«E PARA QUÊ?»

Monoar Rahman
Fotografia de Monoar Rahman

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Huldrych Fritz-Meier era obcecado pela exatidão.

O correr das palavras numa carta não poderia admitir atentados à caligrafia ou ortografia, tal como o tempo mostrado nos seus relógios deveria não discrepar entre si um segundo que fosse; da mesma forma que – só para terçarmos os exemplos – seria absolutamente inadmissível para si errar a quantidade de coque que teria de colocar no fogão para aquecer a casa.

Várias questões o atingiam em simultâneo.

Uma delas a de determinar o número preciso de seres humanos que desde Adão visitaram o nosso planeta. Outra a de cifrar aos cêntimos o maravilhoso dinheiro guardado nos cofres do Banco Nacional da Suíça. Outra ainda a de equacionar em números tangíveis, num caderno, a idade do universo.

«Tudo tem um propósito, uma lógica, uma verdade plantada dentro de si próprio. Chama-se a isso ordem.»

Mas por muito que a inventasse, a ordem teimava em não obedecer-lhe.

Uma bela manhã de abril, depois de reclamar com o carteiro (cuja falta de pontualidade lhe inspirava um ódio visceral, quase animalesco), a seguir a uma zaragata ao telefone por conta da gramagem dos pacotes de cevada, profundamente melindrado com a progressiva dessincronização do bater das horas nas torres próximas da Igreja de São Pedro e da Abadia de Fraumünster, a janela do escritório deste antigo engenheiro aeroespacial (localizada num sétimo andar da Münsterhof) viu-o – como um moscardo cabeludo – atravessar o parapeito sem mais nem quê em direção ao vazio.

Não deixou nada escrito. Nada. Nem uma confissão de culpa. Nem um reparo à humanidade. Deixou, isso sim, o apartamento na confusão maior que possa imaginar-se, com estantes despidas, armários abertos, objetos empilhados à toa num caos digno de uma residência de universitários estroinas.

Era como se Huldrych Fritz-Meier se tivesse assaltado a si mesmo. Como se o tivesse feito com requinte de prazer e de traição.

Johann Reusser, pastor calvinista, amigo e antigo colega de escola de Meier, foi severo na despedida do corpo: «A vontade de imitar a omnisciência de Deus atinge algumas almas como uma pedrada vinda diretamente do diabo. E para quê?»

Eis uma boa interrogativa. «E para quê?» reperguntamos nós.

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DEVER DE VIDA

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Fotografia de Joe Hendriksen

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Massimo Volti amava a velocidade.

Sem ser vascolejada a vida era o mesmo que possuir certa parte do corpo e não ser capaz, por defeito, por velhice, por ausência de alegria de a erguer tão alto quanto o permitissem os vasos sanguíneos.

Na vida deve ousar-se, eis a divisa da sua existência.

Odiava todas as formas de assentimento, de obediência e de medo. E por isso esporeava os cavalos até espumarem, arriscava círculos improváveis sentado no girocóptero, atravessava com a fúria da sua lancha Ferrari V12 o intervalo das ondas de todos os mares do Mediterrâneo, derretia ao volante de um futurista Alfa Romeo C52 herdado do avô Silvano as curvas e contracurvas que desciam de Génova à Calábria.

Massimo Volti amava o risco.

Como na labiríntica lei einsteiniana que sugere a deformação do espaço-tempo pela ação dos corpos celestes massivos, assim os cabelos das beldades nas praias de Portofino e a dos pastores nos píncaros de Matera se contorciam à sua passagem alucinante.

Era um louco. Certo poeta português encomia bastante este género de grandeza buscada no estouvamento.

Um homem deve poder acrescentar ao ramerrão uma ou duas colheradas de adrenalina. Mesmo se às duas por três perde o controlo de si e o corpo, como um inseto sem asas, voa uma última vez em direção ao abismo.

Para Massimo Volti Ícaro era o único herói suportável e entendível. Sem concordar ou discordar do seu modo de vida, admitimos somente um pouco de inveja. Apenas um pouco.

Em direção ao abismo, evidentemente!

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UM CASAL

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Fotografia de Nathan Dumlao

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para a Céu

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Ele e ela sabiam amar-se, até mesmo quando faziam amor.

Estimavam com igual paixão a largueza do mar e o abraço da despedida. Eram-lhes igualmente belas a acutilância de um bom poema e a gargalhada honesta, acesa por uma anedota na rua. Além disso, apreciavam em enorme cumplicidade a chávena de café e um pouco de chocolate amargo, a finura dos lábios da rosa e o cheiro laranjais.

Uma espécie de beatitude nimbava os sonhos de um e de outro. Não eram jovens, longe disso. Todavia, sentiam-se espicaçados pela presença do futuro. E o futuro era neles o mesmo que empilhar um pouco de lenha enxuta para o inverno, ou remendar com agulha e dedal um agasalho ferido pelo tempo. Não desejavam mais do que o pouco e do que o simples.

Uma vez ela voltou-se para ele e sussurrou:

«Se existisse uma só palavra para te explicar o quanto te quero bem!»

Cheio da mesma ternura, ele respondeu:

«Para que precisamos nós de palavras, quando temos o silêncio?»

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O silêncio entre os dois era leve, carinhoso, tecido pelo próprio sol. Até mesmo quando não faziam amor.

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UMA ESTRANHA BEBERAGEM

Jack Jiao - forbidden-city
Fotografia de Jack Jiao

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Vencido pelos anos e por um profundo desamor à vida, Wú Mo, um dos eunucos poetas que serviam e celebraram o poderoso Yung-lo, gastava grande parte das suas noites a cogitar numa maneira boa de morrer.

Primeiro em Nanquim, mais tarde no coração da capital do império, assistira ele muitas vezes à violência e à crueldade do seu senhor. Não lhe parecia difícil conseguir a punição suprema. Difícil era poder fechar os olhos sem ruído, sem pressa, sem rancor, tal como o dia faz quando fecha as suas asas.

Pelas ruas magníficas da Cidade Proibida não deslizava senão, nesse tempo, a pouco subtil e muito trabalhada arte da louvação da casa do Ming, do guerreiro das sumptuosas sedas amarelas, do autor das gestas inumeráveis e incomparáveis que ele, Wú Mo, cantava em verso.

Mas o velho eunuco conhecia também as sombras. Para lá da luz e do luxo e do louvor havia brechas, portas mal seguras, casebres de bambu onde moravam outros velhos menos afortunados. Aí dominava-se outra língua, praticava-se outras ciências, cuidava-se de outros poderes que lograriam, num descuido, interromper a interminável subjugação de Yung-lo, a insuportável bajulação para com Yung-lo, a abominável adoração a Yung-lo.

Afeiçoou-se ao velho servo uma das muitas esposas do imperador, filha de um camponês qualquer, trazida de uma das províncias distantes para onde os exércitos e as mãos implacáveis de Yung-lo se estendiam ultimamente.

Depois das cortesias e, mais por rebuscadas alusões do que por palavras chãs, eunuco e concubina compreenderam um no outro a mesma estranha infelicidade e o mesmo propósito que a ambos envenenava a alma. Ajudar-se-ia, portanto, a deixar este mundo e fá-lo-iam em segredo, com o recurso ao recente saber que tomara ela acerca da fervura de certos grãos trazidos pelos mercadores do deserto, grãos escuros e fatais que deveriam ser esmagados até deles não sobrar mais do que um pó igualmente escuro e perfumado.

O eunuco rejubilou. Esse seria, com efeito, o fármaco do seu fim.

Tendo-os na sua posse, Wú Mo procedeu com eles como se descreveu atrás. Ferveu água e em seguida verteu-a sobre um púcaro de boa porcelana no fundo do qual jazia a delicada farinha. Mexeu-a em duas ocasiões e deixou-a recair antes que pudesse bebê-la.

Não tardou a que o forte odor da beberagem transpusesse os seus aposentos, ultrapassasse os pátios, atingisse o salão do trono e o próprio nariz imperial.

«Que cheiro é este» perguntou Yung-lo.

Conduziram à sua presença o infeliz eunuco, a quem foi imposto (como lhe impunham às vezes um poema) que ingerisse o misterioso líquido negro. Bebeu e sorriu. Morreria, morreria bem, na presença e para desgosto do maldito usurpador. Assim o desejara, assim se cumpria.

Porém, não havia ali morte alguma. Bem pelo contrário, o corpo entorpecido de Wú Mo pareceu animar-se de uma força inteiramente nova, de uma alegria inesperada, de uma juventude esquecida muito tempo atrás.

Wú Mo viveu até aos cento e cinquenta anos. É o que dizem as crónicas chinesas.

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ELE SABIA

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Johannes Vermeer, A Leiteira, ca. 1657

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O vento punha-se a titilar nas ervas altas e era bom. Era livre. O sol caía em cachos na toca dos grilos e era belo e livre. Os miúdos saltavam os muros e corriam livremente pelos talhões de margaridas e era maravilhoso vê-los. O pintor compunha sem pressa o azul do mar ao fundo e o pé robusto das árvores ao perto e era muito agradável, agradabilíssimo, prestar atenção ao vento e ao sol e às crianças a voarem juntas pelo prado.

O poeta, no entanto, preferia a chuva e o silêncio. Preferia, sem dúvida, o canto mal aceso do seu carvão, a odor forte do seu tinteiro, o peso enorme dos seus versos impregnados na solene tristeza dos poetas. Era um desses homens infelizes para quem a simplicidade das coisas não faz sentido.

Quando a rapariga que vendia o leite lhe bateu à porta, com as faces cheias de rubor e o coração aos saltos, o poeta não encontrou as palavras certas para responder à saudação. Dentro de si as verdades tinham a dureza do mármore e o espontâneo cansaço de uma mesura.

A rapariga amava-o e ele sabia. Mas não era capaz de viver com a alegria ingénua de um grilo, só com o ímpeto de um tigre enjaulado. Era a sua pena e ele sabia.

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UMA DEMANDA

Hengki Koentjoro - tree in the mist
Fotografia de Hengki Koentjoro

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Cansado das erronias do seu tempo e das injustiças do seu povo e das mentiras descaradas com que um alimentava o outro, cansado da vileza com que ambos destituíam do seu lugar primeiro a bondade entre os homens, Kazuya afastou-se da cidade e caminhou em direção ao nada tantos dias quantos puderam as suas sandálias.

Em certo lugar nevoento encontrou uma curiosa árvore, que lhe parecia tão perdida quanto ele próprio. Junto dela começou a tirar de dentro de si as palavras que guardara e que lhe chocalhavam na cabeça como água a ferver num pote. Disse muitas coisas: primeiro em surdina, depois aos berros, por fim cheio de arrependimento.

Sentiu, então, um grande frio. Uma solidão imensa e devastadora. Uma vontade incontrolável de chorar. Chorou tanto quanto puderam os seus olhos. Em seguida abraçou a árvore, agradeceu-lhe e prosseguiu a viagem pelo meio do horizonte verde-cinzento. Não se soube mais dele do que isto.

A última pessoa a vê-lo foi uma velha fiandeira. Admirou-se que um mendigo assim esfarrapado pudesse estar mais feliz do que uma lâmpada acesa.

E que a ela não tivesse pedido nada, nem sequer um bom dia.

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«O ABENÇOADO»

Homem negro, fotografia de Leroy Skalstad; black man, photo of Leroy Skalstad;
Fotografia de Leroy Skalstad

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Traziam-lhe marfim e ele esculpia-o com a paciência mais apurada de que o género humano é capaz. Os objetos saídos das suas mãos contavam-se entre os que mais vorazmente atraíam a cobiça dos estrangeiros em Brazzaville, em Djambala, em Sibiti, em Mandigou e em todo o Congo. Chamavam-lhe “O abençoado”, embora o seu nome verdadeiro fosse Isidor Nkobanjira. Ao cruzar a velhice gabava-se de possuir, nada mais, nada menos, do que setenta filhos.

Perto do fim, pôs-se a cortar e a perfurar e a abrir sulcos com o cinzel numa presa de elefante. Primeiro entalhou o serpentear de um rio, depois o crescer de uma montanha, a seguir uma revoada de astros perfeitamente hemisféricos. Com minúcia, foi acrescentando a água e os peixes, a terra e as impalas, o céu e os abutres. Encheu o marfim com as criaturas todas de que se pôde recordar, sem omitir o silêncio, a morte ou o medo.

«Todo o universo cabe aqui» pensou Nkobanjira.

Na realidade – reparou com o semblante insatisfeito – ao cabo de tudo ainda lhe sobrava algum espaço.

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«ENTREGA-TE À SOLIDÃO!»

cpeng
Fotografia de cpeng

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Antoine de Saint-Exupéry, malogrado piloto francês que o mundo inteiro conhece como autor das frases magníficas de O Principezinho, escreveu no seu Diário a entrada seguinte, datada de 21.06.1944.

Entre os povos tuaregues de Marrocos e da Argélia, um estrangeiro descobre que as palavras valem mais sendo menos, sendo maior o silêncio que as separa umas às outras. Também aprende que o cheiro das dunas e o efeito de um chá de hortelã (bebido quase a ferver no pico do dia) podem abrir, na sua cabeça obtusa e dorida, corredores profundos e misteriosos.

Esse forasteiro aprende que o valor de um homem é o preço das suas imagens. Das que flutuam dentro dos olhos e que, muitas vezes, são a renascença das suas memórias. Da coragem de regressar aos antigos sonhos, aos impulsos que as noites continuam (impoluta, legitimamente) a segregar dentro de si.

Um homem civilizado desce as províncias de França e os Pirenéus, deixa para trás as velhas fronteiras da Ibéria e atravessa a boca do Mediterrâneo, adentra-se no deserto e torna-se aos poucos um resgatado, um coração limpo, uma criança posta de novo no sussurro da existência.

Esse homem que se arrisca no desconhecido não descobre um simples tufo de ervas no percurso que faz ao longo de milhas. E, no entanto, acorda à medida que as percorre. Não encontra um poço de água ou uma sombra ou outro animal diferente da sua montada. E, porém, jamais se sentiu tão desperto ou tão próximo das formas de vida. Toda a imundície colada ao corpo e todo o lixo aninhado nas partes da sua alma são como que lavadas na fricção contra as milhentíssimas luzes das areias que o vento faz deslizar facilmente.

Quando, de um instante para outro, nuvens de pó se erguem do erg e quase sufocam a paisagem e a sua garganta, esse homem vindo de fora vê como os imazighen resistem cheios de nobreza, tapando sem queixumes o rosto envelhecido e encostando a cabeça respeitosamente ao dorso do dromedário que conduzem.

Um estrangeiro compreende que é no pó que os olhos veem mais longe. É no meio das tempestades que os olhos alcançam a chamazinha do espírito julgado perdido.

Na confusão dos elementos vinca-se nele a certeza de que viver não é um jogo, mas um privilégio e de que não existe outro caminho para a vida senão livrarmo-nos de todas as mentiras que a luz fulminante do deserto denuncia.

Entre os povos nómadas, um homem sedento da verdade escuta frases demoradas.

«Se queres a vida dos outros, entrega-te às cidades. Se queres a tua vida, entrega-te à solidão!»

Demora de facto a atingir este pensamento.

Por isso, um estrangeiro vem. E não regressa.

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A HERESIA

Monge católico lendo as escrituras
Fotografia de D-Keine

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Entre as heresias que Agostinho refutou e combateu no tratado célebre de 428, não consta aquela que se atribui ao monge galês Ciliano Ordovico (ou Cilianus Brittanicus, ou Kilian de Glyngarth) e que – será uma lenda – chegou aos ouvidos do filósofo de Hipona numa manhã abrasadora de julho, a escassas semanas de se despedir ele deste mundo.

O douto Padre de que falamos terá exclamado do leito onde jazia:

– O fogo deste dia em nada é comparável ao que há de fazer encarquilhar o corpo e a alma deste apóstata, em cujo coração e de cuja boca correm tão ímpias mentiras!

Pouco se sabe de Ciliano Ordovico. Que era um homem simples. Que era entre os povos do sudoeste da Bretanha o que Patrício foi entre os gaélicos irlandeses ou, mais tarde, Columba no meio dos pictos e os gaélicos da Escócia. Ciliano, porém, ao invés daqueles santos canónicos, descria na Santíssima Trindade, tendo acolhido muito cedo as teses de Ário de Alexandria, em particular a que negava a Jesus a mesma divindade do Pai. Sabe-se, do mesmo modo, que era inegável a sua simpatia pelas ideias de Pelágio, que chegou a conhecer na juventude, e de que cuja influência nunca se libertou inteiramente.

«Como pode uma criança nascer com a mácula de um erro que não cometeu? Que sentido pode haver na verdade de que Deus é amor e, simultaneamente, capaz de repelir parte dos seus filhos? Como pode O Todo-Poderoso considerar aqueles que, tendo nascido iguais a si em imagem e semelhança, puníveis pelo pecado do primeiro homem e da primeira mulher, ad aeternum, sem o ritual simples do batismo?»

Ciliano procurava muitas vezes a solidão das florestas e o sossego das praias para meditar.

Observando amiúde os pobres camponeses a abrir com os machados as faias para lhes retirar a casca, ou vendo passar os pegureiros com os seus rebanhos inocentes, ou contemplando as crianças a colher bagas de airela com a esplêndida alegria das crianças, ou lançando as vistas para mais longe – para onde as pequenas barcaças iam e vinham com o peixe que também Pedro e André e Tiago pescaram na Galileia – o monge galês reiterava a sua certeza de que todo o homem podia salvar-se sem mais sacramentos do que o de simplesmente imitar a Cristo.

Ainda mais: tal como os irreverentes cachorros a quem se aplicava às vezes uma vergasta e eles gemiam um instante para logo depois se juntarem de novo à mão que os zurziu, assim os pecadores, por muito grande que fosse a culpa das suas ações – resultante sem dúvida das suas existências dificultosas – teriam inevitavelmente de retornar à graça do Criador.

Entre as tribos de pagãos, chamadas não havia muito tempo de siluros, démetas, cornovii, deceanglos, catuvelaunos, ordovicos, dobunos, Ciliano espalhava a sua visão pessoalíssima do cristianismo. O Filho de Deus era um exemplo de vida, não um dogma. Cristo pediu que o seguissem e cristão era todo aquele que preferisse o bem ao mal, a simpleza à jactância, o coração leve e puro ao rancor e à ambição.

E, por isso, Ciliano ensinava e era compreendido, amava e era amado, disseminava uma fé nova no serpentear dos pântanos e no correr das planícies, erguia-a aos altos selvagens cobertos pelas névoas e pelo misticismo e pela violência dos druidas. «Não creio no inferno» era – em suma – a estranha natureza da sua heterodoxia.

Outros monges missionários batiam-lhe o pé, recordavam o fogo de Hinom a que o próprio Cristo fez menção. Mas Ciliano lia nessa passagem dos Evangelhos uma alegoria.

«Por muito esquálido ou turvo que se mostrem a razão e o juízo de um espírito, assim que este deslace do corpo jamais Deus o poderá abandonar. Assim como os camponeses lavam os couros sujos em muitas águas, assim Nosso Senhor o fará com os pecadores. A condenação eterna seria o mal extremo, porque nenhum sofrimento pode ser maior do que sujeitar matéria ou alma a um suplício sem fim. Deus é amor, meus filhos e é inconcebível que pudesse conspurcar a sua substância inefavelmente benévola com um vício tão grande. O castigo demora apenas o bastante para que o erro se transforme em sabedoria e o possa Pai Celestial ao faltoso, outra vez, recebê-lo nos seus braços.»

Correu devagar esta heresia. Quando alcançou os ouvidos benignos de Agostinho, o velho teólogo gracejou:

– Oitenta e oito foram as falaciosas doutrinas que tomámos do nosso conhecimento e do sábio conselho de outros a que Deus revelou a verdade. Mas o demónio jamais se contenta com o açoite da nossa fé. Este e todos os malditos que espalham cizânia sobre a terra sã hão de com ela ser queimados duas vezes.

Não consta que Ciliano Ordovico (Cilianus Brittanicus, ou Kilian de Glyngarth) tivesse ardido ou sido sequer obrigado a abjurar. Tampouco que a História lhe haja reservado um lugar proeminente entre os incontáveis heresiarcas.

Assinalamos somente – é o nosso dever – as suas palavras, dignas, achamos nós, de algum interesse e – quem sabe obscurum per obscurius – da melhor cristandade.

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O BURGESSO

Arek Socha - poison
Fotografia de Arek Socha

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Em Joã, freguesia do antigo município de Sarnacosa, vivem trezentos moradores. Melhor, trezentos e um. Ou, por outra, trezentos!

Nas ruas desta aldeia há, como em todas as ruas grandes e pequenas de Portugal, cães dóceis e gatos bravios, gente curiosa e gente apressada, tipos cheios de massa e tipos remediados, vizinhos bons (quase todos) e um forasteiro, um grandessíssimo filho da… Nesta terra, como em todas as outras do país, vive-se daquilo que se tem e do que se pode, daquilo que aos pais se herdou e do que em França se conseguiu, do que se ganha ao dia ou do que no final do mês (quase sempre com grande sacrifício) chega à algibeira.

A figura maior de Joã é o Professor. Um velho benevolente e honesto, cuja vida se encheu de livros e de viagens e que agora se espraia por infindáveis horas de meditação no meio do seu horto e jardins, entre árvores magníficas e ervas exóticas. Apesar do silêncio que prefere cultivar, o Professor detém um vasto saber acerca de tudo e acerca de tudo o mais, não deixando nunca sem resposta quem lhe procura palavras urgentes ou conforto. De resto, dá gosto descortiná-lo com um chapéu de palha, observando candidamente os rebentos das ginjeiras, ou afagando com ilécebra os caules tenros do aneto. Muitas vezes, adormecido no banco de madeira sob o caramanchão coberto de glicínias, ou na companhia da sua gingko biloba transformada em luz (pelo ouro das folhas outonais) os vizinhos veem-no com a Ilíada nas mãos e veneram-no. Com a barba branca e o olhar terno lembra um sábio ou um santo.

Em Joã a exceção é o tipo novo, esse que veio não se sabe bem de onde, esse gordo fala-barato que daninhamente se mudou para cá e parece contaminar já os mais novos. É um grosso, um homem inimigo do trabalho, um manipulador em volta do qual esvoaça – como a mosquitagem dos pântanos – gente feia, gente estranha, gente foragida como ele, gente que consigo comercia à porta fechada, à noite, às escondidas, gente que lhe vem buscar estranhos sacolinhos medidos ao grama, gente aprendiz da manipulação e da estupidez, gente que Joã desconhecia e que ultimamente aparece cada vez mais, cada vez mais amiúde, cada vez mais ameaçadora, cada vez mais ousada e maligna.

Há tempo, não há muito, o tipo pôs-se a convencer a aldeia dos poderes sobrenaturais dos seus amavios e da rijeza implacável dos seus feitiços. De forma que a gente feia duplicou de tamanho em Joã e os lucros do intruso gordo decuplicaram.

– Joã converte-se a cada dia que passa num vaivém de bandidos… – disse o presidente da junta.

– Não será tanto assim… – discordou amavelmente o Professor.

– Oh, esse homem que para aí veio é ruim pessoa. É um burgesso!

O Professor achou graça à palavra. Já a tinha escutado antes, mas caída do pensamento do autarca parecia mais de mármore e de ferro.

– Sabe o senhor presidente que esse diabo me tem assaltado os jardins?

– Você o que me diz, Professor?

O ancião narrou:

– O burgesso (para me servir do termo do senhor presidente da junta) parou o jipe aí à porta. Saiu a apertar muito o cinto e a atacar as calças, com a pança a rebentar-lhas. Entrou-me pelo horto adentro cheio de empáfia e sem pedir licença. Lá tive de explicar ao caro senhor que esta casa tem dono e que quem aqui entra o faz com a minha autorização.

– E ele que queria?

– Olhe, é um ignorante, com a mania que percebe de mezinhas. Anda a roubar-me plantas. Corta-as a esmo, fitoterápicas, veneníparas, sem distinção. Leva as que fazem bem e as que podem fazer o contrário, sabe?

– Espalham por aí que ele é bruxo…

– É um estúpido, senhor presidente. Só isso… Como vossa excelência diz, é um burgesso!

– Mas ele não pode avançar pelo que é dos outros. Era só o que faltava!

– Saiba que o tipo me respondeu: «Não te comi pedaço nenhum, ó velho do c…! Pode ser que aprendas um dia destes a respeitar quem manda!»

– Estou varado!

O grande mal de uma terra sã acontece-lhe quando um usurpador assenta arraial nas suas faldas e principia o ofício predatório de todos os vermes. O gordo inchou em Joã em pouquíssimas semanas, depressa, sem piedade. Ninguém sabe bem como.

Esta manhã (falamos de uma esplêndida manhã de domingo) duas notícias estão no coração e nos lábios dos trezentos moradores desta pequena paróquia das Beiras.

Todas os talhões de alecrim e angélica, camomila, monarda, basílica, todos os canteiros de begónias e cíclames, rosas, gardénias, jacintos, cravinas, todas as macieiras e a bela magnólia, os sicómoros, os renques de amendoeiras e o laranjal, todo o verde e todo o colorido que o Professor semeou, plantou, adubou, regou, podou, afagou durante a sua vida de recato surgiu à luz do dia numa mirração apocalítica, como se sobre a sua propriedade tivesse durante a noite caído uma chuva de enxofre. Os criminosos não tiveram sequer o empenho de esconder os bidões.

O professor – garantem – palpou a barba nívea sem uma palavra. Todo o seu horto é um monturo de talos, hastes e ramagens calcinadas. É doloroso, quase inverosímil, inexplicável de tão cruel. Joã condói-se, geme, comenta. O padre veio consolar, as irmãs francesas não deixaram de expressar solidariedade, o presidente da Junta prometeu braços firmes para reconstruir.

A outra notícia:

O forasteiro apareceu morto no jipe, perto do casarão onde vivia. Pelos cantos da boca escorriam-lhe fios de espuma. No rigor mortis os olhos abriam-se-lhe contorcidamente, como espantados da sua própria estupidez, como a imagem pura e destilada de quem foi surpreendido no cálculo errado de uma peçonha.

– O tipo há semanas que me levava estramónio…

– Estramónio, senhor Professor?

– Ou figueira-do-diabo. Ou figueira-do-inferno, se quiser. É o mesmo. Extrair a linfa desta planta é uma arte tão árdua quanto ancestral, tão deliberada quanto exigente. Apurar-lhe as doses é coisa para matar…

O Professor é de opinião que aquele homem idiota experimentou o sumo maléfico em si mesmo. Custa a acreditar. E quando o fez tentou ainda pedir ajuda, mas tarde demais. Realmente, burgesso é a palavra certa. Razão tem o presidente da junta.

No momento em que Joã se livra de um mal tão grande, não será talvez motivo para festejar?

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