As manhãs são prodigiosas. As manhãs de sábado e de domingo. As manhãs das férias e dos feriados, dos dias de café silencioso e olhos fechados contra o sol. As manhãs de música barroco e de janelas abertas. As manhãs de caderno em cima da mesa e caneta de aparo. As manhãs de depois de termos feito amor, quando te despedes com um beijo antes da piscina e do ginásio ‒ tu a tornear o corpo, eu a cismar em trapézios de palavras. As manhãs de quando os vizinhos mais novos não estão. De quando a rua acorda como as ruas da infância, devagar, sonolentas, sem relógio. As manhãs de quando os miúdos das moto 4 se extinguiram no horizonte, por causa da prova nos matos alentejanos. As manhãs de quando os outros miúdos, os das noitadas, das passas, das bebedeiras, das curtes, do pandemónio de copos plásticos partidos e latas amolgadas, se encontram ainda na ressaca das respetivas camas.
‒ Que bem que se está aqui!
E é um bem-estar que me ilumina as coisas à volta. Que me faz olhar para a mobília e para o interior de um livro com o mesmo desvelo com que observo à varanda o senhor Afrânio, o septuagenário mais educado e galante que conheci.
‒ Bom dia, senhor Afrânio!
‒ Muitos bons dias, meu caro Lopes!
Um bem-estar que tem a sua própria química molecular, as suas leis físicas inconfundíveis. O ar respira-se melhor, mais leve, menos sujo e rarefeito, como se os pulmões se dessem conta do milagre que os dilata. A fruta e as velas de cheiro açucarando as paredes. Os detergentes e o teu perfume não mais agradáveis do que o fiozinho de cigarro subindo da professora Clotilde, antiga mestra do Magistério Público, que à sacada, à puridade, vem cuidar dos seus jacintos e gerânios e begónias e agapantos, falando-lhes, confidenciando-lhes, namorando-lhes as pétalas.
‒ Que bem que se está aqui!
E ao dar-se conta da minha presença, chávena na mão, olhos semicerrados, ronronando, se assusta em pouco.
‒ Bom dia, senhora professora!
‒ Como está, João?
Gosto de colher estas sementes. De ressuscitar sem pressa. De escrever como outrora, repleto de esperança e de inconsequência, para ninguém e, quem sabe, para quem me entenda. Gosto de rasurar as frases, de erguer-lhes balões corretivos, glosas e anotações, segundas linhas, sublinhados e círculos, setas e chavetas, novas rasuras, riscos e desabafos de frustração. Gosto de encher a casa com a máquina de escrever, com as suítes para violoncelo de Bach, com os meus pensamentos, com a minha loucura, com o meu coração.
‒ Que bem que se está aqui!
E é quando o voo é mais longo e mais profundo. Quase como se me esquecesse da minha pele e dos meus ossos e dos meus males de alma e dos azedumes e das vezes em que a vida me pareceu uma infinita tortura. O martelar de cada tecla, a subtil variação das notas musicais, o reflexo de cada raio de luz no vidro das janelas e na madeira e na carne macia de cada fruto, tudo, tudo tão sincrético (para me servir de Lévi-Strauss) e de outra espécie de tempo, como se o contasse agora por séculos em vez de segundos.
‒ És um tonto, meu amor!
‒ Eu sei… Eu sei!…
E as manhãs adquirem a expressão de uma eternidade de que jamais saberei dar conta. Porque o amor que nelas desabrocha, como o das flores da professora Clotilde, é um eflúvio transcendente, um caudal de espírito capaz de adocicar os solavancos metálicos do elevador e de tornar risível a discussão na rua sobre futebol. Porque Bach e o café e o caderno cheio de rabiscos são capazes de me bem-dispor, a ponto de me esquecer das aulas e das agendas e dos recados mais ínfimos… Como se a vida pudesse seguir sem eles… Como se eu pudesse viver a vida sem a vida dos outros, ombros direitos e o rosto erguido, concentrado somente no discurso puro do meu espaço…
‒ Que bem que se está aqui!
Confesso que são as melhores manhãs. Quase inconfessáveis. Quase intraduzíveis. Quase de um outro eu. Como se de um outro eu que visitasse de vez em quando, como quando se visita um outro eu no álbum de fotografias… Falo destas manhãs de sábado e de domingo, de férias e feriados, de café silencioso e olhos fechados contra o sol. E tu vens, muito devagar, sem um ruído, tão adolescente como quanto te conheci, colocar-te atrás de mim, pondo-me as mãos nos olhos, invadindo-me com o teu aroma, preenchendo-me com as tuas formas, calando com as tuas poucas as minhas palavras prolixas.
‒ És um tonto, meu amor!
E eu sei que sim. E eu sei que sim. E nada é, juro-to, tão belo, tão magnífico, tão importante como essa última sintaxe, esse modo de findar o trabalho, retirar a folha do cilindro, cheirar contigo a tinta, ler a duas vozes, sorrir, adormecer no aconchego do teu corpo, sem pressa, como se o tempo o contasse agora por séculos em vez de segundos.