O PROFESSOR ARCÍLIO

Foto: Rapahael Guarino
Foto: Rapahael Guarino
É difícil recompor em palavras os tiques do professor Arcílio Pinto. Diria que o tornou famoso o costume de bater com as costas da mão direita na boca e a ir empurrando ao nariz e pela testa fora até à sonora fungadela final, com que se despedia do espasmo e se concentrava de novo em nós, caloiros estupefactos.
 
Diria ter-se nele tornado não menos conspícuo o escancarar da boca, quando travava as frases com nomes em P.
 
‒ … eis portanto aí, grosso modo, a génese do hodierno pensamento.
 
Fazia-o numa imitação perfeita do Marlon Brando mafioso.
 
‒ … isso, meus caros e minhas caras, é o que se estatuiu chamar de paradoxo!
 
Com a mesma expressão circunflexada dos bóxeres.
 
‒ … em suma, esse o sistema de Parménides
 
A tudo sobrepunha-se o arregalar dos olhos.
 
Arregalava-os muito, num gesto de perplexidade, para dentro dos livros, como se neles tivesse encontrado, de súbito, uma bizarria, um escândalo, uma condenação.
 
‒ Nietzsche afirmou-o… Heidegger afirmou-o… Sartre afirmou-o…
 
Fechava com ímpeto a edição do Para além do bem e do mal. Os olhos exorbitavam-se-lhe uma última vez. Fuzilava a plateia. Nietzsche, Heidegger, Sartre ter-se-iam encolhido connosco, assustados e arrependidos. A voz cavernosa de Arcílio Pinto compensava o gestuário destrambelhado.
 
Não havia território seguro na sala. Nem muito lá trás, na penumbra do auditório, onde os boémios e repetentes (encolhidos, assustados, arrependidos) se esforçavam por não existir.
 
 ‒ O cavalheiro de barba, na terceira fila a contar do fim, à direita: o que me diz deste problema?
 
Havia uma infinita peculiaridade nos problemas do professor Arcílio. Lembro-me de uma conferência:
 
‒ Imaginem os senhores e as senhoras a seguinte situação: de manhãzinha, quando estão a tomar o pequeno-almoço, dão-se conta que as duas partes da embalagem A Vaca que Ri não coincidem no lugar do logótipo, no código de barras, nas informações da empresa. Os senhores e as senhoras, que nunca haviam reparado nessa minudência, dão-se conta que não conseguem sair de casa nessa manhã sem acertar a informação que ficou nas duas metades da embalagem. E porquê, não me dirão?
 
O professor Arcílio Pinto batia, então, com as costas da mão direita na boca e empurrava-a, entre fungadelas, até ao cimo da testa. Esperava a resposta. Nós também!
 
‒ Porque o sentido estético é latente, emergente, intrínseco à condição humana. Meus caros senhores e minhas caras senhoras, o sentido estético, que em última instância é amoral, concita um princípio de ordenação das coisas…
 
O cenho abespinhava-se-lhe.
 
‒ E eu pergunto se tal princípio não é ele próprio uma moralidade? Mesmo que em potência?
 
Lá estava o P, a palavra potência, a pausa dramática, a boca escancarada (um escancaramento horrível de trombótico), o raciocínio tortuoso, a expressão snob de académico, a vontade de rir à vez com a vontade de esbofetear.
 
‒ Essa moralidade educa a consciência. Um dia em lugar de uma embalagem, temos uma animal abandonado na rua, um mendigo, uma mulher maltratada… E, então, a consciência impede-nos de arredar o pé, de desviar os olhos, de não agir…
 
Há dias, numa das minhas deslocações profissionais, reencontrei o velho mestre de Introdução à Filosofia do Conhecimento. Tão igual a si mesmo que senti um abalo. Tão igual a si mesmo que senti quase o terror de um déjà vu. Caminhava calmamente pela alameda universitária, com a mesma sacola de couro, a mesma repa desordenada sobre a fronte, a mesma fisionomia de génio doido.
 
Aposto que não se reformou. Aposto que os caloiros de agora ainda o veem a fungar e a arregalar os olhos. E a trazer à luz do dia filósofos renitentes, autores de afirmações e teses que talvez quisessem desdizer, renegar, guardar no sepulcro do pó.
 
‒ A menina de echarpe bordô, na antepenúltima fila: o que nos pode dizer sobre a dúvida hiperbólica de Descartes?
 
Aposto que o professor Arcílio Pinto massacra, ainda, com Nietzsche, Heidegger e Sartre. E que lá bem no fundo do auditório, numa nesga de sombra, algum boémio treme, ainda, rezando para que não o chamem a depor, a testemunhar a sua insuficiência em silogismos e epistemas, a merecer uma reprovação…
 
Foi um baque, quase arrisco confessar uma saudade! Os senhores e as senhoras, claro está, entendem! Entenderão!
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