhora, não se aflija! Não se aflija, digo-lhe eu! Estes bichos são mesmo assim, tanto estão mortos, como estão vivos…
Sei de fonte lídima que não se anho assado nessa ocasião no solar da Luz, tamanha foi a repulsa e tão grande a lembrança do bicho morto-vivo.
Foram os serviços do Miro e da Mena dispensados, com natural azedume e muitos ralhos à mistura.
Se a consciência e o sentido da justiça tivessem imperado, havia a fidalga de arrepender-se e pedir desculpa ainda por cima. Cá reza o povo, e com bastante arrimo da verdade, que “Tanta culpa tem o bêbedo como o taberneiro: se um é o lume, o outro é o fogareiro”.
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Está a história pouquíssimo rabiscada no caderno do avô, redigida num estilo, no itálico da sua caligrafia habitual. Data não tem, fundo de verdade talvez tenha. Pergunto-me amiúde porque nunca os terá publicado, se tão melhores são que os meus!
Em Albitreccia, a meio do vilarejo, numa colina sobre o bosque, ergue-se como uma ilhota de pedra a pequena igreja medieval. Ou o que dela sobrou.
Os séculos despiram-na impiedosamente. Primeiro dos sinos e do ouro litúrgico, depois das imagens ricamente esculpidas em cedro e dos frescos, por fim dos vitrais e dos telhados, das portas e da pia batismal. Os lavradores chegaram a usá-la para guardarem as reses. Agora nem os vadios ali querem entrar. É só um amontoado de granito e tábuas mal pregadas, dispersas pelo chão barrento.
Um professor estrangeiro afirma que na pedra do tímpano, em letras quase apagadas, se lê que foi consagrada no ano de 701 a Santa Luzia de Siracusa. Com efeito, muitos são aqueles que, saindo ou entrando no bosque nos últimos dias de outono ali veem luzes misteriosas. Falam em centenas de velas acesas, ardendo no meio da solidão.
Os céticos admitem que a lua cheia, reluzindo em folhas húmidas da carvalho, criam esse revérbero magnífico. Especialmente quando as neblinas não ocultam inteiramente a paisagem e ampliam o efeito ótico.
Muitos são aqueles que creem que os mortos ali rezam de novo, uma vez por ano, não sabem se sabe se pela sua, se pela nossa salvação.
Enquanto não poisava completamente a noite, ele ia passando em revista as notas de agenda. Era cada vez mais complicado tê-las organizadas na memória. O jantar, no fogão, dava mostras de estar quase pronto. No chuveiro terminara o som da água a correr. Daí a nada ela viria juntar-se-lhe.
O tempo do desejo acabara irremediavelmente. Agora, só uma força irresistível, cheia de hipocrisia os colava um ao outro.
Comeram em silêncio. Um silêncio mastigado, interrompido, tilintante. Ela levantou-se e retirou do frigorífico um refrigerante. Quis saber se ele beberia sumo ou vinho ou água.
Às vezes há no modo de perguntar um ódio a que se pode responder apenas com um ódio ainda maior. Quis responder, preferiu não beber coisa nenhuma.
Terminada a refeição, ele levantou-se e trouxe um cestinho com fruta. Descascou uma laranja para si, mas quis dar-lha. Ela recusou. Precisava de telefonar, coisa rápida. Os cafés tirava-os a seguir. Algo lhe vinha ao fundo da alma como uma expectativa, uma adivinhação, um ressentimento.
Limpou tudo, arrumou a mesa, guardou o pão sobrante, devolveu os frascos do ketchup e da mostarda ao frigorífico, varreu a cozinha, passou a esfregona sobre as tijoleiras brancas. Verificou o balde do lixo, achou ser altura de lhe trocar o saco. Desceu à rua, depositou o saco num lugar próprio e subiu. Nessa altura, ela falava ainda, mais baixo, quase abafando a voz.
Ele quis fumar. Já a noite derrubara tudo. Já a cidade afundava no seu torpor de animal morrente. Às vezes o ódio é mais do que um estado. É um convencimento. Digamos, uma salvação.
Por cima da velha mobília, dos lavatórios, da cerâmica, dos fogões, dentro dos quartos e da cozinha, nas casas de banho, pelo meio dos corredores, atravancando, entulhando, asfixiando fardos e fardos de palha, e pó, um pó imenso e fundo, e excrementos de pombos, e urina de ratos. Imunda.
Foi assim que a encontraram Theo e Larissa Minakis, o jovem casal de músicos. Haviam aterrado hora e meia antes em Heraclião, vindos de Frankfurt, depois de quase oito horas de voo desde que deixaram o Aeroporto Internacional John Kennedy. A casa estava imunda e eles exaustos, perplexos, enojados.
– Há anos que aqui ninguém vem. – explicou, dando safanões numa das janelas para as traseiras, o Tio Panos. – A casa, meu filho… Tu sabes, desde que o teu pai partiu, nunca mais cá ninguém veio…
A reputação de Theo como um dos maiores oboístas da sua geração corria mundo. Larissa, a mulher russa com quem casou, granjeara-a tocando harpa, embora encantasse também no violino e até no violoncelo. Ambos pertenciam à Orquestra Filarmónica de Berlim, pertenciam a Camille Saint-Saëns, a Fauré, a Debussy e a Ravel, pertenciam um ao outro, ao mundo inteiro, aos palcos onde a música pudesse sublimemente ser interpretada.
Agora, contornando as velhas paredes da casa, era como se tivessem descido ao mundo impiedoso dos homens. Havia bichos fossilizados no soalho, que os sapatos pisavam como grandes migalhas de pão seco. Havia mascarras nos tetos e nos vidros, pesando como grandes úlceras nos lugares onde existiu outrora brilho e aconchego. Havia teias infinitas e sujas, descendo de todos os ângulos retos de todos as esquinas, ensarilhando-se-lhes no rosto e nas mãos de quem passava. Larissa segurava com esforço um lenço sobre o nariz, disposta a ceder a qualquer instante aos impulsos eméticos provocados por aquele labirinto de lixo.
– Os meus irmãos? – arriscou, desconcertado, o mais novo dos Minakis.
– Nem um vaso de manjerona sobre a campa dos teus pais…
O Tio Panos teve de assoar o nariz e de limpar as lágrimas. Uma vez na rua, via-se uma coluna de pó amarelo a sair do antro aberto.
Theo estendeu os olhos até ao porto de Atherinolakos. Era um pouco maior do que antes, mas igualmente deprimente, com pequenos barcos coloridos ziguezagueando na barra, com as grandes chaminés listradas de vermelho e branco das fábricas em pose militar, com os homenzinhos de barrete e o azul tristonho da praia a rolar diante do betão e do cimento escaldante.
– Ficais em minha casa, filho. É um gosto…
Theo traduziu o convite, a esposa sorriu.
– Tio, não queremos dar-lhe trabalho. De qualquer forma, temos reserva no hotel. Amanhã começaremos a limpar tudo isto.
Era melhor assim. Cortesias para o demo, ninguém ali parecia à vontade.
O Tio Panos não tardou a queixar-se da anca: seria impossível ajudá-los! E o trabalho que os dois tinham pela frente!
– Oh, oh, uma esfrega, filhos…
De resto, o Tio Panos não tinha a certeza se algum dos seus dois rapazes podia ajudar naquele biscate. A fábrica de conservas de Demóstenes, primogénito, Theo desconhecia-o certamente, abrira falência e agora “O bom do teu primo dobra a espinha nos pomares de nectarinas de Messara e de Asterúsia”, terraplanando e metendo estrume, arrancando ervas de sol a sol, quando não colhendo e encaixotando, patrulhando (patrulhando sobretudo) carradas de turcos preguiçosos. O mais novo, Giannis sofria de um tipo raro de doença de pele. Pior do que isso, tinha asma e aquela maleita que nos põem tontos, por causa do ouvidos.
– Ah, Theo, aqui o clima gasta-nos a puta da vida. O melhor é não contares com ninguém para isto, filho. Aqui todos morremos antes do tempo, à conta deste sol, deste sal, desta pobreza infinita. Tu ao menos…
Theo fez um sinal afirmativo com a cabeça. Ele e Larissa não vinham com pressa. Pretendia dedicar-se à memória do pai e da mãe, a única coisa que não podia ser disputada nem desbaratada, a única herança que valia todos os sacrifícios.
O Tio Panos escutou-o de olhos arregalados, sem ripostar.
“Sacrifícios? Que percebia ele de sacrifícios?”
*
Em bom rigor, a cabeça também é uma casa. Possui áreas solares (salas abertas, varandas largas, jardins comunicantes, arrumos fáceis de localizar no tempo, sempre próximos da boca). Possui, por outro lado, as suas gelosias, os seus desvãos, corredores sombrios, portas e escadas interiores, possui caves, compartimentos imersos em nostalgia, lugares de noturnas e infantis e impartilháveis rememorações.
Theo teve de empilhar vários sacos de bagatelas no pátio. A ferrugem consumira grande parte da antiga armação de ferro que emoldurava ainda a ramada e o lugar do poço. Trabalhava sem pressa e sem descanso.
Logo na primeira manhã a mulher chamou a sua atenção para algo encontrado nos fundos do lagar de azeite, soterrado em camadas asfixiantes de serrim. Era uma gaida. A velha gaida familiar!
Theo passou devagar os dedos pelo corpo articulado do instrumento, sentindo com uma excitação assustada a pele de ovelha e a madeira.
– Meu Deus, este objeto vem de longe. Vem de há tanto tempo, Larissa!
Receava alguma escoriação, algum golpe, algum rombo fatal. Mas não. Miraculosamente a gaida permaneceu íntegra e intacta, submersa e protegida pelo entulho. Theo limpou o bocal e levou-o aos lábios. Depois pôs-se a soprar. O som que principiou (vindo das profundezas da casa ou das profundezas da sua memória) era poderoso. Theo sentiu-se recuar centúrias, ou mesmo milénios. Sentiu-se embalado em viagens de barco e atravessar caminhos empoeirados até aldeias de pastores, nos confins de uma montanha. Na lonjura espremida dos dias, aquele som era toda a sua origem, toda a memória da sua gente, da sua coragem, da sua errância, do seu fado. Aquela gaida, mais do que um objeto envelhecido, queimava como um vínculo, ardia como um vulcão acordado.
O fascínio de Larissa era o deslumbramento do marido, mas dificilmente podiam ser o mesmo sentimento.
– O meu pai recebeu-a em herança do avô. Nunca imaginei que tivesse ficado para trás.
Theo explicou a origem balcânica do instrumento, que parecia conter em si o ânimo de um guerreiro invencível e o lamento de um homem eternamente em crise. A toada, que a custo começou, tornou-se um fluxo, um jorro de angústia e de amor, uma manifestação de fé na vida e de veneração pela morte.
Larissa sentia-se subjugada. Que som maravilhoso no meio de tanto esterco!
*
– O teu primo estica até aos cinquenta mil. Nem a casa vale mais do que isso.
– Não a vendo nem por cinco, nem por cinquenta, nem por quinhentos mil…
– Mas, filho, para que hás de querer tu manter de pé este tugúrio?
Não, definitivamente, o Tio Panos não podia compreender aquela estúpida decisão. Theo cortou, como costumava fazer o seu pai, a conversa.
– A decisão está tomada.
Larissa, que pouco entendia de grego, mas que compreendeu todo o diálogo, poisou a mão esquerda sobre a mão direita do marido e encarou com uma carga mal medida de desprezo as fuças do velho tio resmungão. Este sentiu-a, sem dúvida, porque (fincando-se na bengala) imediatamente se ergueu e se encaminhou para a saída.
– Bem. A nossa proposta é esta. Tu, claro está, faz como entenderes… Amanhã mesmo devolvo-te o molho das chaves.
– Não precisa. Todas as portas e janelas serão mudadas. As obras começam em breve.
– E os teus irmãos? Hão de querer por ela alguma coisa, não?
– Com os meus irmãos entendo-me eu. Não se preocupe, tio!
Pelo rosto de Panos Minakis pisou lenta uma sombra imensa, como a que as nuvens fazem na água quando as vemos da janela de um avião.
Então, sem mais palavras, deixou-os.
Theo sentia-se esplendidamente bem-disposto.
Acocorou-se e apertou a polpa dos dedos nas folhas de citronela do vaso que tinha diante de si. Agora que a casa se via desentupida de tudo quanto nela haviam depositado usurpadoramente, usando-a e confundindo-a com uma pocilga, via outra vez o desenho limpo de cada ação familiar. Podia até imaginar o sorriso galhofeiro da mãe, descendo ao pátio com as suas maravilhosas travessas fumegantes, com as suas saladas e as suas espetadas de cabrito. Podia ver a grande mesa que a ramada defendia do sol cheia de gente. Podia ver o irmão Filipos, à esquerda, com o cachimbo de meerschaum, dando grandes fumaças, enquanto folheava os poemas da Ritsos. Podia ver no lado oposto o irmão Andreas, a cardar a superfície pilosa da gaida, acariciando-a como à nuca de uma mulher. Podia ver à cabeceira o pai, Nikos Minakis, erguendo à luz clara de junho um jarro do seu melhor Kotsifali, “O vinho dos imperadores, meus filhos”, dizia antes de o verter num dos copos de cristal que se tiravam do aparador em cada boa ocasião.
Eram uma família orgulhosa. E tinham razões para isso.
*
O reflexo da luz sobre a água transparente do tanque foi a última imagem que Larissa fixou. Sentia-se bem ali. Mas agora tinham de voltar.
Em rigor nunca se deixa Creta. Os homens vão e voltam. Sós ou acompanhados, regressam sempre. Os gregos fazem culminar na chegada todo o caminho para a perfeição. Só atingindo de novo a soleira da porta paterna se compreende o movimento de sair. “Se Ulisses tivesse prescindido da última viagem, não valeria um dracma” dizia a mãe às vezes.
Theo e Larissa consultaram o painel eletrónico. Saíam por tempo indeterminado, convencidos, porém, de que algo novo tinha principiado. Para os gregos, todo o tempo é uma oportunidade de começo.
Ao rodar a gazua na porta principal, o mais novo dos Minakis sentiu o que sentem os filhos empossados de uma missão: nostalgia, arrependimento, esperança e uma dose necessária de soberba. Era de si que precisava a casa. De si e de obras, de gente nova que a continuasse, da gente velha que a não deixasse morrer.
No interior de um saco magnífico de couro italiano, Larissa transportava a primeira memória que aquele lugar fabricou: também na Rússia havia pastores e montanhas e camponeses tresmalhados pelo horizonte. Também na Rússia se chorava de saudade, quando se encontrava, fortuita, uma brecha no destino.
Jean Béraud, Saída das Operárias da Casa Paquin, 1902
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‒ Nestas circunstâncias, o melhor é contar sempre com um segurozinho de acidentes pessoais. – explica o cavalheiro anafado, que enverga um casaco de peles zibelinas.
‒ Melhor, sem dúvida… – assentem os outros senhores, ensalsichados noutros casacos de pele e de charuto ao canto da boca.
Um paquete do Grand Hotel ajuda a levantar a rapariguita. Bem se vê quem ela é: uma pobre, uma aprendiza de costureira. Escorregou nas pedras polidas do pavimento. Está agora a recalçar o botim esgarçado. O moço apanha o embrulho, que ela num instante recolhe e faz sobraçar. Quer seguir, ir, fugir. Sente embaraço. Muita vergonha.
‒ Uma apolicezinha hoje em dia é tudo. – conclui o cavalheiro obeso, que vigorosamente atravessa o peristilo do hotel, seguido pelos outros conspícuos senhores do grupo síndico. – É preciso cautela. Paris no inverno é particularmente traiçoeira. Quem está habituado à patinagem sabe do que se trata: um movimento em falso e zás, está-se estatelado no chão. Muita cautela, Messieurs…
A rapariga tem pressa. Quer sair dali, escapar aos olhos de peixe dos transeuntes. O moço de farda pergunta-lhe se se sente bem. Sente-se bem, já disse que sim. Bom trabalho teve ela para engomar os vestidos de Madame Dousseau. Tudo embalde, como se vê… Um joelho esfolado, um braço dormente, pouco mais. Que bracinhos tão finos. Lembram os gravetos do Bois de Boulogne que os garotos usam para os bonecos de neve. Ela aconchega o casaco. É engraçado. Tão curto nas mangas que faz sorrir. Que tonta.
Alguns caem, outros levantam-se, todos seguem a estrada do seu destino. O da moça já lá vai à frente, na esquina do Magasin Fragonard. O paquete gostou do seu rosto, das suas lágrimas escondidas. Gostava de lhe ter falado, de lhe ter valido, de a ter acalentado. É uma manhã de dezembro, como tantas outras. A Belle Époque é sobretudo isto: bela!
A pequena igreja enche-se com o ressoar dos tacões. O estampido cresce pela nave e sobe aos altares. Depois dele é o rumor das preces, uma longa murmuração gelada, um marulho de bocas dançantes repetindo-se.
O efeito destes dois ecos consecutivos distrai quem ali não encontrou ainda o seu canal para a Providência. O mais certo é ficar-se a mastigar à toa algumas palavras da comum ladainha.
Quando o padre pronuncia a fórmula trinitária, ouve-se o arrulhar contínuo de um bando de rolas. A espaços, no intervalo das réplicas da assembleia, o coro ornitológico torna-se mais efusivo.
Os distraídos veem apenas a movimentação teatral do sacerdote, o tom ensaiado dos acólitos durante as leituras. Mas quem busca Deus não pode ficar indiferente ao amor veemente destas avezinhas durante o cio. Há quem se escandalize com a animalesca alegria.
Mas Deus é um lugar insondável. A maior parte dos fiéis não sabe onde procurá-Lo. E se O encontra não sabe reconhecê-Lo.
Quando a eucaristia termina, os tacões voltam a ecoar nas lajes frias. Os sinos ocasionalmente repicam, mas o silêncio faz subsumir tudo outra vez.
Só as pequenas aves nalgum canto seu, sobre o telhado do templo, insistem no gemido doce. Dão entre si leves bicadas, dobram e encastoam com o vagar de ourives as palhas do ninho.
Se entendessem a nossa fala, se lhes falássemos do pecado, que belas risadas não dariam.
Não reparam, acaso, nos pássaros que pairam sobre eles, protraindo e recolhendo as suas asas? Ninguém os mantém no espaço, senão O Clemente, porque é Omnividente.
Alcorão, LXVII, 19
Viajar no tempo é coisa que muitos afirmam ser impossível. Afirmamos nós o contrário. Quantas outras julgadas igualmente impossíveis deixaram de o ser todos os dias, ao longo de milénios? AGORA mesmo estamos AQUI, dois segundos mais tarde percorremos a pé as ruas de Córdova, guiados pelo relato atónito de Yussuf ibn-Haroun, cronista, filho de Haroun al-Muzaffar, o mais rico comerciante de gemas e metais de todo o emirado.
As tâmaras e o açafrão, alcachofras e figos secos, mel e resinas do Oriente incensam nesta altura do ano os bazares da cidadela. O perfume serpenteia por entre eles com as notícias trazidas e levadas pelos mercadores e almocreves, vindos de todo o al-Andalus, mas também do reino fronteiro de Alfonso e de muitos outros da inimiga Cristandade. Assim foi no tempo do poderoso Abderramão, antecessor de Maomé; assim será nos dias que se seguirão, de Al-Mundhir, que nela há de governar somente por um par de anos.
Transpondo os arcos em ferradura da almedina os estrangeiros escutam a derradeira proeza de Abbas ibn-Firnas, que a voz rouca de Muça al-Jamil não cessa de lembrar. Podia um tal prodígio da humanidade ser realmente ignorado? Yussuf ibn-Haroun escuta-a também, e há de em breve (O Preservador seja louvado!) anotá-la. O texto não é indiferente à comoção geral: quantos cálamos de junco em toda a história irregular desta humanidade puderam narrar um feito tão extraordinário?
Traduzimos omitindo o acessório (pese o sentimento que nos fica de amputar a grandeza e o estilo do autor) os factos doravante narrados, sucedidos no ano de 882 (dirão dentro de portas ano 220 da Hégira) nesta poderosa capital do Islão. O nosso agradecimento ao Professor Juan Ibarra Martínez, da Universidade de Málaga, que generosamente nos facultou o texto autógrafo (desenhado com a bela caligrafia cúfica, em papel de algodão polido, com tintas pretas, vermelhas, ou ocres, e castanhas). Segurá-lo nas minhas próprias mãos é dificilmente traduzível.
[…] Começa o Livro Sagrado com estas palavras «Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso». São para toda as coisas boas e cabe-nos modificar as más em coisas boas e honrá-l’O. Escrevo estas palavras persuadido do dever de lembrar os prodígios que O Originador de Tudo opera. […]Nasci e vivo nesta cidade santa de Qurṭuba, num tempo em que os sábios acorrem de todas as partes do levante e do magreb, do setentrião e do meridião. […] Governou-a na minha juventude Abd ar-Rahman, o segundo desse nome, mas o primeiro em prosperidade, civilização e no amor que lhe devotou o nosso povo. Muhammad, seu filho, não lhe fica atrás. Não existe um só dia em que por vontade d’ O Misericordioso não se dê entre nós o prodígio de uma invenção, a descoberta de um teorema matemático, o maravilhamento e a perfeição de um novo texto filosófico ou de uma novamuwashshah. […] De todos os sábios que aqui vivem, um visita-nos com frequência no suq, esse a quem O Todo-Poderoso sobressaltou o entendimento como faz com os loucos: amiúde vemo-lo observar as favas e o coração das amêndoas com a minúcia de um avaliador de pedras preciosas; e raramente fala, pois prefere guardar todos os seus pensamentos e ditá-los a um escravo, al-Jamil, que os escreve sobre estas espantosas folhas, tanto ou mais macias que a seda, trazidas de Samarcanda (ou Maracanda, no dizer dos bizantinos). Abbas Abu al-Qasim ibn-Firnas ibn-Wirdas al-Takurini é o seu nome. Nasceu nos dias de al-Hakam, há setenta e dois anos. […] As crianças seguem-no por toda a parte, pois creem no rumor de que um dia voará sobre os céus como as aves e as estrelas. […] Muitos o receiam, acreditando nas maléficas origens do seu saber. Contudo, não temos conhecimento de que haja alguma vez procedido em púbico com rudeza para com o seu semelhante. Bem pelo contrário, sua ilécebra e bondade são conhecidas entre os doentes, a quem ministra, de acordo com os ensinamentos antigos, unguentos e xaropes à base de ásaro, eufórbio, briónia, genciana, alfavaca, melissa, centáurea, ládano, olíbano, estoraque, gengibre, açucena, costo, za’atar e lauréola, livrando-os muitas vezes da morte. […] Poucos homens terão sido mais benévolos que Abbas ibn-Firnas, que gozou sempre da proteção e da estima do nosso Emir e que entre seus pares é um homem muito considerado, amado e […] <Segue-se um passo inteiramente ilegível!> […] Asseguraram-me que muitos anos levou este homem a estudar as criaturas do céu, anotando o movimento das asas e o modo como se soldavam as penas umas às outras. Servindo-se dos ensinamentos de al-Khwarizmi e de madeira de umas canas leves e muito resistentes, vindas do império longínquo de Sin (a que chamam bambu), construiu ele o que parecia ser o esqueleto de uma mariposa. Seguidamente recobriu-o com penas de águia, usando goma das acácias (que trazem de Ifriqiya <Tunísia>) e fios de seda para as coser e entrelaçar. Para poder prendê-lo ao corpo, como se de um manto se tratasse, usou tiras sólidas de couro. […] Muitos dias se demorou neste ofício, esquecendo-se até das obrigações comuns, como comer ou dormir, interrompendo-se somente para as orações quando a elas chamava o muezim.
Yussuf ibn-Haroun é ainda bastante jovem. Permite-se escrever longos trechos sem uma pausa, atendendo a todos os detalhes, importando-se somente com a verdade, apenas com o que possa conduzir à verdade. Neste momento vemo-lo de pé, caminhando por um fresco corredor de arcos alfizados, dando para um pátio onde uma fonte antiquíssima sussurra a doçura da noite. Dirão mais tarde que com o som do alaúde, o murmurar das águas, o tilintar do ouro e a voz de uma mulher amada são os mais doces melodias que pode um homem escutar.
Lamenta que o cargo de hájibe, que tanto o honra, que as obrigações na alcáçova, as que qualquer homem almejaria, lhe roubem tantas horas, penalizando o seu ofício predileto. Refugia-se até muito tarde nesta escrita fluente que vimos estudando. Algo que transcende o seu tempo, o seu corpo e o seu espírito paira na atmosfera, como se a harmonia do cosmos e a sua própria harmonia se imbricassem e se tornassem uma só. Estamos no mês das canículas. O perfume da flor de laranjeira e das hortelãs, do tomilho e do funcho atravessando o horizonte noturno entontece-o. Espreita a cidadela dormindo sob o poderoso conforto de uma lua cheia, que as brancas almádenas recortam e lhe fazem recordar as histórias da saudosa Xerazade. Pensa na perfeição, na felicidade, em Deus. Mas também em Buthayna, na bela filha do mercador de cinábrio, cuja visita a Córdova o atormenta uma vez por ano. Nenhuma mulher se lhe compara e algo lhe diz que a bendita terra de Silves, pátria de poetas, há de nele despertar também o doce ghazal, que a ninguém confessa, que apenas de Al-Alim, O Que Tudo Sabe, não pode esconder.
«O amor e a poesia são as duas faces da mesma moeda de ouro», pensa Yussuf, depois da ablução e, de voltado para sul, orar em frente ao muro da quibla. Regressa em silêncio a um compartimento amplo, hipostilo, onde uma mesa baixa de madeira, adornado de incontáveis jaezes, ampara o apontador, o tinteiro e as suas penas. Esmera-se a apará-las, desejando que neste ritual obtenha o lucro inimaginável de possuir a mais admirada caligrafia de Córdova.
Retoma, por isso, a narração que deixou suspensa. Pretende que os factos recentes não possam ser olvidados, para benefício da pessoa que neles se fala, mas também para seu benefício e para benefício de todos os povos que se hão de seguir, e a quem possa importar a magnificência de Alá, cujo poder é admiravelmente mostrado aos homens, como se verá.
Al-Jamil narrou-me, à puridade, que o velho sábio conheceu na juventude o poeta Abu al-Hassan Ali ben Nafi, conhecido entre os de nós que falam o linguarejar da aljamia por Zyriab, que lhe contou muitas histórias dos kuffar <infiéis>, entre elas a de certo Aikarus <traduzo com rigor fonético o original, ressalvando não ter encontrado em nenhum dicionário a mesma palavra, que indubitavelmente se reporta a Ícaro>, filho de um mágico artesão, que caiu no mar depois de ser ter erguido aos céus. Não duvido que uma tal fantasia se tenha apoderado deste homem, a quem Al Muhyi, O Doador da Vida, encarregou da proeza de construir asas idênticas às que à nossa volta vemos assistir aos animais alados. […] A novidade passou de boca em boca. No vigésimo quarto dia do passado mês de Rajab, ibn-Firnas subiu a uma das torres da nossa medina, seguido por al-Jamir, que chorava e lhe implorava, invocando o nome d’ O Criador, que desistisse. Vendo que de modo nenhum o demovia da obstinada empresa a que se propunha, e considerando a idade desse homem a quem as forças parecem não querer abandonar, quis tomar o seu lugar. Nem isso aceitou. Muitos diziam que o velho escolar tinha enlouquecido e que O Todo-Poderoso o privara de razão, punindo-lhe a audácia e a teimosia. Alguns asseveram o emir se encontrava entre todos os demais. Não posso corroborá-lo. Outros que al-Jamil foi ali mesmo libertado da sua escravidão por ibn-Firnas, o que posso testemunhar […] À hora em que o sol atinge a máxima altura, depois da oração, vimos este homem despenhar-se do alto, tendo muitos de nós lançado aos céus gritos de tristeza. Como as aves do céu, que delicadamente abrem e fecham as asas e com elas vencem os abismos, como um negro abutre alcandorado, como Aikarus das histórias fantasiosas, também o velho ibn-Firnas, dando brados de alegria, abrindo e fechando os braços acorrentados por tiras de couro à máquina prodigiosa, voou de modo igual sob as cortinas do sol, ultrapassando os limites da cidade e as longas dobras do majestoso al-Wadi al-Kabir <Guadalquivir> em direção às terras onde o sol tem o seu ocaso, as terras do Garb, da longínqua e amada Xelbe, mãe de poetas, ou da lendária Al-Ushbuna <Lisboa>, construída sobre o grande oceano no fim do mundo. […] Pude reconhecer facilmente recordar as palavras sagradas do al-Qurán: «Não vos disse que conheço o mistério dos céus e da terra, assim como o que manifestais e o que ocultais?»
Yussuf sente a fome bulir-lhe nas entranhas. As mãos tombam sobre a pena com extrema fadiga. Pensa em como muitas vezes o nobre exercício de escrever se vê impedido do seu próprio voo pelas baixas necessidades do corpo. Voar é uma libertação para que faltam palavras. É a suprema alegoria que requer todo o sacrifício. Como ele próprio costuma lembrar, tê-lo-á aprendido da falsafa (dos eruditos que tão apuradamente lê e medita) que «O sábio se abstrai sem nunca se distrair». Prossegue, pois, o seu texto, vinte e oito dias decorridos do grande feito que o fascina e o impede de dormir.
Corriam os velhos e as crianças, os nobres e as mulheres, os soldados e os almoxarifes para as portas, seguindo com o dedo erguido o espantoso planar daquele que um dia chamaram de «bárbaro», por ser de origem estrangeira e possuir hábitos que estranham aos olhos vulgares. […] Nada se sabe deste Abbas ibn-Firnas, exceto que amou na sua juventude uma mulher e que esta, contra a vontade da família, o preferia a um mercador de minério (ainda seu parente e de quem se tornaria, ainda que por breves meses, mulher). A voz sempre escusada dos vilipendiadores sugere que a noite, campo onde todas as sementes germinam, os acolheu primeiro e separou depois. Não pude aclarar o nome dessa mulher. Apenas que a levaram para as terras do al-Garb, onde veio a conceber uma filha pouco tempo antes de morrer. Ibn-Firnas entregou-se inteiramente aos estudos, um dos muitos faylasuf <filósofos> que enriquecem a nossa cidade e dignificam O Omnipotente. […] Conta ele setenta e dois anos, recuperando no maristan da violenta queda em que se findou o seu voo, ao derrubar-se sobre as árvores das hortas que existem ao redor da nossa cidade. […] Al-Jamil visita-o todos os dias e, tendo embora deixado de ser seu escravo, continua a servi-lo com o mesmo amor que é de longe a maior escravidão entre os homens. Por ele soube esta mesma tarde que o nosso emir Muhammad o proíbe de repetir a façanha, tendo conhecido a sua vontade de voar de novo. E ao sabê-lo turva-se profundamente o meu ser, pois nenhum outro homem, vivo ou morto, me parece capaz de igualar a coragem do velho Abbas ibn-Firnas, o primeiro de que há notícia a ter conseguido voar, como uma ave do céu, ou um inseto, ou uma das muitas estrelas que iluminam as estradas da noite. E alegra-se o meu coração com este prodígio, com que nos revela O Infinito os insondáveis caminhos da sabedoria e do porvir, pois acredito que outros homens, guiados pela sua mão, hão tornar possível o que nesta noite não se pode divisar. E para eles redijo estas palavras. Porque todas as coisas que existem e hão de existir estão no universo, porque todas as coisas de que carecemos habitam a nossa inteligência e é nosso dever encontrá-las, porque o dever do sábio é o de iluminar os outros homens e ser iluminado pela voz da verdade. Assim o fez Abbas Abu al-Qasim ibn-Firnas ibn-Wirdas al-Takurini. E por isso o louvo e o deixo ao juízo severo do tempo!
Já o vago dilúculo assoma no orbe celeste. Exausto, todavia insuflado dessa felicidade que consola os justos, Yussuf ibn-Haroun poisa o cálamo e tomba a cabeça sobre uma almofada que ali mesmo o recebe e o conduz em sonhos a longínquas paragens, de onde vem no dorso de um cavalo a bela Buthayna, a bela filha do obscuro mercador de cinábrio, para (assim Alá o permita), se unir a si, não como a primeira do seu harém, mas como a única mulher da sua vida…
Quanto a nós, que igualmente louvamos Abbas ibn-Firnas e nos sujeitamos ao juízo rigoroso do tempo, gostamos de viajar e o fizemos nestas palavras, desenterrando dos pergaminhos em que se achavam embrulhados fragmentos de uma longa crónica com mais de onze séculos de esquecimento.
Acorda todos os dias muito cedo. Faz o menos barulho possível enquanto trata da higiene pessoal e de tomar o pequeno-almoço. Há pessoas a dormir e a necessitar do trabalho profundo dos sonhos.
Quando abre a janela do quarto, espreita sempre com muito interesse: a adivinhação da luz ou da falta dela (conforme a época do ano), o estado do tempo, o cenário com que a rua se apresenta, tudo o impressiona como se em cada manhã nascesse outra vez.
Porque se levanta cedo? Tem pressa de ir para o emprego?
Na verdade, não trabalha já. É um aposentado. Mas dá-se pressa de assistir ao nascer do dia.
Ao longo da sua já considerável vida, sempre o alvorecer (devota grande amor a essa palavra e a outras praticamente sinónimas, como alba, alvorada, aurora, arrebol, dilúculo), dizíamos, sempre o alvorecer lhe pareceu o truque de magia mais extraordinário do universo.
Sai para o terraço com uma chávena de café nas mãos, imaculadamente vestido, impecavelmente penteado e entrega-se à contemplação. A essa hora o cheiro das folhas molhadas pelo orvalho ou pela chuva, o sopro meigo e frio do vento nas árvores, o curto saltitar dos pássaros entre as telhas ou no quintal, o perfume misturado da murta, da terra e do café são como dádivas intraduzíveis.
Um pouco antes de o horizonte ser atingido de lés a lés pela labareda do sol, diverte-o a confusão de linhas esbranquiçadas que os aviões deixam à sua passagem. São traços gelatinosos, translúcidos, como aqueles que os pachorrentos caracóis desenham no cimento.
Vive com o filho, a nora e quatro netos. Ninguém em casa compreende este ritual. Ver a luz nascer, ainda que no inverno, sobretudo quando a cama tanto apetece, não é coisa de somenos importância.
Espera-se uma vida inteira pelo prazer de combinar estas coisas todas. Não há aqui qualquer toque de religião ou de poesia. Um homem em certo momento da sua vida prescinde de tudo. Menos de si.
Enciumada pelo sucesso de uma sua vizinha, no que à sedução de certo homem dizia respeito, uma jovem rapariga de Teerão denuncia-a às autoridades religiosas. Em breve, tem o caminho desimpedido, o homem nos braços, o futuro todo à sua frente. Casam, têm um primeiro filho, fazem obras em casa, os anos passam, têm o segundo filho.
Uma tarde, quando os telhados principiavam a desmaiar na poalha do outono, a mulher encontra o marido de costas, em pé, com um envelope nas mãos, segurando uma fotografia. Nela vê-se uma jovem mulher lendo uma carta. Uma carta que ele mesmo escreveu muitos anos antes. É precisamente essa carta a que lhe chegou agora no correio, muito dobrada, dentro de outra carta, como um bebé no interior do ventre materno. O homem chora. Uma mulher outrora amada explica-se, explica tudo.
Desde então o homem não volta a tocar na mulher. Passa a odiá-la. Usa o silêncio para a punir do crime. E das poucas vezes que lhe dirige a palavra, trata-a por Marjan.