Eugénio e a Foz

Foto de arquivo pessoal
. Entre agosto e setembro há a Foz do Douro, o mar, Eugénio de Andrade.

Caminhando pelo Passeio Alegre, ou pelas avenidas dos plátanos (rua de Gondarém e rua do Marechal Saldanha), seguindo pelos pontões e pelos molhes, atravessando a pérgula e os passadiços ao longo da marginal, fica-nos a impressão de que há certas partes do Porto que o final do verão torna imprescindíveis, luminosas e enxutas como enxutos, luminosos e imprescindíveis são todos os poemas do autor de Os Sulcos da Sede.

Os jardins, o cheiro das algas e da água, a pedra branca e ardente de alguns antigos edifícios, o corpo generoso das árvores (em cuja sombra nascem estátuas de bronze e casais jovens perdidos de amor), o burilar da luz no vidro alto dos prédios ou nos rochedos húmidos em frente às esplanadas, o azul do horizonte e os navios ao longe cosendo horizontalmente o oceano e o céu lembram estrofes inteiras de Eugénio:

«Um dia chega / de extrema doçura: / tudo arde. // Arde a luz / nos vidros da ternura. // As aves, / no branco / labirinto da cal. // As palavras ardem, / a púrpura das naves. / O vento, // onde tenho casa / à beira do outono. // O limoeiro, as colinas. // Tudo arde / na extrema e lenta / doçura da tarde.»

Há muito que a Foz me fascina. Para ser preciso, desde que a descobri nos tempos de caloiro na Faculdade de Letras, desde que nela e por ela aprendi (seguindo em direção ao Parque da Cidade, a Serralves, ao Campo Alegre, ou então à Ribeira, à Sé, a S. Bento) a calcular a distância entre as diversas camadas temporais do Porto e a por elas calcorrear a literatura dos poetas e romancistas que a têm como ponto de chegada, ou de partida. Pisar o chão da Foz é gostar da escrita de António Nobre e de Raul Brandão, talvez também da de Manuel António Pina e da de Rui Lage. Cirandar pelo arvoredo do Jardim Botânico é reler Rúben A. e Sophia de Mello Breyner Andresen. Apearmo-nos no Largo Amor de Perdição, junto aos clérigos, torna obrigatória a lembrança da vida e da obra de Camilo Castelo Branco. E nos últimos anos já não consigo descer de Miragaia à Alfândega sem rememorar, por exemplo, Intermezzi, Op. 25 de Manuel de Freitas. De todos os cantos da Invicta, da Foz sobretudo (volto a ela), chega o eco nada distante das praias de Matosinhos e de Vila do Conde, o eco demorado dos poemas de Ruy Belo. Ou a serenidade da poesia de Albano Martins, vinda da outra margem do rio.

Mas é aqui, neste pedaço da costa, que a poesia mais se acende, em especial nesta altura do ano, iluminada pelo génio de composições como esta de O Sal da Língua:

«No fim do verão as crianças voltam, / correm no molhe, correm no vento. / Tive medo que não voltassem. / Porque as crianças às vezes não / regressam. Não se sabe porquê / mas também elas / morrem. / Elas, frutos solares: / laranjas romãs / dióspiros. Sumarentas / no outono. A que vive dentro de mim / também voltou; continua a correr / nos meus dias. Sinto os seus olhos / rirem; seus olhos / pequenos brilhar como pregos / cromados. Sinto os seus dedos / cantar com a chuva. / A criança voltou. Corre no vento.»

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Foto do jornal Público
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Agora as crianças correm de outro modo, montando perigosas bicicletas atrevidas ou serpenteando turistas com trotinetes, segurando às vezes o venenoso telemóvel que as desliga da realidade. Mas a Foz é delas, ainda. Delas e do vento. Dos salpicos de azul por entre metrosíderos e figueiras. Delas e dos muros amarelos que ladeiam o alcatrão. Delas e das gaivotas que poisam sobre os curiosos candeeiros em forma de tridente. Delas e do macio aroma da relva cortada (enleando-se no cheiro do pó e no cheiro a iodo do mar). Delas e da cor indecifravelmente bela das varandas tocadas pelo rútilo da luz, digo, do sol doirando o mar.

Também deste brilho (desta exultação) dá conta Eugénio, no poema «Mar de Setembro», do livro homónimo:

«Tudo era claro: / céu, lábios, areias. / O mar estava perto, / fremente de espumas. / Corpos ou ondas: / iam, vinham, iam, / dóceis, leves – só / ritmo e brancura. / Felizes, cantam; / serenos, dormem; / despertos, amam, / exaltam o silêncio. / Tudo era claro, / jovem, alado. / O mar estava perto. / Puríssimo. Doirado.»

Junto à estátua de Camões, o mar ainda sedutor de entre agosto e setembro sopra-me o seguinte pensamento: que bom que seria se estes e outros poemas de Eugénio de Andrade pudessem nascer dos canteiros floridos da Foz, ocupando – quem sabe em bronze ou pedra – o lugar sujo dos cartazes propagandísticos e publicitários que tanto a enfeiam. Não digo que se ponha de pé uma estátua ao poeta maior deste canto da cidade (tenho a certeza de que Eugénio havia de repudiá-lo). Contudo, seria um ato de justiça que ele fosse lembrado de uma ou de outra maneira. E a justiça, ainda que tantas vezes tarda, faz-nos bem. Eugénio merece-a.

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Tocata e fuga

Foto de arquivo pessoal (2019)

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Daqui avista-se mar e rio.

O mar e as formações rochosas que descem do paredão até à linha dos seixos e à espuma. Se por elas saltitamos, vemos charcos salgados e pequenos tufos de funcho-do-mar (resistindo a tudo, semelhantes a borracha), e muitas vezes o pôr do sol. Em cima, no parquezinho onde o verde dos chorões se ilumina todo o ano, perfilam-se as autocaravanas dos turistas estrangeiros, automóveis com casais de meia idade em silêncio, às vezes um ou outro solitário cismando ou o cano de uma objetiva sobre um tripé. Em baixo, no abismo do grito das gaivotas, o eco da rebentação, o chiar da areia quando as ondas recuam, a linha da água encapelando-se, embatendo nos rochedos, esbranquiçada, mansa e violenta, até ao ponto de focagem em que o céu, as nuvens e o sol nela se fundem.

Mas também o rio e a cidade, também esta neblina que agora se ergue da praia e torna mais belos, quase feéricos, os pontos de luz ao longe, nos postes elétricos, nas janelas banhadas pela claridade azul dourada do fim de tarde, essa cortina de vapor que nos confunde as formas e as cores e se entranha na roupa. O rio que é decerto não mais do que um rodapé sobre o qual os nossos olhos distantes principiam a derivar da realidade, a fantasiar, a narrar o mesmo sonho de sempre («Um dia hei de aqui viver!»). A cidade que tão bem se conhece, mas que nos parece outra, tranquila assim, adormecida, silenciosa da Foz à Ribeira, da Ponte D. Luís ao farol e à pérgula, ao terminal de cruzeiros, à refinaria e às praias de Leça, ao fundo, além, na penumbra já.

Fujo.

Os meus sábados são (por esta altura da existência) lugares. Em cada um deles coso e descoso e volto a coser uma certa pele vadia que me acompanha desde criança. Gosto de me perder nas paisagens, de me esquecer nelas, de me redescobrir vivo no silêncio e nas coisas que toco com mãos livres e ávidas.

Como Bach, como Pessoa, como van Gogh ou Sorolla (que comparação esta!), componho, escrevo e retrato em simultâneo. E compondo, escrevendo, retratando (verdade ou fantasia, não importa), sinto-me aconchegado a outro eu que neste espaço e neste tempo deseja permanecer (um dia) para compor, escrever e retratar mais dentro, mais profundamente, mais em paz consigo mesmo, feliz de se juntar à maresia, ao areal, ao frio, às silhuetas que aqui (ao crepúsculo) se multiplicam e renascem e hão vir muitas vezes para matar a morte que lentamente os mata, como a mim a morte me mata sem pressa. É algo como uma concha mental e cardíaca. Um dia hei de aqui viver!

Fujo, portanto.

Os meus sábados servem para caminhar pela costa, para me deliciar com plantas e aves a que raros prestam atenção, para criar poemas que ninguém lê, para fotografar os avanços do oceano e da velhice na minha vida.

Por muito que me esforce, não consigo transferir para as palavras esse maravilhamento. Seria prudente, como Caeiro, ficar-me pelo sentir. O amor que me permite disparar o flash é à prova de grandes discursos. O mar e o rio, as ondas e a cidade, a neblina e o frio que se levantam deste sábado, neste miradouro, são talvez um prémio, a recompensa de dias difíceis que me pedem mais do que me posso dar.

Talvez seja algo que nos acontece a todos: perdemos aos poucos o controlo do quem somos e do que fazemos. Talvez nos sobre esta nesga de ilusão, este clarão que se acende quando o dia se apaga e o lusco-fusco transforma tudo numa enorme presença cósmica. Talvez este banco de pedra, onde me sento, seja aquele umbigo do mundo a que chamavam na Antiguidade «ônfalo» e punham dentro de uma gruta habitada por uma sibila.  Talvez, como eu, milhões de humanos precisem de fugir de si uma vez por semana para de novo se reconhecerem na mais ampla e formidável escuridão.

Daqui avista-se o mar e o rio. O que quer que eles signifiquem.

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O medo da morte e outros medos

Anette Ohlendorf
Fotografia de Anette Ohlendorf
 

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As salas de espera nos hospitais são lugares incríveis, desconfortáveis, ruidosos, atarracados, repletos de pessoas numeradas, numerificadas, anónimas, cheias de velhice precoce ou consumada, com compressas e ligaduras, deitadas em macas ou presas a cadeiras de rodas, babando-se ou resmungando, ansiando pela chamada do intercomunicador, pedindo outra vez para ir à casa de banho, manejando o telemóvel horroroso (que não para de tocar e toca altíssimo), berrando pela filha que saiu do campo de vista ou contra a mãe que fez chichi pelas pernas abaixo e obriga agora à intervenção de uma funcionária de bata azul e muitíssimo mau-humor.

Chega-se muito antes da hora marcada para a consulta, procura-se uma cadeira plástica livre, limpa, menos retorcida se possível, senta-se nela a angústia toda, devagar, muito devagar se possível, para que a paciência esgote aos bochechos e não de uma vez só, o diabo leve para longe uma crise de pânico, e então, sim, tem-se uma visão claríssima da nossa condição.

O cavalheiro que não deixou de me perseguir com o olhar desde que cheguei é, literalmente falando, um velho conhecido. Cruzámo-nos num corredor da Imagiologia em junho, na Imunohemoterapia em julho, num WC em agosto. Podia dizer que o mundo é pequeno, mas a expressão parece-me duplamente redundante, porque o mundo é mesmo pequeno, para mais dentro de um hospital, e o mundo dos doentes é menor do que o mundo pequeno das outras pessoas, é um mundo asfixiante, uma casca de noz!

Na fila da frente, há uma mulher de lenço na cabeça. É um lenço bonito, elegante, feito de um rosa macio, nacarado, de onde brota uma esperança que me comove. Podia ser verde, ou azul, ou violeta, ou salmão. A mulher tem um rosto fino, não sei dizer se jovem ainda ou já não, mas belo, muito belo, atraente. Gosto de me distrair descrevendo-lhe os lábios, as pestanas, o rubor que pinta as suas faces e contrasta com os olhos  amadurecidas pela surpresa.

Quase sempre trago um livro ou o iPad. Às vezes rabisco um apontamento e faço de conta que não pertenço às estatísticas, que sou um intruso, que não venho ouvir notícias duras, que os ponteiros funcionam de maneira diferente para mim. Chego a esquecer-me das dores nas costas, e da espécie de enxaqueca que se vai costurando na minha cabeça, e da fome, e da sede, do maldito cigarro que alguém decidiu fumar além, ali mesmo, para lá da curta porta que os sensores mantêm sempre aberta e sempre a fechar-se.

Durante a espera há tempo para tudo.

Às vezes atrevo-me a olhar para as pessoas de frente. Explico-me, a observá-las sem piedade, com ousadia, fundo, perscrutando-as até aos ossos. Deve ser uma prática criminosa, porque às duas por três me arrependo, me sinto vexado, me encho de remorsos e de culpa. Sinto-me então ainda mais cansado e mais triste. É como se outra pessoa tivesse ocupado o lugar que deixei vazio e essa pessoa fosse eu a olhar-me ao espelho sem me reconhecer.

Será que na sala há outros monstros como eu? Em que pensará toda esta gente? O que sentirá? Que medo a fará pregar-se ao chão e não agir com ímpetos de motim?

Regresso então ao ancião conhecido, que me segue sempre com um misto de carinho e de espanto («O que trará um rapaz tão novo a este lugar tão tenebroso?», «É o que eu digo, elas vêm cada vez mais cedo!», «Se calhar, é um cancro.», «Sei de miúdos cada vez mais novos a morrer assim…»). Percebo que me quer o nome, a idade, a confirmação da maleita. Adivinho-lhe os pensamentos, apetece explicar que não sou assim tão novo, que não tenho (segundo o apurado até à data) um mal tão grande, que isto se vai resolver, que há na vida complicações inesperadas. Percebo que talvez gostasse de me falar da sua própria enfermidade, dos filhos, dos netos, especialmente, quem sabe, daquela que é enfermeira em Londres e o orgulho da família («Sabe você que tenho uma netinha, pouco mais nova será que o senhor: foi trabalhar há coisa de um ano, ano e meio, para Inglaterra. É uma miúda do dianho. Foi sem medo, ganha muito bem!»).

Mas nunca trocámos uma palavra.

Porque me divido agora com a senhora do lenço na cabeça. Tão bonita, tão triste, tão saturada da vinda a este e a outros banquetes semelhantes, tão só («Descobri há meses um nódulo no peito e foi o começo», «Já uma irmã minha morreu por causa do cancro da mama», «O que custou mais foi a quimioterapia. Nessa altura, fiquei com a boquinha toda em ferida.», «Agora, se Deus quiser, isto vai passar…»). Não descortino um modo de iniciar com ela uma conversa. Nem valerá a pena. Não suporto tamanha tristeza. Não saberia contar-lhe algo engraçado, tragicómico, apropriado à situação («Olhe, estou aqui sem saber bem como. Foi como um macaco ter caído de um galho. Descobri tudo por acaso…», «A vida prega-nos rasteiras inacreditáveis. Fui a uma consulta, supondo que me raspava em cinco minutos, e fiquei internado onze dias»). As desgraças cansam, maceram, desgraçam-nos.

Nunca faço nada de relevante. Não consigo concentrar-me.

Sinto que aqui cheira a medo. Na verdade, a diferentes tipos de medo: a medo de que a espera se prolongue interminavelmente; a medo de más notícias; a medo de que a filha subitamente desaparecida não volte para a nossa beira e um bando de estranhos nos capturem e encaminhem para qualquer lado incógnito, incompreensível, irreversível, infernal; a medo de que a nossa mãe demente volte a protagonizar um escândalo na sala (onde já se viu, fazer chichi pelas pernas abaixo?) e de que a funcionária terrível, carrancudíssima, nos passe uma descompostura monumental; a medo de que na sanita faltem o papel e a higiene e de que, nesse preciso instante (em que intestinos e bexiga atingem o limite), soe o nosso nome e a indicação do consultório no altifalante. A medo decerto de sermos afinal tão frágeis como acreditamos que somos; de que se repita uma epistaxe, de que se solte um flato, de que em desespero de causa se diga um palavrão. A medo da velhice. De ficarmos nessa ou naquela maca com algália e saco repleto de urina de lado; a medo de que as palavras sejam a partir de certa altura apenas chocalhos mentais, átomos a bater contras as paredes da cabeça, ideias confusas, morte.

Normalmente, tudo termina quando nos levantamos e nos dirigimos para certa porta. Depois, alguém de bata branca, voz mansa e olhos risonhos apazigua todos os pavores. Não sei como se passará com o velhote que me espia, nem com a senhora de lenço na cabeça que eu espiei. Julgo que é só uma forma de ver as coisas, ou também isso será uma feição do medo: medo de não se saber nada, de não se ter certeza sequer de que à nossa volta outras pessoas existam.

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Os professores são imprescindíveis. Ponto

Marco Tagliarino
Fotografia de Marco Tagliarino

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Não me julgo capaz de medir a importância de nenhuma classe social (quando escrevo «classe social», refiro-me evidentemente a um grupo de pessoas suficientemente próximas umas das outras pelo que são e pelo que fazem juntas, pelo que ganham e pelo que perdem diariamente sendo e fazendo, pelo que sofrem e pelo que ambicionam ganhando e perdendo todos os dias, sendo e fazendo), exceto talvez aquela a que pertenço.

Sou professor.

Com muito orgulho (lá no fundo), com muitas ganas (pelo menos nos dias bons), com talento (suponho), com suficiente destreza e atrevimento (sim) para continuar a sê-lo apesar de tudo.

Sou professor há 20 anos. Contratado, de Português, do ensino básico e secundário. Com experiência alargada ao ensino superior (não gostei), a alunos estrangeiros (adorei), sem esquecer a idosos que nunca, antes de mim, tinham tido aulas formais na sua língua materna (a melhor de todas as coisas que me aconteceram no espaço da sala de aulas). Um entre tantos que se vão desiludindo, a quem uma certa centelha de alegria se vai apagando aos poucos, por não suportar o país imbecil que os trata mal, entenda-se, que os destrata de alto a baixo; entenda-se, dos gabinetes do Ministério às conversas de rua.

Acima, atrás, há pouco, sublinhei o apesar de tudo.

Porque ser professor em Portugal implica uma capacidade quase estoica de suportar dificuldades que começam e acabam no desaforo dos meninos e pais malcriados (eventualmente violentos e desentendidos com a escola) e passam pela permanente sensação de instabilidade (uma teia legislativa imparável, desenhos curriculares sucessivamente reconstruídos, regras de concursos alteradas), sem esquecer a afronta salarial e o descaramento dos governos no tocante ao (des)congelamento da carreira e sistema de avaliação.

Esqueci, não propositadamente, o facto de, para trabalharem, muitos professores terem de se deslocar de casa centenas de quilómetros. Pagando rendas exorbitantes. Pagando portagens. Pagando combustíveis. Sem ajudas de custo. Sem proteção à habitação de espécie alguma (não será de espantar que no Algarve e em Lisboa se encontrem professores a viver em parques de campismo). Sem o reconhecimento, sequer, de uma sociedade que se habituou a queixar-se dos privilégios dos políticos, magistrados e administradores de empresas estatais e que não vê motivo para estender aqui, nesta questão concreta, uma migalha aos professores afastados da sua família, por ser o seu trabalho e, entenda-se, a sua obrigação!

Estamos mal. Os professores são mestres, são docentes. Entenda-se, ensinam.

Quanto a mim, que amei os meus professores (não serei hipócrita a ponto de omitir que detestei alguns), que lhes reconheci mérito e génio, que lhes agradeço as imensas lições, sabedoria e competências que me proporcionaram, que lhe imito ainda a fleuma e o fair-play, o sentido de humor e o sentido de responsabilidade, a dedicação e a exigência, só posso afirmar que são a melhor classe de pessoas com que tive o privilégio de conviver.

Acrescento a esse grupo fabuloso de profissionais talvez os enfermeiros e cuidadores de saúde (nos lares em especial), alguns médicos, um ou dois padres, um ou dois mecânicos, um ou dois pasteleiros, talvez meia dúzia de livreiros e poucos mais.

Não se percebe que profissionais dedicados, quase em regime de abnegação, sejam olhados como parasitas, ingratos, incompetentes, preguiçosos, estúpidos, incapazes de impor ordem e disciplina, queixinhas, etc.

Estamos mal. Porque todos os apodos que usei no parágrafo anteriores são os que se usam diariamente para acusar a classe dos professores. Pior, para dividir os professores entre os bons e excelentes (somente uma parte pequena) e os maus, malucos, horríveis, malcheirosos, ignorantes, peneirentos, maníacos, exigentíssimos, insuportáveis e por aí fora.

Não me julgo capaz de medir a importância de nenhuma classe social, insisto. É provavelmente um exercício para um comentador de televisão, não para quem tem ainda este fim de semana uma pilha de testes de diagnóstico (minto, de avaliação formativa inicial, para corrigir) e as aulas da próxima semana para preparar.

Contudo, tenho este desabafo a bailar na boca: não me estou a ver a fazer outra coisa.

Gosto da sensação de abrir a porta da sala de aula e saudar os meus alunos. Gosto de levantar as cortinas e deixar a luz entrar e de dizer algo belo e sensível. Gosto de os ouvir confessar algo surpreendente, algo impensável como uma ida a Serralves que valeu mesmo a pena, um filme afinal muito bom que eu lhes sugerira semanas antes, um livro fantástico de Gabriel García Márquez (muito melhor que os de Nicholas Sparks, John Green ou Sidney Sheldon)…

Ser professor é exatamente a medida da diferença.

Qualquer coisa como aquela peça minúscula, quase indetetável entre rodas dentadas e alavancas, que fará girar a vida noutra direção, que encaminhará um improvável adolescente rebelde para um curso de engenharia ou para uma faculdade de arquitetura ou para um instituto de medicina. Ou que, não os encaminhando para tão longe, os faz compreender uma vocação indescoberta e os conduz para o outro lado do mundo, atrás de um sonho novo, seja a bordo de um avião ou de um navio, seja em terra a defender animais e florestas, a fotografar montanhas ou a grafitar escombros e miséria.

Neste dia 5 de outubro, quero somente dizer OBRIGADO àqueles e àquelas que me tornaram no que sou: aos meus pais (primeiríssimos professores) e aos meus professores (segundos pais) a quem devo tanto. E com «tanto» quero dizer, sem tirar nem pôr, tudo!

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Quando os dias são um só dia interminável

Fotografia de MWHUNT

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Por fim, o cansaço faz-me dormir. Precisei de cinco dias para o conseguir. Jantei e lavei os dentes. A penumbra desenha-se no horizonte. No podcast, as palavras do locutor são exatas, informadas e tranquilizadoras:

«… a começar Poema dos Átomos; a música de Armand Amar, com as palavras de  Jalaluddin Rumi, poeta sufi do século XIII; na interpretação, as vozes do iraniano Salar Aghili e do turco Haroun Teboul…».

Aos poucos os gemidos do ancião na cama ao lado deixam de ouvir-se. Deixa de ouvir-se no corredor o ranger metálico do carrinho da enfermagem. Deixa de ouvir-se a água que goteja imparável na torneira da casa de banho. Deixa de ouvir-se o bip-bip do aparelho que monitoriza a frequência cardíaca. Deixam de ouvir-se as vozes que ordenam e as que acalentam, as que suplicam e as que insultam, as que explicam e as que não compreendem, as que berram e as que ciciam, as que possuem ciência e as que têm sentimento.

Na minha cabeça, presa por auscultadores a outro tempo e a outro espaço, as vozes que cantam numa língua ininteligível fazem-me atravessar paisagens de deserto e de água. Aos poucos confundo sonho e realidade e sinto-me cair dentro de mim como um fardo num poço, como Daniel na cova dos leões, como Brás Cubas no seu devaneio mortal.

Nunca li direito o Ser e Tempo de Heidegger. Envergonho-me. Se o tivesse feito, poderia agora, neste limbo existencial, entender melhor o que significa “existir” e o que significa “pertencer momentaneamente” a um mundo a que pertenceremos sempre “momentaneamente”, dure o nosso tempo o que durar.

Vogo. O sono acolhe-me como o vazio do espaço acolhe uma rocha à deriva. Sem uma palavra, sem uma reação química, sem um suspiro, governando-me apenas por leis físicas. O poema de Rumi e a música de Amar e as vozes dos dois cantores árabes são agora um rasto na minha memória. Durmo.

Desperto uma hora depois, sacudido pela mão diligente que me há de injetar tinzaparina sódica. Os olhos erguem-se num esforço tremendo, pesam-me. Mais que eles pesa a cabeça. Sou um prego. No pontinho em que a agulha perfurou a pele fica um leve ardor. Com alguma sorte há de ficar também, de mistura, uma nódoa negra e um papo.

Oiço de novo as vozes e os nomes a que me fui acostumando nos derradeiros dias: Leopoldo, Virgílio, Júlio, Clementina, David, Eugénia, Rosa. Nomes ditos num “tu” que me desbarata, num “tu” próprio para anciãos meninos de 80 anos, num “tu” referente a corpos cansados e teimosos que insistem em retirar de si a algália e o cateter e a sinistra ventosa do oxigénio.

Sou um prego, uma cavilha, uma cabeça macrocefálica, de chumbo, que se segura sem tino. Escureceu entretanto. Penso em dormir outra vez, mas receio a sacudidela que virá (mais cedo ou mais tarde) medir-me as tensões, avaliar-me a temperatura, picar-me o dedo para ver como se comporta a glicemia, trazer-me o meio Triticum para descansar bem…

Ao invés, caminho até à sala de estar no coração do piso. As ironias entrelaçam-se. Cheira a café que não posso beber, cheira a cigarros que não posso fumar, cheira a tílias que não posso respirar. O janelão, sujo e meio baço, deixa contemplar a noite, o frenesim dos táxis, a procissão de faróis entrando e saindo e ladeando o Centro Comercial. De cada lado do vidro abre-se dez centímetros de liberdade; um aloquete impede-nos de colocar fora dele mais do que o nariz e talvez um olho; somente uma migalha de evasão, de paz, de poesia.

«Aqui os dias são todos iguais, um só, sete ou cem.»

Escrevo a frase no caderno que pedi para trazerem de casa, mas rasuro-a logo de seguida com raiva. Nem sequer me parece bonita, nem sequer genuína, nem sequer minha. Parece-me ruído, isso sim, chocalhar de pensamentos e de coração, lamechice.

Por fim, o cansaço é um preâmbulo de loucura.

Nunca na minha vida me senti tão só, tão inútil, tão impotente. Talvez regresse ao poema de Rumi e à música de Armand Amar, às vozes luminosas que não decifro de Aghili e Teboul. Talvez me atire ao Alprazolam escondido, interdito, na gaveta. Vogo. O sono arremessa-me no vazio como um asteroide pela noite sideral, do nada e atrás do nada.

Um dia emendar-me-ei quem sabe com Heidegger. Hoje, porém, ser e tempo não passam de palavras plúmbeas e espúrias, desastrosas (Leopoldo, Virgílio, Júlio, Clementina, David, Eugénia, Rosa), envoltas em cheiro de fezes e de urina, a que ninguém, nem o próprio Deus, me ensinaria a voltar.

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Ódio à mediocridade

Marco Gentini
Fotografia de Marco Gentini

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«Um escritor não é a soma dos seus livros, é a fuga ao livresco. Um escritor não escreve. Inventa.»
Pedro-Daniel Névio, Escoriações

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A casa do escritor ficava no subúrbio norte, numa área sossegada, a seguir a campos, entre curtos eucaliptais. Lembro-me do cheiro a limpo, do perfume da alfazema, da frescura da mobília, do odor dos sofás de cabedal. Lembro-me da porta aberta do escritório, das estantes escorrendo das paredes, escondendo-as, de um ou outro quadro de Kandinsky no intervalo dos livros, do adágio de Mozart, do violino de Itzhak Perlman, da meia sombra e da meia luz tapando o vaso das orquídeas e alumiando o formidável persa azul aos pés, no tapete, do ar muito quieto do seu corpo quando lhe anunciaram a minha visita.

O escritor concedeu-me uma entrevista, autografou-me sete dos seus livros, ofereceu-me um volume de poesia em edição limitada, corrigiu nele um verso terrível, teimoso, com caneta de feltro, abraçou-me no fim.

«Cuidado com a mediocridade. Odeie-a.»

Era quase noite quando regressei à cidade, ao centro, às banais lentejoulas dos meus comparsas no círculo intelectual. Na madrugada seguinte vim para a varanda queimar papéis. Fi-lo sem arrependimento. Voltaria a fazê-lo na minha vida. Repeti-me a repreensão de Horácio, «Inutilia truncat», que hoje é a minha divisa.

O escritor, agora que o leio dobradamente, póstumo, sem peias, é um génio. Não engaja frases ou versos, fá-los encontrar-se com leveza e com verdade. Não lhes disfarça o vazio com efeitos de pirotecnia, enche-os com amor. Dele escasso se diz, nada se escreve, pouquissimamente se indagou nesta década seguinte à sua morte.

Penso muitas vezes nesse encontro, nessa tarde de outubro, nessa literária mediocridade absurda que ao redor de nós se levanta como um circo, como um cerco, repleta de aplausos lorpas, provincianos, reles, serôdios, babujados, amacacados, odiosos.

Tanta razão, escritor!

Vêm dizer-me «Fulano publicou», «Sicrana vai publicar» e é um tédio. Bocejo por vislumbre, lendo já de roldão, à laia de adivinho, tantas páginas repletas de mais do mesmo, da mesma retórica (retoricazinha, vá lá) balofa, oca, medíocre, que enche cada vez mais escaparates de livrarias e estantes de bibliotecas. Bocejo de pensar que aí vem mais do mesmo, da mesma merda ociosa que pulula nos cantinhos de jornal, com estrelas, panegíricos, recomendações de leitura…

Horrível.

Por cá a malta distrai-se, distrai, facínora. Distraiu, distraiu-se sempre. Não há que fazer. Prefere cantar teias de aranha a ver paisagens, embora espreite pela mesma janela. É uma questão de «escala do olhar» como escreveu Fiama. E em terra de cegos, já se sabe…

Hoje acordei com saudades dos dias em que amava a literatura como uma religião. Sim, escritor, odeio a mediocridade. Deve ser isso o que terei de ensinar a quem me lê. Talvez seja uma questão de apostolado. Talvez tenha de pregar no deserto ou aos peixes. Sublinhei a lápis grosso «Um escritor não é a soma dos seus livros, é a fuga ao livresco. Um escritor não escreve. Inventa.» E é exatamente assim.

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Crónica dos dias comuns

Paulo Abrantes
Fotografia de Paulo Abrantes

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A viagem demora três quartos de hora.

É muitas vezes a distância entre mim e eu. Ao fim de meses, a última afirmação parece-se extraordinariamente verdadeira: duas vezes três quartos de por dia multiplicadas por muitos dias é uma soma impressionante de pensamentos, de constatações, de memórias, de tomadas de decisão, além do asfalto, do combustível, das portagens, dos monólogos, dos programas de rádio, das conversas ao telemóvel, das árvores a despir-se, despidas, vestindo-se novamente, dos bandos de pássaros voando numa alucinação de cardume, dos arco-íris e mosquitos esmagados no vidro dianteiro, das ultrapassagens assassinas dos camiões TIR, dos condutores esburacando as fossas nasais com os dedos mindinho e indicador.

A viagem nem sempre é boa. Muitas vezes cansa, cansa mais agora,  exaspera, os olhos ardem, a rota faz bocejar, leva-me ao vazio e dele me leva de volta a casa. Muitas vezes é assim. É um sonho, uma dormência. Abro as janelas, a da esquerda primeiro, a da direita depois, mesmo se lá fora está frio, especialmente se está muito frio. Preciso de me ventilar, de ser açoitado pelo ruído e pelo ar denso, de acordar.

A pior parte da viagem é esta que nos faz tergiversar a vida, como se a viagem não fizesse parte dela e tudo não passasse de um efeito de redoma. A vida pede-nos, aliás propõe-nos, aliás exige-nos uma grande dose de ousadia.

Enquanto o conta-quilómetros vai substituindo números, sorrio em segredo para dentro de mim. E lá estou eu, a gostar outra vez de Antropologia Cultural, a estudar os povos africanos e as tribos da Polinésia, a sonhar com viagens de comboio pelas estepes asiáticas e a fotografar aldeias da Mongólia, da China e do Turmenequistão. Tenho a mochila inchada de cadernos e os rolos da máquina fotográfica repletos de rostos desdentados, lareiras ardendo em casas de terracota e estranhos e curiosos animais parecidos com os nossos animais domésticos mas diferentes dos nossos bichos de estimação. Sou eu sem lamentos ou evasivas, escrevo crónicas de viagens a sério, publico livros que ensinam o quanto o mundo é pequeno visto de dentro e sinto-me puro e veemente, cheio de frases que soam como soam as teclas da máquina de escrever.

Este devaneio volta amiúde. Volta sobretudo em determinados dias da semana e a certa altura no percurso, quando o dia rompe da massa escura das montanhas do Marão. Primeiro o horizonte é só uma película rosada, atravessada pelo fumo translúcido dos aviões («Lá em cima os aviões com o seu rasto aceso parecem caracóis segregando uma baba luminosa» escrevi num conto d’ O Moscardo), depois surge o clarão, o arrebol, a luz de lume do sol. Dura uns segundos apenas, mas a imagem fica e acorda outras imagens acamadas na minha memória. A explosão torna nítidos pormenores que me acompanham durante o dia, mostra o girar das torres eólicas ao longe, os mantos de nevoeiro e de fumo sobre os povoados, a cintilação dos metais e dos vidros em mil casas que alcanço num abrir e fechar de olhos, uma curva da autoestrada além, subindo, reaparecendo, brilhando, para logo desaparecer de novo entre campos e montes.

Sonho comigo num qualquer festival de música eletrónica progressiva (de Oleg Byonic, de Lukas Termena, de Armin van Buuren), num terraço de Nova Iorque a fotografar o Hudson, ou nas escarpas da Irlanda e nos fiordes da Noruega a sentir-me íntimo das paisagens maravilhosas. Sonho comigo passeando nos jardins de Quito, entre as colunas de Tebas, sobre as ruínas do Peru. Volto a emocionar-me com a adolescência rigorosa das aulas de Filosofia e de Jornalismo, disciplinas a que obtive classificações históricas, e por via delas sonho comigo filosofando e noticiando em Alexandria, em Cambridge, em Istambul, em Toronto, em todas as bibliotecas, museus e universidades importantes do mundo.

Sobre mim relampeja o azul das placas sinalizadoras.

Sem dar por ela, aproximo-me do destino, o carro desacelera, avança sem pressa, também ele enfastiado, esgotado, saturado do ramerrame, aquecido pelo esforço dos pneus, cheirando às vezes a uma combustão suja (como se alguma vez pudesse ser limpa) de gasóleo e de travões.  Quando me apeio, sinto um emperramento terrível, uma preguiça de morte, um desapontamento. O desapontamento cresce se se depara com outro rosto desapontado no brilho espelhante da carroçaria. É uma solidão de dois rostos que sendo um são dois rostos reciprocamente desiludidos, um desamparo. Às vezes receio cambalear. Talvez cambaleie, dorido, sem força, pronto para o que der e vier. Nem tenho tempo para perguntar. Se tivesse perguntá-lo-ia talvez. Embora não o jure o aqui. Talvez. Apenas talvez.

Que viagem foi esta que eu fiz?

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