ERA DANINHA

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Fotografia de Teslariu Mihai

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Anotados a lápis vermelho-vivo, com a instrução sumária de que fossem abertos no dia 25 de abril de dois mil e vinte e quatro, o poeta-pintor e tradutor, escritor-planfletário, publicitário surrealista e homossexual de esquerda, cidadão de coluna vertical e de zero papas na língua, de sua graça Mário Cesariny de Vasconcelos, deixou uma pilha de envelopes numa arcazinha imitativa da de Fernando Pessoa.

Deste, que agora mesmo seguramos nas nossas mãos e cujo rasgamento se fez com faca de aço inoxidável, acabou de extrair-se e de desdobrar-se o poema «ERA DANINHA».

Não há erro ortográfico, nem data de criação, só um manguito à Bordalo, desenhado com o mesmo carvão no final do texto.

Transcrevemo-lo para o público e devido reconhecimento.

ERA DANINHA

O António era fascista.
Deixá-lo ser.

O António lambia botas
Deixá-lo lamber.

O António entregava os amigos.
Que se vá foder.

O António perseguia os inimigos.
Havemos de o prender.

O António morreu.
Deixá-lo morrer.

O António quer voltar ao mundo.
Deixá-lo crer.

O António crê poder voltar ao mundo.
Deixá-lo querer.

O António chora com aquilo dos cravos.
O ranho seca, vais ver.

O António no outro mundo redige protestos.
Deixá-lo esquecer.

Cem mil diabos carregam o António no inferno.
Deixá-lo sofrer!

Dos remanescentes quarenta e nove sobrescritos, cujo conteúdo muito nos deleitou e em parte surpreendeu, daremos oportuna (oxalá brevemente) a cabal notícia.

«E PARA QUÊ?»

Monoar Rahman
Fotografia de Monoar Rahman

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Huldrych Fritz-Meier era obcecado pela exatidão.

O correr das palavras numa carta não poderia admitir atentados à caligrafia ou ortografia, tal como o tempo mostrado nos seus relógios deveria não discrepar entre si um segundo que fosse; da mesma forma que – só para terçarmos os exemplos – seria absolutamente inadmissível para si errar a quantidade de coque que teria de colocar no fogão para aquecer a casa.

Várias questões o atingiam em simultâneo.

Uma delas a de determinar o número preciso de seres humanos que desde Adão visitaram o nosso planeta. Outra a de cifrar aos cêntimos o maravilhoso dinheiro guardado nos cofres do Banco Nacional da Suíça. Outra ainda a de equacionar em números tangíveis, num caderno, a idade do universo.

«Tudo tem um propósito, uma lógica, uma verdade plantada dentro de si próprio. Chama-se a isso ordem.»

Mas por muito que a inventasse, a ordem teimava em não obedecer-lhe.

Uma bela manhã de abril, depois de reclamar com o carteiro (cuja falta de pontualidade lhe inspirava um ódio visceral, quase animalesco), a seguir a uma zaragata ao telefone por conta da gramagem dos pacotes de cevada, profundamente melindrado com a progressiva dessincronização do bater das horas nas torres próximas da Igreja de São Pedro e da Abadia de Fraumünster, a janela do escritório deste antigo engenheiro aeroespacial (localizada num sétimo andar da Münsterhof) viu-o – como um moscardo cabeludo – atravessar o parapeito sem mais nem quê em direção ao vazio.

Não deixou nada escrito. Nada. Nem uma confissão de culpa. Nem um reparo à humanidade. Deixou, isso sim, o apartamento na confusão maior que possa imaginar-se, com estantes despidas, armários abertos, objetos empilhados à toa num caos digno de uma residência de universitários estroinas.

Era como se Huldrych Fritz-Meier se tivesse assaltado a si mesmo. Como se o tivesse feito com requinte de prazer e de traição.

Johann Reusser, pastor calvinista, amigo e antigo colega de escola de Meier, foi severo na despedida do corpo: «A vontade de imitar a omnisciência de Deus atinge algumas almas como uma pedrada vinda diretamente do diabo. E para quê?»

Eis uma boa interrogativa. «E para quê?» reperguntamos nós.

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MAR

Escritor Português João Ricardo Lopes
Crédito fotográfico: Catarina Lopes

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Ponho o mar à minha frente e decido um grande silêncio. Não há maior bem do que calar todas as ressonâncias de que o vento é capaz na nossa boca e por dentro dos nossos olhos e nos confins da cabeça. Elidir um a um todos os sepultuosos ruídos em que morremos quando proferimos alguma palavra, esmaecer até ao nada uma atrás de outra todas as imagens que nos governam desde a infância, apagar o poder das teias cerebrais como quem se enlouquece com uma tesoura entre os dedos. O mar vem aos poucos, apodera-se dos rochedos em agulha e do cheiro seco do areal, transpõe a pérgula e a linha dos metrosíderos, coabita o espaço e o tempo que é, sem que o entendamos completamente como, um adormecimento, uma fragilidade, a própria ideia de deus soprando de novo nas impérvias narinas de Adão.

Só assim renasço. Só assim, atingindo a chã existência de mim mesmo, vergando-me até rastejar e ser argila e cair – repito – no grande silêncio de uma morte. É preciso morrer. Ponho o mar à minha frente e morro. Muitas vezes morri nesta vida de merda. Foram deus e o mar, a mistura de ambos, o sopro que num é o outro, sei lá, foram deus e o mar quem me trouxe de volta muitas vezes – repito – nesta vida de merda.

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DEVER DE VIDA

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Fotografia de Joe Hendriksen

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Massimo Volti amava a velocidade.

Sem ser vascolejada a vida era o mesmo que possuir certa parte do corpo e não ser capaz, por defeito, por velhice, por ausência de alegria de a erguer tão alto quanto o permitissem os vasos sanguíneos.

Na vida deve ousar-se, eis a divisa da sua existência.

Odiava todas as formas de assentimento, de obediência e de medo. E por isso esporeava os cavalos até espumarem, arriscava círculos improváveis sentado no girocóptero, atravessava com a fúria da sua lancha Ferrari V12 o intervalo das ondas de todos os mares do Mediterrâneo, derretia ao volante de um futurista Alfa Romeo C52 herdado do avô Silvano as curvas e contracurvas que desciam de Génova à Calábria.

Massimo Volti amava o risco.

Como na labiríntica lei einsteiniana que sugere a deformação do espaço-tempo pela ação dos corpos celestes massivos, assim os cabelos das beldades nas praias de Portofino e a dos pastores nos píncaros de Matera se contorciam à sua passagem alucinante.

Era um louco. Certo poeta português encomia bastante este género de grandeza buscada no estouvamento.

Um homem deve poder acrescentar ao ramerrão uma ou duas colheradas de adrenalina. Mesmo se às duas por três perde o controlo de si e o corpo, como um inseto sem asas, voa uma última vez em direção ao abismo.

Para Massimo Volti Ícaro era o único herói suportável e entendível. Sem concordar ou discordar do seu modo de vida, admitimos somente um pouco de inveja. Apenas um pouco.

Em direção ao abismo, evidentemente!

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UM CASAL

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Fotografia de Nathan Dumlao

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para a Céu

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Ele e ela sabiam amar-se, até mesmo quando faziam amor.

Estimavam com igual paixão a largueza do mar e o abraço da despedida. Eram-lhes igualmente belas a acutilância de um bom poema e a gargalhada honesta, acesa por uma anedota na rua. Além disso, apreciavam em enorme cumplicidade a chávena de café e um pouco de chocolate amargo, a finura dos lábios da rosa e o cheiro laranjais.

Uma espécie de beatitude nimbava os sonhos de um e de outro. Não eram jovens, longe disso. Todavia, sentiam-se espicaçados pela presença do futuro. E o futuro era neles o mesmo que empilhar um pouco de lenha enxuta para o inverno, ou remendar com agulha e dedal um agasalho ferido pelo tempo. Não desejavam mais do que o pouco e do que o simples.

Uma vez ela voltou-se para ele e sussurrou:

«Se existisse uma só palavra para te explicar o quanto te quero bem!»

Cheio da mesma ternura, ele respondeu:

«Para que precisamos nós de palavras, quando temos o silêncio?»

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O silêncio entre os dois era leve, carinhoso, tecido pelo próprio sol. Até mesmo quando não faziam amor.

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UMA ESTRANHA BEBERAGEM

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Fotografia de Jack Jiao

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Vencido pelos anos e por um profundo desamor à vida, Wú Mo, um dos eunucos poetas que serviam e celebraram o poderoso Yung-lo, gastava grande parte das suas noites a cogitar numa maneira boa de morrer.

Primeiro em Nanquim, mais tarde no coração da capital do império, assistira ele muitas vezes à violência e à crueldade do seu senhor. Não lhe parecia difícil conseguir a punição suprema. Difícil era poder fechar os olhos sem ruído, sem pressa, sem rancor, tal como o dia faz quando fecha as suas asas.

Pelas ruas magníficas da Cidade Proibida não deslizava senão, nesse tempo, a pouco subtil e muito trabalhada arte da louvação da casa do Ming, do guerreiro das sumptuosas sedas amarelas, do autor das gestas inumeráveis e incomparáveis que ele, Wú Mo, cantava em verso.

Mas o velho eunuco conhecia também as sombras. Para lá da luz e do luxo e do louvor havia brechas, portas mal seguras, casebres de bambu onde moravam outros velhos menos afortunados. Aí dominava-se outra língua, praticava-se outras ciências, cuidava-se de outros poderes que lograriam, num descuido, interromper a interminável subjugação de Yung-lo, a insuportável bajulação para com Yung-lo, a abominável adoração a Yung-lo.

Afeiçoou-se ao velho servo uma das muitas esposas do imperador, filha de um camponês qualquer, trazida de uma das províncias distantes para onde os exércitos e as mãos implacáveis de Yung-lo se estendiam ultimamente.

Depois das cortesias e, mais por rebuscadas alusões do que por palavras chãs, eunuco e concubina compreenderam um no outro a mesma estranha infelicidade e o mesmo propósito que a ambos envenenava a alma. Ajudar-se-ia, portanto, a deixar este mundo e fá-lo-iam em segredo, com o recurso ao recente saber que tomara ela acerca da fervura de certos grãos trazidos pelos mercadores do deserto, grãos escuros e fatais que deveriam ser esmagados até deles não sobrar mais do que um pó igualmente escuro e perfumado.

O eunuco rejubilou. Esse seria, com efeito, o fármaco do seu fim.

Tendo-os na sua posse, Wú Mo procedeu com eles como se descreveu atrás. Ferveu água e em seguida verteu-a sobre um púcaro de boa porcelana no fundo do qual jazia a delicada farinha. Mexeu-a em duas ocasiões e deixou-a recair antes que pudesse bebê-la.

Não tardou a que o forte odor da beberagem transpusesse os seus aposentos, ultrapassasse os pátios, atingisse o salão do trono e o próprio nariz imperial.

«Que cheiro é este» perguntou Yung-lo.

Conduziram à sua presença o infeliz eunuco, a quem foi imposto (como lhe impunham às vezes um poema) que ingerisse o misterioso líquido negro. Bebeu e sorriu. Morreria, morreria bem, na presença e para desgosto do maldito usurpador. Assim o desejara, assim se cumpria.

Porém, não havia ali morte alguma. Bem pelo contrário, o corpo entorpecido de Wú Mo pareceu animar-se de uma força inteiramente nova, de uma alegria inesperada, de uma juventude esquecida muito tempo atrás.

Wú Mo viveu até aos cento e cinquenta anos. É o que dizem as crónicas chinesas.

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ELE SABIA

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Johannes Vermeer, A Leiteira, ca. 1657

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O vento punha-se a titilar nas ervas altas e era bom. Era livre. O sol caía em cachos na toca dos grilos e era belo e livre. Os miúdos saltavam os muros e corriam livremente pelos talhões de margaridas e era maravilhoso vê-los. O pintor compunha sem pressa o azul do mar ao fundo e o pé robusto das árvores ao perto e era muito agradável, agradabilíssimo, prestar atenção ao vento e ao sol e às crianças a voarem juntas pelo prado.

O poeta, no entanto, preferia a chuva e o silêncio. Preferia, sem dúvida, o canto mal aceso do seu carvão, a odor forte do seu tinteiro, o peso enorme dos seus versos impregnados na solene tristeza dos poetas. Era um desses homens infelizes para quem a simplicidade das coisas não faz sentido.

Quando a rapariga que vendia o leite lhe bateu à porta, com as faces cheias de rubor e o coração aos saltos, o poeta não encontrou as palavras certas para responder à saudação. Dentro de si as verdades tinham a dureza do mármore e o espontâneo cansaço de uma mesura.

A rapariga amava-o e ele sabia. Mas não era capaz de viver com a alegria ingénua de um grilo, só com o ímpeto de um tigre enjaulado. Era a sua pena e ele sabia.

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UMA DEMANDA

Hengki Koentjoro - tree in the mist
Fotografia de Hengki Koentjoro

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Cansado das erronias do seu tempo e das injustiças do seu povo e das mentiras descaradas com que um alimentava o outro, cansado da vileza com que ambos destituíam do seu lugar primeiro a bondade entre os homens, Kazuya afastou-se da cidade e caminhou em direção ao nada tantos dias quantos puderam as suas sandálias.

Em certo lugar nevoento encontrou uma curiosa árvore, que lhe parecia tão perdida quanto ele próprio. Junto dela começou a tirar de dentro de si as palavras que guardara e que lhe chocalhavam na cabeça como água a ferver num pote. Disse muitas coisas: primeiro em surdina, depois aos berros, por fim cheio de arrependimento.

Sentiu, então, um grande frio. Uma solidão imensa e devastadora. Uma vontade incontrolável de chorar. Chorou tanto quanto puderam os seus olhos. Em seguida abraçou a árvore, agradeceu-lhe e prosseguiu a viagem pelo meio do horizonte verde-cinzento. Não se soube mais dele do que isto.

A última pessoa a vê-lo foi uma velha fiandeira. Admirou-se que um mendigo assim esfarrapado pudesse estar mais feliz do que uma lâmpada acesa.

E que não lhe tivesse pedido nada, nem sequer um bom dia.

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«O ABENÇOADO»

Homem negro, fotografia de Leroy Skalstad; black man, photo of Leroy Skalstad;
Fotografia de Leroy Skalstad

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Traziam-lhe marfim e ele esculpia-o com a paciência mais apurada de que o género humano é capaz. Os objetos saídos das suas mãos contavam-se entre os que mais vorazmente atraíam a cobiça dos estrangeiros em Brazzaville, em Djambala, em Sibiti, em Mandigou e em todo o Congo. Chamavam-lhe “O abençoado”, embora o seu nome verdadeiro fosse Isidor Nkobanjira. Ao cruzar a velhice gabava-se de possuir, nada mais, nada menos, do que setenta filhos.

Perto do fim, pôs-se a cortar e a perfurar e a abrir sulcos com o cinzel numa presa de elefante. Primeiro entalhou o serpentear de um rio, depois o crescer de uma montanha, a seguir uma revoada de astros perfeitamente hemisféricos. Com minúcia, foi acrescentando a água e os peixes, a terra e as impalas, o céu e os abutres. Encheu o marfim com as criaturas todas de que se pôde recordar, sem omitir o silêncio, a morte ou o medo.

«Todo o universo cabe aqui» pensou Nkobanjira.

Na realidade – reparou com o semblante insatisfeito – ao cabo de tudo ainda lhe sobrava algum espaço.

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«ENTREGA-TE À SOLIDÃO!»

cpeng
Fotografia de cpeng

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Antoine de Saint-Exupéry, malogrado piloto francês que o mundo inteiro conhece como autor das frases magníficas de O Principezinho, escreveu no seu Diário a entrada seguinte, datada de 21.06.1944.

Entre os povos tuaregues de Marrocos e da Argélia, um estrangeiro descobre que as palavras valem mais sendo menos, sendo maior o silêncio que as separa umas às outras. Também aprende que o cheiro das dunas e o efeito de um chá de hortelã (bebido quase a ferver no pico do dia) podem abrir, na sua cabeça obtusa e dorida, corredores profundos e misteriosos.

Esse forasteiro aprende que o valor de um homem é o preço das suas imagens. Das que flutuam dentro dos olhos e que, muitas vezes, são a renascença das suas memórias. Da coragem de regressar aos antigos sonhos, aos impulsos que as noites continuam (impoluta, legitimamente) a segregar dentro de si.

Um homem civilizado desce as províncias de França e os Pirenéus, deixa para trás as velhas fronteiras da Ibéria e atravessa a boca do Mediterrâneo, adentra-se no deserto e torna-se aos poucos um resgatado, um coração limpo, uma criança posta de novo no sussurro da existência.

Esse homem que se arrisca no desconhecido não descobre um simples tufo de ervas no percurso que faz ao longo de milhas. E, no entanto, acorda à medida que as percorre. Não encontra um poço de água ou uma sombra ou outro animal diferente da sua montada. E, porém, jamais se sentiu tão desperto ou tão próximo das formas de vida. Toda a imundície colada ao corpo e todo o lixo aninhado nas partes da sua alma são como que lavadas na fricção contra as milhentíssimas luzes das areias que o vento faz deslizar facilmente.

Quando, de um instante para outro, nuvens de pó se erguem do erg e quase sufocam a paisagem e a sua garganta, esse homem vindo de fora vê como os imazighen resistem cheios de nobreza, tapando sem queixumes o rosto envelhecido e encostando a cabeça respeitosamente ao dorso do dromedário que conduzem.

Um estrangeiro compreende que é no pó que os olhos veem mais longe. É no meio das tempestades que os olhos alcançam a chamazinha do espírito julgado perdido.

Na confusão dos elementos vinca-se nele a certeza de que viver não é um jogo, mas um privilégio e de que não existe outro caminho para a vida senão livrarmo-nos de todas as mentiras que a luz fulminante do deserto denuncia.

Entre os povos nómadas, um homem sedento da verdade escuta frases demoradas.

«Se queres a vida dos outros, entrega-te às cidades. Se queres a tua vida, entrega-te à solidão!»

Demora de facto a atingir este pensamento.

Por isso, um estrangeiro vem. E não regressa.

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