
Jorge aproximou-se e, quase num sussurro, disse.
– Manuel, morreu nossa irmã… Madalena…
O outro, muito envelhecido, os olhos apequenados pela miopia, a tez escavadíssima entre rugas, levantou a custo o rosto, como quem desperta a custo de um sonho, e redarguiu:
– Nossa irmã há muito que está morta!
Fora, no jardinzinho, flocos de neve queimavam o corpo embalsamado dos agapantos. A brisa, não menos álgida que nos dias anteriores, varria o claustro, penetrava nas frestas, impunha na sacristia e em torno da madeira lavrada um ar desolador, inabitável, cruel.
Manuel, com as mãos uma sobre a outra, arrastava-se pelo deambulatório, às voltas. Observava-o de longe o dominicano com quem havia instantes trocara a dúzia de palavras. Madalena de Vilhena morrera. Parecia impossível aquele nome, tão vago e traiçoeiro agora como a memória que se tem de um sonho. Manuel pisava com as cambadas sandálias nomes e números gravados em lajes, ecos de gente que viveu, que existiu, que possuiu certezas, que alimentou cobiças, e crenças, que decerto como ele se penhorou a um amor terreno, que como ele sofreu o piso insuportável do silêncio, que lentamente como ele definhou até confundir verdades e mentiras, realidade e fantasia…
Tantas mortes: Maria, Madalena, ele próprio. Madalena morrera… Que significava morrer, se morta estava ela já tanto havia tempo, como morto e morrendo andava ele, sem que a misericórdia de Deus tornasse mais breve, mais abrupta, mais feliz a pedra do túmulo.
Somente o outro, que não quisera morrer, vivia ainda. Grande prodígio o sustinha nesta vida.
Manuel colocou sobre uma peanha o seu livro de orações. Depois abriu uma das portas ogivais do transepto. Precisava de respirar esse ar frio que tudo aquieta. No íntimo da sua alma, impossíveis como brasas de uma noite nunca apagada, as emoções regressavam.
Aos oitenta e cinco anos. Quem poderia imaginá-lo?