Máscara transparente

Fotografia de Roswitha Schleicher-Schwarz
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Quando se preparava para lavar a boca, antes de sair de casa nessa manhã, Dácil Contreras apanhou um enorme susto: a pessoa ao espelho não era ela. Não só o rosto o desconhecia naquele formato aguçado, como lhe não pertenciam o desenho trocista da boca ou a expressão maligna dos olhos.

Acordou o companheiro, que tinha voltado a adormecer depois da sua saída da cama. Este garantiu-lhe, num tom que misturava irritação, espanto e paciência, que era ela, o rosto era o mesmo de sempre, nada havia de novo nos olhos ou na boca. Pediu que o deixasse dormir e suspirou.

Dácil espreitou-se em todos os vidros, acrílicos, placas metalizadas, poças de água. Não, aquela pessoa não era ela. Definitivamente, operara-se durante a noite um prodígio.

No escritório, quando lhe perguntavam alguma coisa, quando atendia o telefone, quando precisava de responder a Sofía, a colega do lado, a sua voz igualmente lhe soava à voz de outra pessoa. Alguém usava o seu corpo e o deformava, como costuma suceder com um energúmeno.

– Sofía… – Diz-me, filha! – Não notas nada de diferente em mim?

Sofía achou-a mais magra ou talvez mais gorda, não tinha a certeza. Decerto mais pálida, isso. Melhor, mais cinzenta! Perguntou-lhe se andava a tomar comprimidos para alguma coisa.

Dácil escutou os seus próprios ouvidos a chiarem. Sentia-se zonza. Ninguém parecia dar por essa mudança tão óbvia. Não, ela não era aquela que era, era outra, outra que a ocupava, que a desalojava da sua aparência, outra a viver em si como uma máscara transparente. «Olha só o absurdo!» pensou, «Uma máscara transparente!»

As manhãs repetiram-se. Aos poucos diferentes partes do seu corpo principiaram a parecer-lhe metamorfoseadas, trazidas a si no mesmo silêncio e com a mesma magia. Deixou de saber que pessoa era ao certo, quem realmente era. O companheiro abraçava-a, ela chorava.

– Que loucura. És a pessoa que eu conheci há dez anos em Madrid, no Café Gijón, posando nos bonecos da avenida dos Recoletos. És a mesma, amor, estás igual, igualzinha!

Não era, não estava. Uma manhã Dácil não quis ir para o escritório. Noutra manhã revoltou-se com o vizinho que batia no cão vadio da sua rua. Noutra lembrou-se de uma criança muito pequena e muito suja que vira no regresso a casa. Sentiu um desejo infindável de a adotar, de tornar-se o seu anjo da guarda, de ser a sua mãe. Olhava para o mundo com uma ferocidade que não admitia resposta. O que quer que se passasse consigo já não assumia somente uma nova fisionomia em si, penetrava agora no seu espírito. Sabia que o nosso aspeto (ainda que Platão o tenha desligado da alma) está com ela casado, intimamente a ela atado por cordas grossas, como as que no teatro fazem subir ou descer pesados objetos no palco.

Dácil replicava a tudo com ironia, sarcasmo, com provérbios, com frases tão perigosas quanto as que podia a sua consciência afiar. Quando o namorado lhe explicou que «Um filho neste momento não vem nada a calhar», compreendeu que naquela casa morava consigo outra criança, outra criança com ciúmes da que nela pudesse entrar, exatamente como costuma acontecer com um animal de estimação transformado num pequeno rei absoluto, incapaz de partilhar o seu amor com outro inquilino.

Quando Javier acordou ao meio-dia, numa bela manhã solar de fevereiro, tinha sobre a mesa da cozinha um bilhete. O armário de Dácil estava vazio, o telefone desligado. Sofía admirou-se que ele desconhecesse um facto tão significativo: havia duas semanas que a colega se despedira. E não, nada sabia a respeito de planos futuros, causas passadas, paixões recentes.

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Uma história de amor

Fotografia de Masatoshi Washimi
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A pouco mais de meia centena de quilómetros de Quioto fica a aldeia de Kawajima, no sopé do Monte Fo. Daí pode contemplar-se o Lago Biwa e os cumes de outros montes, como os de Minako e Hiei.

Em Kawajima vive Ichiro, um artesão viúvo de apenas vinte e seis anos. Casou aos vinte, perdeu a mulher (a belíssima Sakura) aos vinte e três. Não tem filhos, exceto os maravilhosos cadernos de papel grosso cosidos à mão, os estojos e coldres de couro, os famosos ko-daiko que as suas facas, tesouras e agulhas constroem dia e noite, noite e dia.

Ichiro não é um homem melancólico. As suas mãos trabalham depressa e os olhos e ouvidos não perdoam lapsos. A perfeição é uma ordem, tão ontológica como o fogo, como a água do riacho onde vai beber, como a majestade dos animais ferozes que de quando em quando se aproximam do seu casebre.

Nesta altura do ano, contudo, lembra-se muito de Sakura. Era uma mulher simples, ainda uma rapariguinha, de encantadores olhos cor de mel e silhueta elegante. Sente em especial o vazio que ficou no lugar onde os braços de Sakura o apertavam, no lugar onde os seios de Sakura o despertavam, no lugar onde os cabelos soltos dela o acariciavam e o faziam rir. Nesta altura do ano, as cerejeiras principiam a carregar-se de um tom maravilhosamente claro, enchendo-se de pequeninas pétalas de cores rosa e branca, em tudo idênticas à luz do nascer do dia.

A essa hora Ichiro sai para o jardim completamente nu, colhe um punhado de pétalas repletas de orvalho e esfrega com elas o rosto, o tronco, o sexo, os braços e as pernas.

Este costume causa a maior admiração na aldeia. Ninguém compreende o seu significado ou a exata doença de que padece. Um estudante de medicina, num dos regresso à cidade natal, interessou-se pelo assunto. Prometeu reportar o assunto aos mestres na universidade. Aí lhe dirão com toda a certeza a qual género de loucura obedece a cabeça de Ichiro.

Não lhe dirão que na noite de núpcias o jovem casal, depois de terem feito amor pela primeira vez, olhando os alvos lençóis manchados pelo sangue de Sakura, prometeu que naquele leito jamais se deitaria outro homem ou outra mulher. Era uma entrega para sempre, uma jura de amor.

Quando o desejo atiça Ichiro, a dor da partida precoce da esposa é lancinante, uma dor que aperta as cordas da sua alma como ele aperta as cordas dos pequenos tambores que constrói.

Limpa-se, portanto, do desejo com a casta beleza das pétalas das cerejeiras, com a água visceral que escorre dos telhados e das folhas, com o frio do vento por onde o espírito de Sakura (tinha a certeza) vagueou toda a noite, infeliz e cheio de saudade.

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A velha casa

Fotografia de Sven Fennema
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Aquele lugar tinha sido magiar, romano, bizantino, otomano, húngaro, soviético. Agora era de que tivesse muitos euros e bom gosto. Sobre os velhos hotéis foram levantados novos e luxuosos empreendimentos turísticos, rivalizando em número de quartos, prestação de serviços e anúncios em línguas estrangeiras. À entrada da cidade, uma placa dizia «Üdvöljük Tihanyban», querendo dizer «Bem-vindo a Tihany». Na verdade, deveria antes explicar «Desfrute o Lago Balaton». Pela sua arquitetura e decoração vintage, destacava-se na vertente sul o Hotel Olympus. Aí, em qualquer varanda e com alguma sorte pode estar-se no paraíso.

A vista é, indubitavelmente, soberba. Sobranceiros ao curso de água avistam-se belos palacetes ao gosto da Renascença, perfilando-se compridos ciprestes e pátios com colunas de mármore, aonde sobe volta e meia a elite para uma boda, um pôr do sol ou para uma sessão fotográfica nos meses de verão. No inverno as montanhas ao redor do Balaton cobrem-se de nevoeiro e depois de neve e todo aquele lugar é uma pintura romântica, para onde convergem artistas, filósofos, magnatas, predadores de toda a espécie e de todas as vocações. São especialmente assíduos os cineastas e fotógrafos americanos, sequiosos de génio, antiguidade e mulheres europeias.

Em dezembro de 98, o californiano Mike Juno alojou-se no Olympus no momento em que fazia uma tour com uma assistente argumentista para preparar a rodagem do filme de ação com que tencionava alcançar recordes de bilheteira no final do ano seguinte. Aí conheceu, também por circunstâncias profissionais, a fotógrafa franco-canadiana Danielle Ducrot. Conviveram duas manhãs, duas tardes e uma noite. Os hóspedes vizinhos do quarto 507 denunciaram sucessivamente nessas noite e madrugada o ruído escandaloso que dali chegava. O jovem na receção tentou sem sucesso fazer alguma coisa, convencido de que o problema se resolveria sozinho. E resolveu. Porém demoradamente.

Após isso, a fotógrafa regressou a Budapeste, de onde seguiria para Nice e de lá para Vancouver. O americano ficava mais uns dias. Deixou-se cair, entretanto, numa melancolia extática, a que jamais havia cedido em toda a sua existência de quase meio século.

Prova do que dizemos foi a caminhada que decidiu fazer até a um miradouro lá no alto da peninsulazinha. Fê-la sozinho, levando consigo uma mochila e a sua Leica vetusta de celuloide. Era uma manhã solar, silenciosa, sem excitações de espécie alguma. Danielle partira e da anterior lascívia restava apenas uma memória contaminada. Em Los Angeles esperavam por si uma mulher jovem e um filho pequeno. Havia semanas que a sua viagem de volta ia sendo protelada. Ocorreu-lhe a semelhança com Ulisses. Por um breve momento, coincidiram dentro de si o orgulho, a vergonha, o medo e o desejo de catarse. Era simultaneamente um homem velho e um homem novo, um bandido e um contrito. Aquilo nunca lhe havia acontecido. Sentia uma propensão quase irresistível para as lágrimas. Apeteceu-lhe abandonar o mau filme em que se via aprisionado e começar ab radice uma película nova, complexa, abstrata, a que chamaria «A velha casa».

Mas foi somente um instante, uma iluminação, uma turvação, provavelmente por culpa daquele sol, daquele espelho de água, daquela maldição que ata os europeus a labirintos sinistros.

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Um mestre taoista

Fotografia de Gunarto Song
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Yuan Chen e Zhou Zhao eram os discípulos mais madraços e descuidados na escola de Li Bei. Durante os primeiros anos serviram de exemplo e chacota aos jovens aprendizes da sua classe, tantas tinham sido as ocasiões em que o velho mestre lhes repreendeu publicamente a preguiça e as outras imperfeições e ainda mais as vezes em que despertaram a risota dos colegas.

– O sábio aprende por si mesmo, antecipa as lições, adivinha o percalço, evita o erro e a desonra.

Uma manhã, após uma noite de vigília e chuva intensa, o sol regressou ao cimo das árvores e fazia rebrilhar as inumeráveis perolazinhas suspensas dos ramos da cerejeira vermelha e dos zimbros azulados.

Zhou Zhan admirou-se com a dureza da luz assim refletida nos pingos supervenientes da chuva. Eram como minúsculas estrelas alumiando o jardim e ao mesmo tempo queimando os seus olhos. Lavou o rosto, passou água pela cabeça e pelo pescoço, depois orou, depois bebeu um gole de chá, depois escreveu sobre tiras de bambu em belos ideogramas, pincelados com amor:

cada coisa tem o seu fogo,
Cada homem tem a sua luz,
Todos nós ardemos por dentro
E por fora ardemos de novo,
Morremos como o sol e a chuva,
E a cada instante renascemos.
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Além soou o gongo. Li Bei chamava. Se não se apressasse, Zhou Zhao seria mais uma vez advertido com veemência, sentindo-se cada vez mais afastado do caminho celestial prefigurado por Chang Tao-ling, mestre dos mestres, sábio maior entre os sábios. Sentia vergonha da sua conduta, pois andava de boca em boca como os ensinamentos de Lao-Tsé e do Daozang e bem o via no olhar trocista dos rapazes que à sua frente se distinguiam na filosofia e nas artes marciais.

– O caminho de cada um de vós há de levar-vos como tigres às montanhas mais altas, mas só alguns podereis alcançar o coração dos mortais e, como o vento, unir-lhes o coração de pedra às coisas que se encontram a seu lado. Esses, de entre vós, serão admirados por muitos séculos, pois é pura a sua sabedoria.

Yuan Chen aprendera a contentar-se com uma tigela de arroz. Zhou Zhao, por seu turno, sentia um grande desgosto. Jamais seria um “candil no meio da noite”, jamais compreenderia os mistérios a natureza e os segredos do universo, jamais alcançaria a beleza íntima das coisas. Era uma vergôntea teimosa e não um tronco direito, liso e leve.

E por isso escrevia. Por isso olhava a superfície dos fenómenos, anestesiando-se com o canto da água e o doce farfalhar do bosque, refugiando-se nas mínimas labaredas que a todo o momento deflagravam à sua volta. Queria ver: era nisso que se concentrava ultimamente.

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Salomé

Fotografia de Erhan Dayi
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Era a bailarina de que todos falavam.

Graciosa, leve e desprendida, parecia bailar como um dente de leão pelos jardins numa manhã de maio. Chamava-se Ebba Lindberg, mas podia chamar-se Salomé. Possuía uma grande beleza e por causa dela impunha um enorme respeito. A beleza e a graciosidade costumam esmagam o coração dos que amam e às vezes também a cabeça dos que pensam. Havia entre estes últimos um rei, melhor, um rei e o seu filho.

Esse rei podia, mas Salomé (ou seja, Ebba) podia ainda mais, porque se apoderara não só do coração e da cabeça do rei, como do coração e da cabeça do príncipe. Dir-se-ia que não apenas do afeto e do juízo destes dois, mas do coração e da cabeça dos súbditos, talvez não de toda a nação, mas seguramente da que nessa noite enchia os camarotes e a plateia da Kungliga Operan, em Estocolmo.

O velho monarca Gustav escutava no foyer o entusiasmo do filho, que, indiferente ao incómodo crescente da noiva Margareta, tecia extáticos elogios à protagonista de La Sylphide. O intervalo felizmente não demorava muito. Ebba (Gustav teimava em recordar Salomé) bailava intensamente, como uma corola de papoila que se tivesse soltado do caule e fosse subindo sem custo a leve colina de um país inteiro. O ciúme roía as cordas a que Gustav se segurava. Era como uma espada de vento, macia e letal. O filho amado parecia-lhe simplesmente odioso, quando assim desafiava as regras sociais.

Chamava-se Ebba Lindberg, mas podia chamar-se Salomé. Graciosa, leve e desprendida, parecia nem suspeitar de como por sua causa cabeças rolavam, entontecidas, fascinadas.

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Só queria dormir

Fotografia de Vito Guarino
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Olhada do quinto andar a rua era toda ela chuva. Chuva miúda, persistente, escorrendo nos vidros, dos telhados, debaixo dos candeeiros, contra as pernas apressadas das senhoras que entravam e saíam na estação de metro.

Ao tipo do 5.º D apetecia-lhe dormir, dormir indefinidamente. O asfalto molhado, o som dos pneus a cortar os charcos lá em baixo, o cheiro húmido na roupa deixada negligentemente no estendal, o facto de ter recebido más notícias do hospital funcionavam juntos como um comprimido dos fortes. Ao tipo só lhe apetecia cair de borco na cama, fechar os olhos e apagar-se.

O telefone tocou.

Que porra. Quem seria? Fez um esforço sobre-humano para se erguer e aguentar nas pernas, caminhar até à mesinha da sala, apanhar o aparelho e atendê-lo.

Viu no ecrãzinho o número sem o reconhecer. O telefone continuava a tocar, as mãos pareciam encarquilhar-se-lhe sob o peso do objeto, a chuva esbarrava-se nos vidros, um cão ladrava, o elevador estremecia nos cabos, o telefone tocou mais duas vezes e, por fim, calou-se.

Arrastando os chinelos, o tipo regressou à cama. O cinto do roupão dançava-lhe à frente, atirando-se à toa para aqui e para ali à medida que ele caminhava. Deixou-se cair na cama, puxou como pôde a roupa e respirou fundo. Era bom poder estar assim, enfiado naquele ninho como no ventre de uma mãe.

Simplesmente alguém tinha urgência em falar-lhe. O telefone recomeçou a tocar. Que martírio trágico para a humanidade terem-lhe retirado o direito ao silêncio. Quantas vezes iria aquele energúmeno dispositivo amofiná-lo? QUANTAS VEZES? Teria de o rebentar todo? Mandá-lo janela fora?

O silêncio que se seguiu desta feita era diferente. Era um silêncio enervado, crispado, quase com ódio. Na sua existência de trinta e cinco anos o mais parecido que tinha visto com o seu íntimo desejo de silêncio eram as pinturas de Vilhelm Hammersøi Gostaria de viver dentro de paredes assim castas e caladas, iluminadas pela enxuta luminosidade de um sol matinal, lendo o seu poemário, ouvindo Bach, Barber, Chopin, Marcello, Schubert, pintando retratos da moderna civilização, bebendo whisky.

A sua paciência estava claramente a ser testada. No mesmo instante em que se levantava o vento e a chuva parecia salpicar a varanda, o telefone voltou a tocar.

Desta vez a cólera acendeu um sentimento mais forte. Encaminhou-se para a mesinha, tomou conta do pequeno demónio e atendeu com toda a rudeza de que foi capaz.

– SIM???

– Estou a falar com o Sr. Miguel Santos?

– ESTÁ A FALAR COM O SR. MIGUEL RODRIGO ALBUQUERQUE SANTOS. POSSO SABER PORQUE ME ESTÁ A LIGAR???

Era da contabilidade do hospital.

–  QUANTO?!

– Trezentos e cinco euros e quarenta cêntimos… é um valor acumulado… respeitante a várias consultas, Sr. Santos.

O tipo passou-se. Uma onda de calor atravessou-lhe a moleira, dava-lhe a impressão de que ia ter um AVC.

– PAGUEI TODAS AS TAXAS MODERADORAS. TODAS, MINHA SENHORA! MEXAM O CU E FAÇAM O VOSSO TRABALHO. NÃO ME FODAM A CABEÇA. VÃO PARA O RAIO QUE AS PARTA!

Havia num canto da varanda um canteiro improvisado onde se cingia meia dúzia de vasos com begónias. Foram lá parar os restos mortais do telefone. Pedaços de plástico e de borracha por toda a parte.

O tipo sentou-se. Empurrou o volume de uma Enciclopédia de Pintores Impressionistas para os pés do sofá. Deitou-se, puxou o cobertor. Que dor de cabeça. Era imprescindível respirar e acalmar-se. Procurou no bolso do roupão. Tirou um Alprazolam, engoliu-o e fechou os olhos.

O silêncio tornava cada móvel, o cavalete, os quadros guardados e cobertos com um lençol branco testemunhas angustiadas daquele sofrimento.

– Foda-se. Que farrapo!

La fora a chuva ensopava a tarde, reluzia por cima dos toldos e sobre o tecido dos guarda-chuvas, tornava o ar pesado, quase viscoso. Dentro as assoalhadas pareciam impregnadas pelo cheiro característico do mofo. Era de cortar os pulsos.

O tipo já praticamente roncava, anestesiado pelo miligrama do Alprazolam, quando o telefone se acendeu todo, as luzes esventrando as camadas de plástico resistente, o visor mostrando como uma boca desdentada somente metade de um número, o grilar rouco anunciando como podia uma nova urgência.

Não podia ser verdade. Era mofa. O grande cabrão não morrera, ainda tocava do outro lado do vidro, moribundo, tinhoso, servil.

O tipo só queria dormir. Estava quase lá. Só precisava de um pouco mais de tempo, quase lá, de mais um pouco…

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O nevoeiro

Fotografia de Mikael Stålsäter
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Tinha chovido toda a semana. Quando os ossos de Lev Volodya começaram a palpitar de incómodo pôde assegurar com toda a convicção:

– Vamos ter muda de tempo.

Com efeito na véspera, ao princípio da tarde, a chuva parara e o vento tornou-se apenas um burburinho encanando aqui e além na rua. Ao crepúsculo notava-se já a humidade a subir do rio e do alcatrão, em grandes mechas vaporosas que roçavam as pontes, as estátuas, os postes elétricos, as torres altas das igrejas, os edifícios governamentais, as grandes antenas da televisão, toldando o céu num efeito de gaze ou algodão a esconder uma ferida.

Na manhã seguinte, toda a cidade tinha sido engolida pelo nevoeiro mais cerrado de que havia memória. Tão espesso e ubíquo que não se via vinte palmos à frente dos olhos. Saía-se de casa e ficava-se imobilizado. Os pés não se encontravam.

Yelizaveta Dmitrievna, agasalhada no seu casaco polar, calçando luvas de pelica e botas altas, teve a sensação de estar dentro de uma pista de dança. O velho guarda-freios Maksim Krutaya, por causa da sua pequena estatura, quase anã, era só uma cabeça, andando para a frente e para trás como um carreto avariado. Esta imagem faria rir sem dúvida se o assunto fosse para brincadeira. A uns bons sessenta ou setenta centímetros do chão não se descortinava absolutamente nada.

Durante o dia a treva húmida e esbranquiçada acomodou-se ainda mais entre as formas, penetrou portas e paredes, colocou-se mesmo diante dos óculos do professor Vasily Grisha e da sua esposa, Mariya Irinushka, que não parava de os desembaciar, enquanto lia calmamente o jornal diante do samovar.

– Sabe, estou a tentar recordar-me da última vez…

Vasily Grisha calou-se assim mesmo, a meio da frase.

– Ora esta… Esqueci-me do que estava a dizer…

Mariya Irinushka não prestou atenção. Mas pouco depois, quando o telefone tocou e teve de indicar o próprio nome não foi capaz de o fazer.

O fundo do corredor era uma vaga memória, como quando se olha de longe um caminho, no meio de uma charneca, entre cercas infindáveis de madeira. As fotografias dos filhos, das noras, dos netos, pareciam desbotar num grito silencioso de afogado. Que estranho!

Nessa noite, uma grande paz caiu sobre São Petersburgo. Embaçados e esquecidos das sólidas certezas, os olhos de todos preferiam voltar-se para dentro, descer escadarias mais arriscadas, procurar lugares de sol que apenas cada um por si podia lobrigar.

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