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Chegará uma altura em que preferiremos não ter proferido uma única palavra, meu amor. Será o silêncio a dizer por nós o que as palavras não podem. Porque as palavras, como os aleijões, como os paralíticos, como os corpos encarquilhados pelo reumatismo, não conseguirão dar mais um passo. Limitar-se-ão a ter querido. A esboçar um rumor. A pingar um sorriso.
Tu sabes como o receio. Como tenho pavor desse silêncio. Dessa língua envelhecida, atrofiada, incapaz de um milagre. Dessa desabafo desamparado.
‒ Sabes, hoje sinto-me tão triste…
E haverá um encolher de ombros. Continuarás a preparar as tuas aulas com os óculos sepultados no fundo do nariz. Replicar-me-ás com blandícia. Um gesto tão inútil quanto as flores de plástico numa jarra da cozinha.
‒ Claro que sim, meu anjo…
Terei os olhos tresmalhados na varanda, pela rua, de encontro aos prédios grisalhos, sem poiso certo. Olhos trôpegos, sujos, vencidos pelo meu próprio tempo.
‒ É como se pudesse morrer a qualquer instante…
E tu, teclando com dificuldade, esforçando-se por conjugar parágrafos, imagens, formas, tamanhos e tipos de letra, com as lentes trespassadas pelos pixéis agressivos, multicolores, desumanizados de um computador de uma outrora novíssima geração, consolar-me-ás como quem consola de raspão um moribundo.
‒ Claro que sim, meu amor…
A língua não é inesgotável. Filões de metáforas, adjetivos, interjeições, belas frases singulares, tudo exaurido até ao amuo. Até ao monossílabo. Até ao grunhido.
‒ Sabes do que tenho saudades?
As ruas serão uma feição estranha. Em vez de miúdos, velhos brincarão em parques solitários até que os venham resgatar à penumbra. No lugar das placas alusivas a monumentos históricos, nascerão da grama dos jardins evocações a grandes escombros removidos. Dispositivos eletrónicos repetirão, dia e noite, olvidados, o som de animais extintos…
‒ Claro que sim, meu querido!
E eu falar-te-ei das palavras. Da saudade das palavras. Do vigor de ter desejado, compreendido, justaposto palavras. Falar-te-ei da palavra enxuto. Da palavra aconchego. Da palavra apaziguado. Da palavra pernoitar. Da palavra sopro. Da palavra dúctil.
‒ Acho que me tornei num fantoche!
E tu, com a mesma expressão, os mesmos lábios (agora mais engelhados, distraídos, dormentes), a mesma placidez, suspirarás, como quando o suspiro é uma evolação, uma faúlha, uma despedida.
‒ Claro que sim, meu mais que tudo!
As ruas já não serão paredes, becos, muros, cercas, mas dormitórios verticais. Criaturas voadoras robóticas, pterodáctilos ultramodernos, trar-nos-ão a ração alimentar. Silvos metálicos atravessarão as paredes, como o faz agora a euforia dos pássaros…
‒ O mundo já não é para nós…
E tu, mais feliz agora, aliviada, com a expressão de quem acoita com estoicismo uma hérnia, de quem sabe ter valido a pena, de quem desliga a máquina, a luz o trabalho, responder-me-ás.
‒ Claro que sim, meu amado!
E daremos um beijo. Será como um encosto de pele. Pele ressequida e fria. Pedirás que use o comando para preparar a mesa de jantar. Um resto de nostalgia circulará pelo cubo da casa. Serão praticamente sílabas, moléculas prosódicas, vazio. Uma solidão engessada e incurável juntar-nos-á à mesma comida insossa. Nada haverá a dizer. As palavras estarão gastas. Tão estafadas como os nossos ossos.
‒ Nunca deveríamos ter chegado a velhos…
Saberei que me escutas. Que me reconheces. Que a mesma decrepitude nos lavou com cinzas o rosto, os braços, o tronco, o sexo, as pernas. Que o amor pode restar num miligrama de coração. Que terá valido a pena.
‒ Claro que sim, bebé!
E dormiremos juntos. Agarrados um ao outro. Como náufragos à sua tábua bendita. Sem uma palavra mais. Como se o silêncio pudesse dizer por nós o que as palavras não podem. Como se a noite não fosse tão longa. Tão assustadora. Tão rente a um e a outro.