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As casas dos pobrezinhos começavam ao pé da escola primária. Eram pequenas e coloridas, com portas e janelas sempre abertas e soleiras maravilhosamente gastas, onde se vinham sentar, à vez, os pobrezinhos e os cães dos pobrezinhos. Havia muitos cães diferentes, porque havia também muitos pobrezinhos. Que eram sempre muito atenciosos. Apesar de pobrezinhos, não lhes faltava que dizer quando vínhamos a correr para casa («Adeus, meus meninos!», «Deus vos abençoe, meus filhos!», «Ide com cuidado!»), ou quando, a passo lento, pontapeando o invisível, meditabundos, desprovidos de vontade, regressávamos pela manhãzinha à escola («Bom dia, meus meninos!», «Aprendei muito, filhos!», «Portai-vos bem!»).
Aflorava-lhes frequentemente uma lágrima ao canto do olho. Já então reparava muito nisso. Porque os pobrezinhos, na sua maior parte, eram também velhinhos. Sem reforma (e, portanto, não engrossando a mole da «peste grisalha» que se abateu sobre o país, segundo o augusto deputado Carlos Peixoto). Sem reforma, mas com aquele olhar vago que os velhinhos pobrezinhos normalmente exibem quando não pensam em nada e pensam em tudo.
Além da lágrima, havia o catarro. Porque essas almas boas se punham a falar, por cima dos muros, para os vizinhos, dos netos ausentes. Diziam, por exemplo «Tenho lá em França dois da idade destes rapazitos». Ou «A minha Laurinda tem lá um tratante como este aqui!». Ou «Vêm agora nas férias. Que Nossa Senhora mos traga direitinhos!»
Os pobrezinhos velhinhos possuíam, ainda, cada qual, a sua mulher. Que era uma velhinha de lenço preto na cabeça, sentada numa cadeira, com um ar tão calado e fixo que, ao meditar as cinquenta ave-marias do terço, lembrava um coelho a ruminar alface. Ao contrário dos maridos, as velhinhas não diziam coisa nenhuma, como se os seus olhos
indiferentes e baços nos não pudessem alcançar. Eram a imagem mais próxima do que mais tarde chamaria tristeza. Uma tristeza que se colava à pele e que transportávamos muitos metros, até que o canto de um grilo, o cheiro do pão fresco ou a súbita aparição das amoras num silvado nos distraía de novo.
Enquanto caminhávamos (a pé, fizesse chuva ou fizesse sol), gostávamos de contar histórias uns aos outros. Às vezes trocávamos segredos. Dizíamos muitas mentiras. Que eram um compêndio de pura amizade e lírica dissertação sobre os sonhos. Todos queríamos muito ser alguma coisa. Ser alguém. Aliás, era o que os velhinhos pobrezinhos nos recomendavam em primeiro lugar. «Estudai muito para serdes engenheiros, meus filhos!». Ou «A barriga é a casa melhor, a cova a que dura mais e a escola a mais importante!». Ou ainda «O que agora aprendeis ensinai um dia no dobro!»
Estas frases intrincadas eram ditas sem solenidade. Porque os velhinhos, de foice em punho, ou munidos de uma tesoura da poda, filosofavam ao mesmo tempo que aparavam os galhos de uma macieira ou podavam as vides. Eram ditas com uma tal sinceridade que o tempo não foi capaz de as engolir. Nem sequer soterrar com frases mais elucubradas, vindas dos cartapácios de Wittgenstein e Heidegger, Russell e Popper.
Quando um destes amáveis homens desaparecia e a porta e as janelas de sua casa se fechavam num silêncio de tapume, os nossos passos arrastavam-se mais. Era a melancolia a despontar. Sentíamos uma pena enorme. Porque naquele bocado do caminho se acabava um pouco do sol que nos iluminava a alma e nos fazia viajar com alegria. E a alegria era uma palavra com peso. Porque nessa época ser-se alegre era o mesmo que ser-se saudável. E os velhinhos pobrezinhos, quem havia de pensar, tinham a sua quota-parte de responsabilidade na nossa saúde!
O último desses exemplares de excelente humanidade deixou-nos há dias. Espantei-me da sua longevidade. Tão velhinho que dois dos cinco filhos o tinham antecedido na morte. Tão pobrezinho (o dinheiro é sempre pouco neste país de pobres) que o seu último desejo, contaram-me, era chegar ao tempo do vinho doce e poder beber dele um copo! E nem isso lhe concedeu o destino! Avaro destino, o dos pobrezinhos! A sua casa, colorida, escassa, com as suas árvores de fruto, o seu muro pequeno e muito branco, lá ficará em silêncio. Com a porta e as janelas fechadas. A soleira muito gasta. O cão triste e latindo. Sem perceber como pode o destino ser tão cruel para certas criaturas.