Antes de o calor se tornar arquejante, pode-se aproveitar no máximo duas ou três horas de frescura. Pela porta e pelas janelas abertas corre uma aragem agradabilíssima, um ventinho que amacia os pensamentos, que às vezes carrega o cheiro das praias e do mar, outras vezes traz subtilmente o aroma verde das hortelãs e dos tomateiros, e que é, em todo o caso, o melhor do dia.
O calor cada vez mais excessivo nos meses do estio é a causa deste ódio do alfaiate Iñigo Larraona à terra ancestral. Nos sonhos – se sonhar pode dizer-se do desconcerto de imagens e de pessoas na sua cabeça durante a noite – caminha amiúde por inóspitos carreiros de pedra calcária, sempre descalço, com a planta dos pés e a garganta num ardor igual, violento, de maceração e agonia. As cabras deambulam debaixo do sol em busca de uma sombra ou de arbustos que lhes matem a sede.
Iñigo conhece um sítio onde a água pode ser encontrada, água leve e límpida como toda a água boa. Fica para lá do pinheiro manso solitário, numa das encostas da colina que tem de subir a muito custo. Há um opérculo de madeira, meio escondido pelo giestal, que tem de remover. Depois há uma corda que puxa e que traz do fundo um pequeno pote de barro. Pode então saciar-se.
A sensação é ambivalente: bebe com sofreguidão, lava o rosto, molha a sola dos pés, volta a engolir o manancial prodigioso empoçado nas rochas. A água escorre, ardeja, silencia o clamor da pele. Mas é então que regressa o pânico. Onde estão todos? Onde se enfiaram os amigos? Que solidão é essa que o cerca aí de todos os lados e se torna um pesadelo tão poderoso capaz de o expulsar de si e da sua infância?
Antes de o calor cair com toda a força no país, Iñigo Larraona regozija-se com a paz das manhãzinhas. Na mesa larga do seu ofício, confirma os números com a fita métrica, empurra com gentileza o giz sobre o tecido, recorta as peças, alinhava-as. A brisa faz empolar suavemente o volume de papéis. De quando em quando interceta o fumo de algum cigarro transeunte, ou o aroma dos pêssegos capturado na frutaria da esquina. O alfaiate sente uma pena imensa que estas coisas durem tão pouco e que não as saiba guardar. Não é fácil limpar-se dos pesadelos, ou calcular com precisão o poder que eles detêm, ou compreender a razão por que tantos anos depois continua a sentir-se vazio, descalço, perdido no meio da vida.
Depois, quando o grande lume deflagra nas vidraças e necessita de encerrar as persianas, o sufoco é maior. Não lhe apetece nada, tudo é uma agressão contra si e contra o mundo. Não escuta a voz de nenhum dos vizinhos, nem o ganir dos cães. A solidão encurrala-o sem misericórdia. Não lhe apetece nada, exceto fechar os olhos. Receia, no entanto, que se o fizer, possa sentir os pés em chamas e a garganta torturada por uma sede insatisfazível.
É um homem comum, em suma. Temos razão para acreditar, ainda assim, que todas as criaturas comuns possuem um hemisfério sombrio, ctónico, sem dúvida merecedor de atenta psicanálise e da melhor literatura.
O disco do esmeril continua a girar um bom bocado. É esse som que enche a oficina quando o velho a abandona por alguns instantes e vem para a mesa de pinho no pequeno átrio pregar as tachas. Lá dentro deixa tudo à mão de semear e de colher, a porta escancarada, a lampadazinha acesa, o garrafão de vinho posto entre as coisas frescas do chão.
Não há outra loja de sapateiro na aldeia, nem nas aldeias vizinhas. O velho Faustino goza do prestígio de todas os artesãos únicos, é o que faz, não se conhece da sua pessoa mais do que os gestos rápidos, decididos, vigorosos, com que cose as peles, cola ou substitui um tacão partido ou lixa e arranja as chancas dos lavradores. Toda a sua existência cabe neste casebre onde se encafua longas horas do dia, casebre no interior do qual se alinham meia dúzia de estantes carregadas de botas, sapatos, chinelos, galochas, calçado novo, velho, assim-assim, saído recentemente das suas mãos, não reclamado, esquecido, bonito, feio, elegante, miserável, consertado, sem conserto.
No verão põe uma pequena mesa de pinho à sombra de um cipreste e é aí que se queda, sentado num mocho, duas tachas presas aos lábios, as mãos trabalhando de cor na peça, sem a ajuda dos olhos que só de longe a longe voltam ao ofício, tão sôfregas estão ao movimento geral da ruinha e da praça em baixo e das outras ruinhas mais ao fundo. Dentro, a banca é caótica. Nela, além dos tornos e das serras, atropelam-se formas e formões, martelos e latas repletas de pequenos pregos, facas e tesouras, alicates e torqueses, sovelas e tiras de couro, rolos de linha, colas e pincéis, espátulas, lixas e toda uma horda de utensílios com puas, lâminas, cerdas e cabeças metálicas. O velho Faustino parece não dar pela sua presença, mas no momento certo sabe dar-lhes uso. Nunca com maior prazer do que quando acompanhado por algum outro velho, intrigado por alguma notícia, espevitado pelo lance dramático de uma coscuvilhice nova.
– Então, a tua mulher zangou-se com a irmã, Martins?
– Olha, Faustino. A minha cunhada é douda varrida. Ninguém a atura, nem o homem!
– Oh, que diabo. Não me digas…
O Martins dispõe-se a contar e o outro a ouvir, mas os dedos do sapateiro sentem um alto, avaliam uma desconformidade, determinam uma urgência. Lá precisa ele de reentrar na loja e de pedalar no rebolo. A pedra do esmeril principia a desbastar a língua de uma fivela, que o Faustino quer direita e no tamanho certo, não seja ela para umas sandálias em cabedal puro, de encomenda. As chispas e o ruído calam temporariamente o Martins, mas o sapateiro reaparece, o disco do esmeril continua a gemer uns instantes no escuro e a conversa é reatada.
– O Senhor nos dê juizinho até à hora da nossa morte, ó Faustino!
– Mas então?
– A minha cunhada de há uns meses para cá vem a minha casa todos os dias. Chateia. Pela-se por tudo, pede à minha Isabel um cabo de cebolas, um chapéu de palha, um vaso de manjericão, um casaco, um litro de azeite. É uma chorona, Faustino. Aborrece…
– A tua Isabel que a mande à bardamerda, Martins!
– A minha mulher tem a paciência de uma santa, mas a irmã azucrina. Deu, imagina tu, em querer-lhe uma panela…
– Uma panela?
As mãos habilidosas do sapateiro não querem acreditar que uma panela possa estar na origem de um cisma familiar. Interrompem-se com grande admiração, para logo de seguida procurarem uns desperdícios imundos que besuntam com graxa e correm no couro.
– Uma panela, das de cobre que tempos dependuradas lá na cozinha…
– A sua cunhada, desculpa-me ó Martins, é mas é apanhada!
– Tanto lha pediu que a Isabel perdeu a cabeça e agora não se falam.
A sapataria do Faustino fica numa ruinha de casas baixas, de alvenaria rústica. Não se pode dizer que a não visitem fregueses mais importados em aliviar os padecimentos da alma do que em cuidar das necessidades dos pés. Também, por isso, não se pode negar ao velho o talento de um confessor, ou de um médico, ou de um barbeiro.
– Mas ó homem, diz-me cá: o que fez a tua mulher? Deu ou não a panela à irmã?
– Não deu.
– Ai não?
– Deu-lhe foi uma desanca.
Fascina que de uns pedaços de pele, de umas tabuinhas de madeira, de umas aparas de latam nasçam umas alparcas tão bonitas. O Martins esteve para lho confessar, sabe que o mestre sapateiro é um daqueles homens raros que nos conquistam, mas empolga-o o resto da sua história, quer finalizar o que começou.
– Imagino, Martins. A Isabel deve ter-lhe dito das boas!
– Pois disse! Virou-se para ela, e não leves a mal as palavras, que são dela e não são minhas: olha, Lucinda, tu és uma pedincha. Se cobiçasses a piça dos homens como cobiças as minhas coisas, eras a mulher mais puta da freguesia!
O velho gargalha. O riso é, com o martelar e o chiar do esmeril, parte da casa, enche-a, às vezes transborda, ecoa no pátio, contorna o cedro, estruge nas paredes, faz levantar as cabeças. Todos sabem que o riso do Faustino é o prémio da sua arte. O riso – sem menosprezo pelas demais agudezas do espírito e das perícias manuais do homem – é um sinal de génio.
Crédito fotográfico: União de Freguesias de Fânzeres e S. Pedro da Cova (Gondomar)
.
Nenhuma palavra é mais obsidiantemente procurada na obra de João Ricardo Lopes do que aquela que escreve silêncio. Em todos os seus livros, não excluindo os de ficção, ela (re)ocorre investida do peso, do poder, do prestígio de um vocábulo-fétiche (como o próprio autor reconhece [1]), em torno do qual se estrutura uma poética de recusa, cisão e reconstrução do mundo, a partir da visão minimalista que a si mesmo e aos outros impõe.
No seu último volume de poemas, Em Nome da Luz (2022), a palavra-conceito silêncio é convocada em onze das quarenta composições do livro. Significativamente, como o penitente que pratica um ato de ablução, como o neófito que encontra a sua paz, como o caminhante que descortina um sentido para a sua existência, como o criador que define uma fórmula, o poeta anota:
EM LOUVOR DO SILÊNCIO
quando precisas de silêncio,
lavas as mãos muitas vezes,
aqueces sem pressa uma chávena de café,
lês os haicais de Bashô
o silêncio, como os caminhos procurados
entre as cidades, não é absolutamente fiável –
é uma adoração apenas, uma labareda,
onde arde o teu amor
e às vezes, sem querer,
um poema [2]
.
Há aqui a verbalização – e recordo apenas o grande mestre Ruy Belo – de um ensinamento que vem confirmar que “Nenhum grande poeta terá deixado de sentir a sedução do silêncio”, porquanto “É-se poeta em exercício, não tanto pelo que se diz como pelo que subtilmente se indica ficar por dizer” [3]. Clarifica-se nestes versos, com efeito, não apenas um intuito purificador, do poeta que deseja desprender-se da sujidade (“lavas as mãos muitas vezes”), mas também – consumada a purificação – o desejo de (re)unir-se a rotinas simples despoletadoras do ato criativo, como sejam o preparar uma chávena de café, o ler os haikus de Bashô, o nutrir-se do fascínio – leia-se “labareda” – que o contacto com as coisas íntimas e despidas torna possível.
Esta grande introspeção que o silêncio traduz para João Ricardo Lopes, sinónima de catarse, de ascese, vem já embrionariamente plasmada em obras anteriores, particularmente no magnífico Eutrapelia (2021). Nele, no poema “Duomo, Milão”, ecoam com leveza espantosa os gestos que o peregrino, o asceta, o homo silens escrevem num esforço de supressão de si mesmos, num empenhamento para o vazio interior e para a busca de redenção:
DUOMO, MILÃO
as primeiras impressões são a pedra talhada,
a luz periclitante nos vitrais
depois os joelhos tocam a madeira
e as mãos tocam o rosto
a oração segregada devagar
num fio de voz
invade a rocha até ao último dos nossos pecados
o silêncio é total.
através das naves e das colunas, ele atinge
o extremo do templo
e é puro
pertencemos a outra era,
as impressões derradeiras são já distantes,
como alguém chamando de dentro de um sonho
ou chamando de outro mundo [4]
.
De que se se pode salvar, ou sobreviver, pela catarse sabemo-lo desde os gregos. A força dramática das palavras tem, a par da beleza (rudeza) lírica das suas imagens, constituído uma das conquistas mais sublimes da literatura. No caso particular da poesia de João Ricardo Lopes, poeta que conheço desde a sua inclusão na terceira e última edição da antologia Anos 90 e Agora (2005), tende esta catarse a confundir-se com fuga à realidade, ou antes com uma feroz resistência à realidade, através do alheamento e da busca de solidão, através da escolha de (dir-se-ia preferência por) pormenores dessa realidade que propendem em última instância a anulá-la: falo da realidade que o poeta decompõe e recompõe em elementos simples, insignificâncias, bagatelas, detalhes que apenas o silêncio e a atenção autorizam a conhecer, aquilo a que Jean-Luc Nancy designa por “misérias literárias” [5] e que conferem à sua escrita um ímpeto (por vezes enumerativo) absolutamente encantador.
ESTA MANHÃ O SILÊNCIO
esta manhã o silêncio subiu pelas paredes e pelas asnas,
trepou as travincas, as teias altas, as cérceas geladas
e atravessou a pedra, o cimento, as fissuras, o próprio ar
sou agora toda a minha vida, o meu destino
e a casa estremeceu
e as palavras – ferro congelado –
doeram nas mãos [6]
.
O inusitado fundo imagético que decorre das mãos deste outrora novíssimo leva-me a recordar o agrado com que, na malograda Bulhosa, acolhi o seu Contra o Esquecimento das Mãos (2002), quando compelido a estudar a nova geração de poetas, li versos deste jaez:
de refracção em refracção afunda-se
o pensamento nos linhos da casa
é branca a tarde
na alma garimpam-se as impuridades [7]
.
Ou:
durante o intermezzo
cumprimos o possível
das enxúndias, do bodum
dos lodos nos limpámos
até sermos desta transparência de água [8]
.
Recordo, a propósito, uma conversa com Jorge Reis-Sá, que deste poeta me propôs também a leitura do seu primeiro livro, premiado pela Associação de Escritores Portugueses, em 2001. Nele, um curto poemário intitulado A Pedra Que Chora Como Palavras, surgem já – em alicerce – as temáticas que o tempo viria a permitir enovelar e desenvolver. Por exemplo, o apelo (magnetizante) da metapoesia. Por exemplo, o exercício cinematográfico dos cenários onde se faz retratar (autobiográfica ou fictivamente) a voz que se ergue das / se esconde nas paredes translúcidas do poema. Por exemplo, a musicalidade e o ritmo sincopado dos versos, quase sempre curtos e lapidares. Por exemplo, a minudência visual, o olho veemente que absorve as nuances de um anoitecer. Por exemplo, o apuramento da metáfora, muitas vezes insólita, acutilante, desarvorada. Por exemplo, em conclusão, o poder reparador do silêncio – do silêncio de que vimos falando – e que representa bem a tensão permanente entre equilíbrio e desequilíbrio de que fala Rosa Maria Martelo [9].
no outono, quando se oxidam
as folhas,
parece-se mais nítido e
perturbador o brilho dos poetas
com os cigarros no casaco
e um bilhete de comboio para parte incerta
anotamos brevemente na pele da mão
que um dia, se voltarmos,
será apenas por este pouco silêncio (…) [10]
.
Estarei, porventura, a desviar-me do ponto nevrálgico em que gostaria de fixar a atenção. E esse ponto consiste na admissão de que habitam a poesia do autor de Em Nome da Luz – insuficientemente conhecida, escassamente divulgada – apelos sucessivos a uma prática diária de limpeza, de decantação, de precisão, de higienização, insinuada mais ou menos explicitamente em poemas inúmeros onde o eu voluntariamente renuncia aos luxos literários para se comprazer com a dignidade do mínimo, mínimo esse que, paradoxalmente, transporta o máximo do ethos poético. Assim o exprime, por exemplo, no belíssimo penúltimo poema do seu último livro.
HIGIENE DIÁRIA
coisas de que um homem precisa:
dos doze girassóis de van Gogh,
dos quatro Evangelhos,
de sabão rosa [11]
.
Sublinho este apontamento. Sublinho-o, visto que me parece notório que a poesia deste autor tem evoluído no sentido de um pendor sincrético, que confunde progressivamente mais obra e autor, deixando perceber que a poesia não é para si uma mera arte de versos (como a metapoesia sugere), mas uma apologia da vida eremita, um manifesto pessoalíssimo de cosmificação [12], um caminho salvífico do sujeito pelo meio das veredas do abismo: nada lhe importa tanto como a curta vida do poema, como o poder habitá-lo seja de que forma for, ainda que possa, como tão bem o escreveu Gastão Cruz, “Tratar-se de um trabalho destinado ao malogro” [13], ainda que esse pouco possa albergar tudo quanto foi capaz de aquilatar na vida.
Será, porventura, esse o fito desta poética do silêncio de João Ricardo Lopes: incumbir ao escrito a missão de se anular a si mesmo, de se nadificar [14] no sentido em que Jean-Paul Sartre o aduz, de criar (num processo antecipado de autoapagamento) o milagre da vida e, nele, muito em particular, o parto do poema, mais ou menos como quem efemeramente desenha ou constrói sobre um areal e existe apenas porque existiu. Esse processo, assumido cada vez mais como única via, abre a porta a toda uma ordem do caos: o poeta é aquele que descobre por acaso, aquele que desvenda por acidente, aquele que encontra algo buscando outra coisa.
SERENDIPISMO
pensava em Fernando Pessoa,
em ti,
na quantidade de amor que nos exigem as palavras,
no nevoeiro sobre o Zambeze,
nas trovoadas de maio,
na nervura rigorosa de cada folha
encontra-se a perfeição procurando outra coisa,
o vazio, por exemplo
hoje relembrei os abetos de Cremona.
senti de novo a dureza do frio e o pavor do vento
percutindo na floresta
o vazio é também uma forma de serendipismo:
buscas o poema e achá-lo-ás [15]
.
Considero interessantíssimo este poema de Em Nome da Luz, título recebedor há poucos meses do Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres. Todo o volume pede olhos avisados. Quem acompanha o percurso poético deste autor saberá reconhecer que ele se vem impondo um pouco em contramão (ou em contramaré), não apenas pelo destaque que confere à metáfora [16], nem pelo reaproveitamento lexical de termos já em franco desuso (ou até mesmo esquecidos), nem pelo quase monacal voto de isolamento a que o escritor se entregou (razão justificadora por si só do seu quase anonimato), como sobretudo pelo quieto movimento de compor o nada, de amar o insignificante, de acreditar piamente no inútil de todo o ruído do mundo.
DA SABEDORIA
alimenta-te da chuva,
de tubérculos ocasionais, da fruta
silvestre,
alimenta-te das paisagens,
do silêncio mais
rigoroso
a poesia, na sua essência,
é eremita.
tudo o mais é excessivo
e inútil.
tudo o mais é vento,
veneno que passa [17]
.
Valerá a pena lembrar que tudo o que é “excessivo” e “inútil”, “vento” ou “veneno que passa” não cabe na poesia (“inutilia truncat” prescreveria Horácio”), tão-pouco na alma de um homem limpo, profundamente cônscio da exiguidade da vida (não sou eu quem o diz, mas o Eclesiastes).
Em suma, não existe melhor entendimento do que possa valer um livro, um poema, um verso, do que o sentimento de retidão nele defendido até ao “silêncio mais rigoroso”. Signifique esse silêncio – meça-o o leitor – o muito que significar.
.
Bahia, 08.06.2023 / Paulo José Miranda
.
[1] Cf. entrevista de João Ricardo Lopes à revista Novos Livros – “João Ricardo Lopes: “Dormir uma noite inteira e acordar com vontade de recomeçar a vida”, disponível em linha em https://shorturl.at/beky8 (consultado em 2023-06-03).
[2] Em Nome da Luz, Elefante Editores, s.l., 2022, p. 43.
[3] Ruy Belo, «Poesia e Crítica de Poesia», Na Senda da Poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 61.
[4] Eutrapelia, Editora Labirinto, Fafe, 2021, p. 14.
[5] Jean-Luc Nancy, «Compter avec la poésie», Resistance de la Poésie, William Blake & CO, s.l., 2004, p. 24 : « Si la poésie insiste et résiste – elle résiste à tout, en quelque sorte, et c’est peut-être aussi pourquoi les poètes font souvent «figure de peintres du dimanche», comme vous dites avec raison : l’insistance de la poésie va jusq’aux formes les plus humbles, les plus pauvres, les plus démunies, jusq’à des véritables misères littéraires, jusq’au goût le plus sucré ou le plus sot pour des bouillies à demi cadencées d’ésotérisme et de sentimentalité (il y là comme une clochardisation), mais elle va jusque-là, si bas, parce-qu’elle insiste, elle demande quelque chose, et quelque chose que, je le crois vraiment, on ne peut pas réduire aux retombées petites-bourgeoises du pire romantisme (…) ».
[6] Op. Cit. (2022), p. 30.
[7] Contra o Esquecimento das Mãos, Editora Labirinto, Fafe, 2002, p. 46.
[8] Ibidem, p. 48.
[9] Rosa Maria Martelo, «Poesia e des-equilíbrios», A Forma Informe, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010, p. 9: “Se a poesia pressupõe ou procura o equilíbrio, é porque se joga no limiar de o perder e num permanente confronto com o desequilíbrio. (…) Faz parte do movimento construtivo da poesia um certo desencontro do poema com ele mesmo, isto é, o desajuste das suas próprias estruturas e a possibilidade de fazer «oscilar» (o termo é de Luiza Neto Jorge) os pressupostos que lhe serviram de ponto de partida.”
[10] A Pedra Que Chora Como Palavras, Editora Labirinto, Fafe, 2001, p. 35.
[11] Op. Cit. (2022), p. 46.
[12] O termo é de Luís Miguel Nava, que o diz assim: “Todo o acto poético é uma cosmificação. Cosmificação que se opera a partir do caos a que dá lugar a destruição da língua. Não por acaso o acto poético se chama de criação e a etimologia aproxima a poesia do fazer.” Cf. «Artaud: Tric Trac du Ciel – Uma visão de conjunto», Ensaios Reunidos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 40.
[13] Gastão Cruz, As Leis do Caos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, p. 35.
[14] No primeiro capítulo de O Ser e o Nada, Sartre anota: “(…) é preciso, primeiramente, reconhecer que não podemos conceder ao nada a propriedade de «se nadificar». Já que, ainda que o verbo «nadificar» tenha sido concebido para tirar ao nada até a mínima aparência do ser, é preciso confessar que somente o ser se pode nadificar, já que, seja de que modo for, para se nadificar é preciso ser. Ora, o nada não é. Se podemos falar dele é porque possui tão somente uma aparência de ser, um ser emprestado (…). Por outro lado, o ser pelo qual o nada vem ao mundo não pode produzir o nada mantendo-se indiferente a essa produção, como a causa estoica produzindo o seu efeito sem se alterar. (…)” Cf. «A Origem da Negação», O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica, Edições 70, Lisboa, 2021, pp. 77-78.
[15] Op. Cit. (2022), p. 17.
[16] Bastará levar em linha de conta o que Rosa Maria Martelo assinalou, quando diz que “Creio que uma das consequências do empobrecimento da condição ontológica da poesia passa pela secundarização do papel da metáfora e pela construção de um modo de expressão essencialmente alegórico.” Cf. «veladas transparências (o olhar do alegorista), Vidro do Mesmo Vidro – Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961, Campo das Letras, Porto, 2007, pp. 86-87.
Vilhelm Hammershøi, Partículas de pó a dançar nos raios de sol (1900)
.
O tamanho da luz mede-se nas paredes, nestas aqui em Paris, nas de um iglô em Etah, na Gronelândia, ou nas grutas empoeiradas de Qumran. O desenho da luz alastra e escorre, avança e reflui, às tantas eclipsa-se entre volumes de uma natureza nem sempre compreensível. E é então uma solidão, uma devastação, um horror de arrepios onde se cai como num sonho, como num poço, como na morte.
O humorista Alphonse Allais medita no diâmetro silencioso da luz nessa manhã de 1889. Da luz solar intermitente, hiemal, luz levíssima que entra pelos vidrilhos da sala e se põe a fazer caretas iridescentes no estuque, nas portas, na porção branca da alvenaria que o grande armário de ébano não tapou. Não lhe ocorre uma única linha, não lhe ocorre uma única razão para começar um novo conto, não lhe ocorre sequer que mais de um século depois, noutro país, outro indivíduo pense exatamente o mesmo sobre a luz e nela reflita indecisamente, sem vontade de rir ou de fazer rir, completamente convencido de que a literatura – para renascer – precisaria da honestidade dessa luz, da boa luz que gela na Gronelândia e se sacode no pó ardente dos desertos do Mar Morto.
É incontestavelmente belo o rosto da luz.
Ele, ela, amplia os batimentos cardíacos, enormiza o poder das palavras (mesmo, ou sobretudo, as que não são ditas), aquece a natureza monstruosa das formas informes, atrai os gatos, faz abrir mais os olhos e os poros, dita as leis, se não as leis de Deus, as do cosmos.
O escritor Alphonse Allais bebe um porto. Prepara, como um lagarto consolado, uma folha de papel. Talvez haja descoberto a ponta da agulha por que tanto procurou toda a manhã. Entre as palavras desenhadas há, igualmente, acometimentos de um sol longínquo. Escrever é costurar com a luz o pano imóvel do vazio. A bem dizer não lhe importa nada. Importa-lhe tudo.
Perder umas eleições como as que perdeu Rubens van der Meer no ano passado é um golpe duríssimo. Primeiro sentiu uma fúria incontida em relação à maioria de idiotas neerlandeses que preferiram o seu oponente, Andries Michels, um tecnocrata corado e mentiroso, nascido nos viveiros políticos do partido liberal, incapaz de uma ideia desempoeirada e de uma palavra autêntica. Depois, aos poucos, deu-se conta de que o molestavam os corredores, os assentos do seu próprio partido, onde se mastigava a mesma doutrina e onde medravam à sombra cogumelos tão venenosos quanto os que via do outro lado da bancada parlamentar.
O desencontro progressivo com os meandros deste ofício de governar e antigovernar conheceu um episódio significativo na manhã de 17 de março.
Nesse dia e após horas consecutivas de chuva torrencial, Haia acordou num caos de sinalização luminosa, barreiras de proteção, agentes da polícia com oleados gesticulando veementemente: por toda a parte se via água a emergir das sarjetas, uma água suja, salgada, malcheirosa. Rubens van der Meer considerou, ensimesmado, que se usassem na câmara baixa as mangueiras dos bombeiros e lavassem com elas os gabinetes, as galerias dos deputados, a boca dos membros do governo, a massa vil de todos os que ali fazem carreira, imaginou se usassem água de pressão em quantidade suficiente para uma higienização razoável, sairia um enxurro tão turvo, tão porco, tão podre como esse ludro que paralisava as ruas da cidade naquele momento.
A decisão de se demitir não apanhou ninguém de surpresa.
E, porém, todos se apressaram a comentar a sua coragem e retidão, a remeter-lhe mensagens fraternas de solidariedade.
Rubens van der Meer não respondeu a nenhuma delas. Em vez disso, partiu em silêncio para a ilha de Schiermonnikoog, onde comodamente se instalou com a mulher, com o cão e com a biblioteca.
Na época boa, quando os ventos amainam e o mar vem enroscar-se nas dunas recobertas de gramíneas, vemo-lo caminhar lentamente pelos longos areais, descalço, sem telemóvel, aspirando em grandes sorvos o ar frio. Não podia imaginar que a fala oceânica possuísse diferentes fonemas. Nem sequer que, entre os grandes penedos húmidos, os belos ostraceiros de bico alaranjado pudessem exibir um talento tão ostensivo. A sua missão não é outra senão criar esquecimento.
Reconheçamo-lo: a obra mais pura de um homem é justamente essa intrigante forma de apagar memórias inúteis.
Perder umas eleições como as que Rubens van der Meer perdeu no ano passado pode ser a melhor coisa que sucede na vida de um homem. O arquipélago frígio é um território delicado, ele próprio fruto de um combate imenso. Quando a mulher – a bela Margriet de olhos verdes-abacate – o alcança e o abraça, não duvida que as pequenas coisas são as únicas por que vale a pena entregar a alma.
E, no entanto, não encontrou ainda um modo de esvaziar o seu ódio, os seus múltiplos ódios guardados e entranhados, o seu sentimento de justiça por cumprir. Um dia (sabe-o no mais fundo de si) espera ainda o poder de se desforrar…
No vagar da casa definia-se melhor a natureza imutável dos gestos. Era sublime, por exemplo, a luminosidade que transbordava dos dedos à roupa no estendal nas manhãs de maio. Por exemplo, a vaga tristeza súpita que descia connosco ao silêncio mais profundo de uma gaveta. As coisas ocupavam o seu lugar dentro das palavras, ao lado de outras coisas dentro de outras palavras, e vinham contra o olhar, sobre o olfato, ao toque imaculado dos dedos. Existia-se, respirava-se, decompunha-se com minúcia as formas e os cheiros, a tessitura dos tijolos, os pensamentos, o frio. Era o desabrochar da infância.
Essa infância abria uma cancela alta e vinha a correr. Trepava escadas de pedra, interrompia-se instantaneamente diante uma velha porta de madeira, em cujo rodapé espreitava o fumo escuro e a pálida luz elétrica de uma cozinha. Essa infância entrava, invadia um solo indubitavelmente sagrado repleto de objetos puídos, macios, mascarrados. Encontrava aceso o lume da lareira, o brilho dos cobres, as cerâmicas muito lavadas. Chiavam ali três grandes potes de ferro, ali onde cheirava a café fresco, onde mãos trémulas iam depositar a sertã sobre uma trempe, ali onde ardia às vezes – sobre magníficos tições rubicundos – a boa carne do fumeiro, ali onde pequenos olhos atentos escreviam já a sua escrita inócua e fascinada.
Pregado à penumbra deste primeiro espaço, a infância descortinava o claviculário surrado. Era o lugar de onde se partia para todos e de onde se regressava de todos os lugares. As vozes reuniam-se para comer, para contar o tempo, para persuadir a Providência. A infância escutava e rezava, participava na prudente litania com que se defendia a casa dos males deste e do outro mundo, ia sonolenta pelo limiar tosco dos móveis e escapava-se para o corredor. A infância escabeceava como um inseto alado, ensarilhava-se nas teias nascidas sob as traves, gemia às vezes com as velhas missagras ferrugentas das portas interiores, absorvia o aroma intenso do eucalipto, sonhava. Depois vencia o torpor, beijava as faces endurecidas dos anciãos e pedia-lhes a bênção. Depois tombava no sono imaculado dos justos.
Havia na raridade destes gestos sagazes e piedosos outro espaço de que hoje se é órfão. Outro espaço de que hoje se sente uma falta inexplicável. De que hoje se lastimava a dor incalculável. Como se de um remorso se tratasse, como de uma mutilação falássemos, como se um vazio impreenchível nos engolisse. Beijava-se e era-se beijado, dizia-se e era-se nomeado, sentia-se e era posto no âmago dos sentimentos. A infância era essa casa, essa casa-mundo, essa casa-alma, essa casa-intraduzível.
Por muitos anos pensei que me morrera ela, desfeita de cima a baixo pelo sinistro braço do caterpillar. Pensei nessa casa-entulho que os camiões transportaram como uma sombra para parte incerta. Essa casa devolvida aos caboucos e ao cheiro alcalino do saibro, restituída ao desenho ancestral do seu quadrado de terra. Essa casa que outra casa afundou para sempre, debaixo de betão e toneladas de metal.
Mas não. Essa casa onde a infância respira ainda não morreu. Nem a imagem dolorosa do seu desmantelamento pôde destituí-la da sua geografia encantatória. Nem as malditas quelíceras das máquinas puderam abafar as suas vozes benditas. Nem os seus velhos puderam partir – eles que renascem a cada instante na exatidão singular dos gestos que lhes repetimos. Será sempre a casa. Como esses velhos serão sempre uma memória infalível, uma memória que regressa no vagar das sombras e nos enche a boca como uma canção longínqua.
Ah, essa casa não morre.
No vagar da sua esquadria, os gestos eram sublimes, tristes, maravilhosamente esculpidos. Abriam, por exemplo, a terra e sepultavam nela sementes poderosas. Narravam, por exemplo, com palavras poucas e inquestionáveis – à noite, ao lume, no bojo do silêncio – a história de Branca Flor. Nada possuía verdadeiramente esse mundo. Ele era senhor de si. Tudo recaía em nós paulatina, singelamente, como camadas de um amor impossível de corromper. Existia-se, respirava-se, sobrepunha-se sem pressa as minúsculas células do tempo, as formas e os cheiros, a tessitura dos tijolos, os pensamentos, o frio. Era o desabrochar.
O rapaz gostava de coisas antigas. Todo ele, digamo-lo, caía para o antiquado. A começar pelo pullover sem mangas, de um tom amarelo pastel. Não havia uma única mulher no escritório que o não achasse piroso.
Depois havia aquela coisa entre o nariz e o lábio superior, aquela pelagem a parecer-se com um bigode, ou um buço, e que o tornava mais feio e antipático. E as raras palavras que dirigia aos colegas não ajudavam:
– Pode, por obséquio, arremessar esse agrafador na minha direção?
Era realmente muito desagradável. Ser-se interpelado de um modo cortês, à antiga, dificilmente pode aceitar-se num espaço onde crápulas e devassas se prestam todos os dias a uma feroz demonstração de animalidade.
Ponhamo-nos de acordo: o escritório é um lugar errado para se pedir o que quer que seja por favor. Ainda menos com palavras que ninguém entende.
O rapaz possuía outro grande defeito. Chamava-se Valdemiro. Valdemiro Perestrelo. Não convém hoje que se seja chamado de Valdemiro e Perestrelo. Não perguntemos porquê.
Outra disformidade merece ser assinalada. Embora fosse calmo, o rapaz escrevia demasiado depressa. Matraqueava o teclado do computador com força, com vigor, com fanatismo, num estilo que importunava toda a gente.
O chefe de departamento alertou-o em várias ocasiões para os perigos de uma escrita rápida:
– Fixe o que lhe vou dizer, Perestrelo: não me escreva coisas como “Recebemos com agrado o seu pedido” apagando uma letra na palavra pedido, entendeu? Nem que “Vamos verificar a sua conta” com uma letra a menos na palavra conta. Tem ido malta para o olho de rua por causa deste tipo de equívocos…
Mas o rapaz não se enganava. Possuía treino e devoção, outro grande mal nos dias que correm.
Habitava um apartamento modesto cheia de objetos obsoletos. Dedicava-se a traduzir Shakespeare. Fazia-o de um modo bastante simples: primeiro espreitava o texto original, depois repetia-o sotto voce, a seguir martelava na máquina de escrever a sua versão. Não usava dicionário.
A máquina de que se servia – uma pesadíssima Remington, modelo 12 de 1930 – nas noites mais criativas do rapaz prensava o papel num delírio que não deixava ninguém dormir no prédio.
O treino de Valdemiro vinha daqui.
Datilografava sem necessidade de conferir as teclas redondas. Fazia-o depressa e bem. Limitava-se a corrigir de quando em quando a posição dos oculinhos redondos. No fundo, alimentava o seu modo de vida, que nos parece tão bom como qualquer outro.
Foi, por isso, um espanto ouvir-lhe na manhã do dia de anteontem o insulto.
O chefe de que falámos atrás, impacientou-se com qualquer coisa. Incomodou toda a gente no escritório e toda a gente no escritório descarregou no rapaz, de tendência calado e sorumbático.
O insulto é uma prova corriqueira da nossa fraqueza. Ou das nossas fraquezas.
Esquecemos – e não será desprezível mencioná-lo – que a máquina de escrever de Valdemiro Perestrelo era gaga. Gaguejava nos P e nos A. Por vezes, quando o seu dedo tradutor apertava contra as respetivas teclas, havia um soluço e saíam dois caracteres juntos, ambos mal desenhados. Isso, admitamos, aborrece. Isso estragava, se não a boa disposição, o ótimo papel munken de que o rapaz se servia.
Porque lembramos isto? Porque a nossa cabeça se enreda amiúde em aborrecimentos de que nos não livramos facilmente.
De maneira que o colega mais chegado lhe disse algo como isto:
– Ó pancrácio, tem lá cuidado ou ainda rebentas a mesa!
De maneira que Valdemiro se interrompeu uns vinte segundos e, tomado por uma ira mansa, respondeu a direito e sem rodeios:
– Peço-lhe encarecidamente, Rui Maciel, que vá à berdamerda…
Um insulto, ainda que proferido por alguém desacostumado de os proferir, é sempre motivo de coletiva indignação. Assinalemos aqui o despropósito: não se manda ninguém à berdamerda, menos ainda quando se traduz Shakespeare.