Tango

Tango, Tomek Dyczewski
Fotografia de Tomek Dyczewski

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Na penumbra do salão, o rosto procurado regressa do meio das sombras. Não tens mais de vinte anos, tempo de juventude destilado na minha própria alma desavinda. É por ti que venho, hoje, ontem, noutras noites. Rosto de quem sabe ainda sonhar, de quem pode existir a salvo das rodas dentadas do relógio maldito. Rosto belo, em cuja pele deslizo dedos de amor, rosto insubmisso de mulher dançarina, rosto de puro erotismo e perdição.

Em nenhuma outra boca me apetece tanto o travo de um cohiba, o sabor dividido de um scotch, a negra reminiscência do café ou a palavra quero. Contigo trouxeste o cálido sangue argentino, o tango maravilhoso, que ao mesmo tempo é linguagem e ausência de linguagem, inexatidão de movimentos e o perfeito instante em que dois corpos se batem num duelo de sedução.

Vieste no momento em que precisava de ti. Aconteceste quando não esperava que pudesse renascer dos meus ossos de cinza. Trouxeste o fulgor de uma existência não tocável pelas misérias de um tempo e de um espaço concretos. Mais longe, ou mais fundo do que todas as outras mulheres, tu soubeste tocar sem medo a pedra fria do meu coração. Comigo te cruzaste, algures, nesta redonda casa onde tudo a todos é dado a desejar e a perder: tu disseste que ficasse e eu fiquei.

Por isso, por ti, vim todas as noites, hoje, ontem, sempre. És bela e não apenas pela firmeza da cintura, pela doce comissura dos lábios, pelo alarde de perfume que te atravessa as formas ou pelo delicado rodar das unhas. Conheço-te a admiração pela música, pela poesia (de Borges, de Neruda, de Lorca, de Víctor Jara; não de Pessoa: Eso lo detesto yo, como a todos los eunucos!), pelo vinho francês, pelos charutos cubanos, pelos pastéis de Belém, pela absoluta liberdade de todos os sentimentos, em ti nascidos e por nascer.

Disseste:

No tengo nombre, ni edad! Tengo sueños! Tuya seré mientras mío seas tú!

Nunca verdadeiramente te possuí, nem jamais em rigor poderia exercer sobre ti a posse. Pertences a uma espécie de seres que nos marcam com ferros, como para sublinhar o privilégio ou a desgraça de um dia havermos merecido a sua paixão. Haverá, quando muito, uma em dez mil vidas oportunidade igual de ser-se personagem numa tal história.

Diante dos espelhos, sob o lustre gigante (que mais se imagina pertencer a um grande salão vienense), a dança incorpora-me nos subúrbios de um outro tempo: solitário, o bandónion cresce; rostos anónimos, incontáveis, observam-nos da sombra; a canção é de uma tristeza esmagadora, um sismo de Piazzolla; tu rastejas a meus pés, imploras atenção, num menear desolado de quadris; sou uma criatura distante, o elegantemente panamá descaído, a barba por fazer, o casaco pendurado ao ombro num disfarce de másculo desdém, fato escuro, numa silhueta rio-platense que te faz chorar (Tan guapo, mi amor! Tan lindo!), tudo numa absoluta ironia de papéis trocados.

Perguntei:

O que farei um dia quando, milímetro por milímetro, me consumir este incêndio de imprevistas labaredas, se deixar de merecer o teu amor?

Disseste:

Pues, pase lo que pase, jamás te olvidaré, cariño!

Na penumbra do quarto, onde somente dedos frágeis de luz fissuram a janela, contemplo uma vez mais o teu corpo vencido e vencedor…

Haverá na vida de um homem, quando muito, uma sorte destas em mil, em cem mil, num milhão.

Porém amar e ser-se amado por uma mulher tão bela não é felicidade, mas angústia; incerteza terrível quanto ao destino, quanto à volúvel benquerença dos deuses… E, por isso, amar-te e ser-se amado por ti enlouqueceu-me os olhos e a boca. E tu que me salvaste, és tu que aos poucos agora me perdes, sem que disso tenhas consciência… ou culpa!

Em silêncio, como cedendo ao meu próprio e voluntário abismo, ao tango que me ensinaste, como para garantir a minha memória na tua memória, deixo-te assim mesmo, dormindo; deixo-te assim mesma, como sempre acontece nas frágeis aparições da vida, refém dos teus sonhos incontáveis, sem idade ou nome…

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Na mesa de trabalho

The Travel Writer, (Deviant Mind)
Fotografia de Deviant Mind

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Na mesa de trabalho cabem agora somente objetos imprescindíveis. Um dicionário atualizado, a Bíblia, cadernos de sebenta, uma lapiseira e algumas canetas de pincel (de tinta preta), um cinzeiro (com a função exclusiva de pisar papéis) e um volume de poemas de Tomas Tranströmer, no lugar que foi já de Elaine Feinstein, Salah Stétié, Ian Hamilton, Wisława Szymborska, Ruth Fainlight, Anise Koltz ou Czesław Miłosz. Tenho também as gavetas apetrechadas com a subsistência: uma resma de papel, uma caixa com duas canetas de aparo e respetivas cargas de tinta, uma coleção de livros de bolso da Assírio & Alvim, uma agenda, montes de cadernos antigos (de que não fui ainda capaz de me separar) e um isqueiro elegante (capeado em pele e metal, muito elogiado por amigos e parceiros de tertúlias, quando principiava a publicar há pouco mais de uma década e o ostentava em cigarros de ocasião).

Sobre o tampo da mesa, impecavelmente arrumado e limpo (sobretudo, do pó) há também um candeeiro vermelho que me ficou dos tempos universitários, e cujo design me fascinou na época. Há ainda, por último, uma ampulheta, objeto este sem qualquer serventia, e por isso o mais casto e importante de todos. Como é pesado, imagino que um dia, se me entrar pela janela do escritório um larápio, me possa finalmente ser propício usá-lo…

Ultimamente, quatrocentas páginas de produção poética minha dividem com estes escassos objetos o retângulo de madeira. São o fruto de quase seis anos de criação e divulgação em blogue. Foram mais, mas a salamandra incinerou num primeiro instante os “devaneios”, resultado, evidentemente, de noites mal dormidas ou do álcool!

Tanta filharada junta espatifa-me a paciência. Um a um, vou-lhes passando a boca por cima e sublinhando a mercê de cada qual. Ou então riscando-lhe uma cruz, com a preciosa anotação de «Lixo», com que o cesto tem engordado, a ponto de ter também uma caixa de cartão ao lado, para acolher a rejeição. Não sou, reconheço, um crítico imparcial, ou ser benquisto da minha própria literatura. Sempre suportei mal em mim mesmo o rigor, quase despotismo, da abordagem. E tudo porque, com horror de fiscal, considero os meus poemas francamente defeituosos, em particular por causa dos erros de musicalidade, por causa de lapsos na disposição formal, ou, no pior dos casos, por causa da falta de ideia, pura e simples!

É-me penoso ler e reler-me!

Aliás, essa a minha grande inveja em relação a outros, que me confessam o prazer (e até o júbilo) de juntarem as suas coisas num livro. Porque no lado de cá da rua, também há quem saiba combinar maravilhosamente a roupa com os assessórios.

Não é o meu caso, lamentavelmente. Aliás, vem muito a propósito narrar a peripécia que em 2005 deu origem ao volume dias desiguais. Desesperado e com o ultimato do editor a fazer-se ouvir cada vez mais alto (tinha os poemas, mas não a sua ordem de sucessão), precisei de espalhar pelo soalho de um apartamento desabitado toda a minha obra, mais ou menos como fazem os polícias nos filmes de polícias com as provas de crime dos serial-killers. E foi do chão (e não do céu aureolado de alguma musa) que me caiu a lógica do livro, se alguma lógica é possível…

Sou, com efeito, péssimo a arrumar-me. Neste momento, com cerca de quatrocentas páginas, a coisa parece-se com um bazar marroquino. Há de tudo, dos poemas curtos (à laia de epigramas) a poemas de fôlego com que me atafulhei de reflexão metapoética. Enfronhado nesta feira de palavreado, procuro o melhor do melhor, alguma manifestação de génio com que sacie a fome dos meus vinte e cinco leitores e justifique horas e horas e mais horas inumeráveis de ofício.

A eliminação, porém, é dolorosa. Quer dizer, a princípio é. Porque imponho a máxima do “tudo ou nada”. Uma vez reprovada a folha, não há reciclagem que lhe valha. Nenhum poeta gosta de esbanjar vestígios de incompetência artística ou de fragilidade intelectual. Todo o poeta, pelo menos por princípio e pretensão, é divino. E também as divindades punem mortalmente. Porque também as divindades cometem fífias e delas se desgostam. E se desgostam mais das testemunhas da sua fraqueza. Pela parte que me toca, a minha divindade roça às vezes o olimpo de uma taberna.

Ato contínuo, e para não me perder mais em labirintos retóricos, direi que a eliminação age como a tempestade sobre o alcatrão: apaga-lhe os indícios da imundície. Nada, exceto a perfeição, deverá sobreviver em poesia. A lei de Darwin, no fim de contas, é também a lei da literatura! A memória do sistema, já Bloom o afirmou com todas as letras, é um processo de branqueamento contínuo, metáfora simpática para dizer apagamento. E eu antecipo-me ao tempo. Eu voluntariamente apago!

Para me compensar de tamanha empresa, faço-me acompanhar por chocolate amargo (setenta por cento de cacau). Podia ser uísque, mas julgo-me incapaz de tanta virilidade: diria como Graham Greene “I’m not Hemingway, for God’s sake!”. E o chocolate sempre é mais barato. Diga-se que mais limpo também. Diga-se, ainda, que não tão mau para a vesícula…

Não, reler-me é penoso!

E fazê-lo com um tão grande caudal de escrita será o décimo terceiro trabalho de Hércules. Cá estarei nos próximos tempos para o conseguir. Pouco a pouco, peneirando e peneirando, à cata de pepitas que, oxalá, façam do meu próximo livro um bom motivo para continuar vivo e apaixonado pela vida! Há que reconhecer: um bom poema, nascido das nossas mãos, é motivo suficiente para tanto…

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Passear o cão

Walking the dog (Jeroen Oosterhof)
Fotografia de Jeroen Oosterhof

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Saio com o cão. As noites são agora demasiado longas. Descemos a avenida sob o halo mortiço dos postes elétricos. O ar frio volteia sob o foco das luminárias, penetra cada poro do casaco. Bela fotografia: triste, mas bela. Ao fim da tarde repetimos o caminho. Ele farejando com avidez não sei que imponderados sinais, eu buscando restos de pensamentos e meditações de outras idas.

Terminado o alcatrão, entramos em linha reta pela direita num lugarejo onde sobem altos muros de pedra, sobre os quais se mantêm de pé os ferros das ramadas. Formam sobre as nossas cabeças uma armação quadrangular. Estamos na terra batida. As fontes de luz rareiam, mas aumentam em contrapartida as bátegas de névoa e com elas o doce cantar da água. Brota do alto, do cano enferrujado que sobressai de uma pedra talhada, espécie de fontanário, sobre um tanque encalacrado entre as paredes de duas casas antigas; depois flui constante ao longo de estreitos canais formados no meio de compridas lajes paralelas. À superfície nada-lhe uma cama de musgo e nenúfares. Um recanto antigo, palco noutros tempos de idílios entre lavradores e belas moças com cântaros à cabeça.

O cão conhece o caminho. Embrenha-se já na mata, num pequeno bosque que precisamos de atravessar. Galgo a pedra que divide as propriedades, no ponto de interseção dos quatro pontos cardeais. Outrora chamavam-lhe portelo de cão, aonde acorriam almas inquietas com o braseiro dos defumadouros com que exorcizavam maus-olhados e bruxedos. O som da água vai-se tornando mais distante, substituído pelo quebrar dos galhos debaixo das botas. Preciso de avançar com a lanterna em riste para não tropeçar nos sulcos profundos desenhados pela chuva na terra ou para evitar os destroços de carvalhos, faias e olmos. Há raízes emergindo, nodando formas bizarras, serpenteando o fino carreiro por onde paulatinamente nos perdemos…

Nilo fareja, corre com euforia, dispensando os rigores da visão. Estamos no meio do silêncio e do negrume. Nenhuma casa ou luz humana se vislumbra ao redor. Por momentos apago a lanterna. O frio é intenso, físico, atravessa-me os ossos, ascende em colunas de nevoeiro desde o regato mais ao fundo. Como num sonho, sinto-me entregue ao reino das sombras e dos elementos. Observo o céu. Perco-me na amplitude das constelações que se revelam num recamado de metal argênteo. Libertas do ruído de outras candeias menores, as constelações chegam em cachos cósmicas, poalhas suspensas no firmamento como pequenos cristais sobre um tapete negro de veludo. Sempre me pareceram mais limpas e lídimas as estrelas nestes meses do gelo.

Alarmado ou apenas curioso, Nilo regressa. Convida-me a prosseguir jornada. O bafo que lhe sai da boca é veemente. Espanta-se da minha quietude, do meu êxtase, da ausência de movimento. A lua, reduzida a uma fímbria de claridade, atravessa a silhueta óssea das árvores. Em algum momento das nossas vidas já vimos algo parecido. Doem-me as extremidades dos dedos e do nariz. Como num sonho sinistro, imagino o abraço monstruoso destas assombrações, do esqueleto formado pela articulação de todos os ramos descarnados procurando agarrar-me e reduzir-me à escravidão de criança surpreendida pelas criaturas da noite. Um arrepio devolve-me ao tempo e ao espaço.

Acendo de novo a lanterna. Acicatado por Nilo, forço um andamento rápido. Junto dos castanheiros a água fumega. Através da folhagem rasteira de campos devolutos, o animal corre como um louco soltando roncos de perdigueiro. Aqui a humidade é mais álgida ainda, mais negra a escuridão, mais lamacento o areão que pisamos. Mas os cheiros são também mais puros, mais soberbos, mais vívidos, mistura de excrescências silvestres e agrárias com o odor das folhas em decomposição. Estamos no meio do nada. Um quilómetro atrás, um quilómetro à frente generosas lareiras fazem subir aos telhados a malha esbranquiçada do fumo. Dentro das casas aquecidas, das cozinhas rescendentes, dos quartos calafetados e atapetados, onde o ecrã luminoso de pequenos retângulos de tecnologia apurado conectam este mundo a todo o mundo, a civilização prospera. Mil metros de distância… Mas aqui, junto à vetusta azenha desmantelada (de que sobram ao alto, até ao lintel, as pedras de granito onde a hera principiou há muito o entrançado do seu vagar), aqui no mais prístino silêncio dos campos, dos choupos, do funcho, das hortelãs, aqui onde as corujas perseguem já ratos ocasionais, aqui estamos em pleno século XIX. Sou de algum modo o último herdeiro consciente de uma civilização que se reproduziu, floresceu e declinou, última testemunha de um tempo que se fez lívida reverberação de fantasma diante da lanterna.

Os meus antepassados aqui nasceram, viveram e morreram. Guerras se aproximaram e eclodiram, armistícios se assinaram, viagens lunares e inventos extraordinários foram notícia e mudança na sociedade dos homens. Grandes artistas e pensadores impuseram novos paradigmas de beleza e reflexão nos dois séculos que me separam deste silêncio de aldeia. Mas aqui, nesta ilha que o progresso esqueceu e marginou, tudo permanece, tudo como o veria o meu tetravô moleiro a esta mesma hora, quando por uma corda conduzisse as mulas ajoujadas de sacos de farinha. Tudo igual, ou apenas mais envelhecido, e mais silencioso, e mais espetral.

O corpo treme-me de frio, mas resiste. Porque há dentro dele um fio de consciência que sabe estar a assistir a algo único e raro como seja o derradeiro suspiro de um tempo prestes a ser aniquilado pela força brutal e irreversível de outro tempo. Todos os meus mortos me acenam dos confins aonde os levou a morte. E, por isso, é belo e doloroso atravessar este pensamento todos os dias, todas as noites, com o meu cão. E, por isso, é doloroso e inconsolável regressar ao alcatrão, ao frio elétrico de todas as veredas e estradas que se avolumam para cá da casa extinta dos lavradores, onde o óxido e o silêncio selaram para sempre amplos portões de ferro.

Nilo volta. A noite é agora profunda. Volta para me resgatar ao meu próprio abismo, à espiral suicida de todas as galáxias que torvelinham na minha alma. Traz-me de volta a casa, segurando-me pela trela, ofegante e com a língua de fora, vencido pela sede e pelo cansaço, vencido pelo esplendor da revelação. Sim, as noites são agora demasiado longas. Demasiado. E ninguém, absolutamente ninguém, pode entendê-lo.

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Dois livros

Magic book (Mirijam)
Fotografia de Mirijam

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Em casa havia pouquíssimos livros. De modo que a chegada misteriosa desses dois fez da minha vida um milagre de conversão, ela que se destinava aos fornos de uma padaria: refiro-me ao primeiro tomo da História Universal de H. G. Wells (edição Livros do Brasil) e aos Contos da Montanha de Miguel Torga (uma velhíssima edição de autor). Julgo que vieram ao engano, trazidos por um primo distraído, para serem reduzidos a tiras, que era o nosso modo de fingir as notas verdadeiras. Vinham ambos muitos amachucados e riscados, perfeitos para alguém como eu, que nesses dias detestava coisas muito direitas.

Devo explicar que quando era mais novo tudo me parecia mais simples, mais visceral, mais antagónico, e belo também. Não estava acostumado a luxos. Uma lupa ou um jogo de monopólio eram para mim objetos distantes que só os meninos com sorte possuíam. Sorte era a palavra que me vinha à cabeça em vez de dinheiro, porque aos cinco ou seis anos já eu entendia as nuances discriminatórias da sociedade. Os objetos, quando me chegavam às mãos, quando os manuseava, quando os fazia funcionar por ação dos meus próprios dedos, ganhavam foro de coisas míticas. E eles chegavam, porque afinal também eu tinha alguma sorte: foi assim que me apareceram um porta-chaves em formato de pequeno revólver (tal e qual o revólver do cowboy John Wayne – saberá Deus como idolatrava John Wayne); foi assim que me apareceram, entre outros, um realejo todo cromado, um jogo eletrónico da Pantera Cor-de-Rosa, uma pista de comboio.

Mas os livros tardavam. O primeiro que comprei adquiri-o numa feirinha de escola aos onze anos: foi ele Histórias do Bichinho Qualquer de Sílvia Montarroyos. Também esse o recordo com imensa saudade, em particular com a história da Bola de Sabão que adormecera num mundo limpo e lírico de campos e rios cantantes e acordara para um mundo de fábricas e poluição. Não menos me comoveu o susto do Sapo Ti, que escutara em certo jardim a conversa terrível sobre um sapoti apetitoso e que decidira fugir para escapar às facas de cozinha … Coisas da língua, coisas da vida que eu amava já com escrúpulos de intelectual.

Volto à História Universal de H. G. Wells. Sempre nutri um fascínio especial pela história, induzido pelas lendas que me narrava o meu pai à noite, junto da lareira, histórias reais e fantasiadas, como as façanhas de Viriato contra os romanos ou a Tomada de Lisboa aos mouros por Afonso Henriques. Mas Wells ia muito mais longe, levava-me ao começo do mundo, ao Big Bang, depois aos dinossauros, depois aos primórdios da civilização. A sua História vinha acompanhada de legendas, de ilustrações que me espantavam, sobretudo no tocante às criaturas primitivas, cujas escamas, chifres e mandíbulas monstruosos me faziam sentir tão mais confortável neste tempo de quietas galinhas e gatos preguiçosos.

O livro vinha escrito numa linguagem escorreita, apenas negligenciada por grossas manchas de humidade que o anterior dono não fora capaz de precaver. Um crime. E o criminoso deixara também surripiar umas quantas páginas no final e a capa. Teria dado já então todos os meus porta-chaves em troca de um exemplar integral daquele cartapácio repleto de sagacidade e amistoso arianocentrismo. Creio que o volume terminava algures no período de formação do império de Alexandre Magno, depois de novelisticamente nos deixar a par de todas as intrigas da corte de Filipe, seu pai.

Com os Contos da Montanha de Miguel Torga sucedeu algo parecido. Li-lhes com paixão a linguagem incontida, onde o realismo cru (com inúmeras agulhadas do calão) e as boas intrigas se combinavam rudemente. O volume não vinha em melhor estado do que outro, muito semeado de notas a lápis sublinhando passagens obscuras de mulheres adúlteras, homens castrados, ladrõezecos de sacristia e beatas hipócritas. Mesmo sem compreender completamente aquela escrita, achava-a verdadeira, naquilo que a verdade pode em literatura significar autenticidade e beleza.

Li-o umas três vezes de fio a pavio, admirando o seu exotismo montanhês, absorvendo as suas expressões regionalistas, rindo nos mesmos sítios onde a parvoíce das personagens ou a graça do narrador galgavam os portões do sono e aqueciam (até a fazer cheirar a queimado) a lâmpada do candeeiro.

Dessa sucessão terrível de peripécias ficaram-me em particular os contos «A Ressurreição» e «Um roubo». Quando anos mais tarde pude lecionar nas minhas aulas o último destes dois, foi com choque que me apercebi de como Torga já não criava leitores entusiastas.

Os anos, a informática, a pós-modernidade reduziram Faustino e a sua tentativa gorada (“numa noite medonha, cheia de água”) de assaltar a capela da Senhora da Saúde em qualquer coisa semelhante a uma pilha de palavras incompreensível e enfadonhas…

Julgo que há uma idade em que nos podemos tornar tudo.

Nessa época em que os livros começavam finalmente a circular cá por casa, desisti dos velhos arroubos panificadores para me concentrar no poder (incrivelmente abstrato) das palavras. Quis ser professor de História, depois cientista (antropólogo, talvez), depois jornalista, depois professor de Língua Portuguesa, enfim escritor. Já aos catorze anos, quando acabei «Madalena», o meu primeiro conto (que haveria de queimar com muito outro entulho pessoal no fim da licenciatura), sabia que as grandes escolhas se devem a acasos tão ridículos como o dar de caras com dois livros esfarrapados e cheios de sabedoria.

Nessa altura não tinha computador nem sequer a máquina de escrever – que viria anos depois –, apenas sebentas de papel reciclado e canetas da Bic. E também o resto que já não sei, nem quero explicar…

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Fazer versos

Boy (Vedran Vidak)
Fotografia de Vedran Vidak

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Metade da minha turma reprovou no final do 5.º ano. Éramos uma turbamulta pouco polida e mal preparada intelectualmente. Eu escapava. Quem o dizia era o Padre Lobo, professor de Religião e Moral. Mesmo assim fui obrigado a pedir desculpa, diante de toda a classe, e em pé, sobre o estrado, à professora de Educação Visual, por me ter envolvido durante uma das suas aulas de desenho numa zaragata artística com o meu primo Barnabé. Cada qual usou a respetiva régua T para sovar o outro. O resultado foi ficarmos os dois com a cabeça rachada e inundarmos as nossas e as mesas dos colegas com restos de plástico.

De maneira que o primeiro dia de aulas no 6.º ano foi um terror, não fosse eu um intruso no meio daquela gente toda que se conhecia e se dava de cotovelos para me indicar. Eu era o tipo novo. Senti saudades dos velhos terroristas. A tal ponto que os olhos se me afligiam com a água teimosa que os queria submergir.

Estávamos em Língua Portuguesa, a primeira de todas desse ano letivo. Isto porque a professora dessa disciplina era também a Diretora de Turma. E viva aflição nos causou, porque nunca sorria e à medida que ia dando informações lançava-nos grandes olhos de coruja, que pareciam espiar-nos até para lá da sombra dos pensamentos. Tinha para além desta outra afinidade com uma ave de rapina: o seu fino nariz adunco, uma espantosa curvatura semelhante ao bico de uma águia.

De maneira que esmagado pela hostilidade geral tive o estranho pressentimento de estar a viver bem acordado um dos pesadelos da infância. Aquele seria um dia longuíssimo num ano que nunca mais teria fim. Tudo era tão distante de tudo que até as férias, acabadas no outro dia, me pareciam já um remotíssimo adeus por correr das memórias.

A professora continuava a comandar a tropa. Ditava umas coisas, apontava outras no quadro. Para umas coisas e para todas usava o mesmo tom de voz excessivamente imperativo. Falava áspera como as senhoras da Secretaria ou como a velha catequista que nos treinava para a Comunhão Solene. Depois das saudades dos antigos colegas, vieram as saudades do professor de Língua Portuguesa do ano anterior, que era jovem e se chamava Miguel, que nos lia histórias incríveis de todas as épocas e de todas as civilizações da Terra. Nas suas aulas ninguém ousava portar-se mal, porque cada minuto perdido era verdadeiramente um minuto a menos de magia. Chegávamos a esquecer-nos do tempo! O toque de saída era muitas vezes acompanhado de expressões de pesar, como quando somos forçados a interromper um sonho magnífico.

Mas isso fora antes. Agora tínhamos aquela senhora que berrava a cada cinco minutos; que se esganiçava para exigir que levantássemos a mão se pretendíamos falar; que aplicava palmadas violentas no tampo da sua mesa se lhe cortávamos o fio à meada. Foi então, terminadas todas as explicações práticas, que pretendeu conhecer-nos um pouco melhor. Perguntou o que gostávamos de fazer nos tempos livres. E o Alberto Carlos, que era o número um, explicou com o seu timbre grave o que fazia nos seus tempos livres: ajudar os pais com o gado. Houve uma risada geral. Também me ri. A professora ainda esboçou o ar de quem ia fazer o mesmo. Mas cortou a galhofa no seu jeito militar. Depois do Alberto Carlos seguiu-se a Anabela, depois a Ana Isabel e o César, a Daniela e por aí diante até chegar a minha vez.

Quanto a mim, francamente não sei o que me deu. Nunca o pude apurar. Eu, que adorava jogar à bola, meter-me em bulhas, trepar aos bardos mais altos da vinha do meu avô, que passava horas a jogar aos cowboys e ao esconde-esconde, que me pelava por grandes passeios de bicicleta e por mergulhar no riacho, alto da pontezinha romana ao lado da antiga leprosaria, disse que gostava de fazer versos.

Foi uma assuada trocista, miúdos da frente a fingir que tinham de segurar na barriga, meninas com a tacha arreganhada atrás, pateada à direita e à esquerda, piadas sussurradas de todas as bandas, “Copinho de leite”, “Coninhas”, “Grande maricas”…

Com que então eu gostava de fazer versos

Bem podia ter dito que ajudava o meu pai na tecelagem, trabalhando como gente crescida à frente de máquinas como o caneleiro de dez fusos. Podia ter confessado que gostava de desenhar e de erguer miniaturas de casas e igrejas com cartão (demonstração de talento arquitetural que se me apagou lamentavelmente com a idade). Podia até, para angariar rapidamente camaradagem, explicar que gostava de namorar com meninas bonitas de olhos azuis. Mas não. Fiz saber que gostava de fazer versos

Entretanto, ouviu-se um grande som de vergasta. Com uma espécie de antena de rádio toda estendida, em riste, mais assustadora ainda, a Diretora de Turma avançou uns passos, fê-la embater com estrondo no caderno diário de um colega lá da frente. Todas as cadeiras se colaram ao chão. Os olhos da coruja varreram então por uns segundos a sala à cata de prevaricadores. Mas a vergasta podia muito. Depois o aquilino nariz respirou melhor e a própria voz, mais doce, mais falsete, disse:

— Muito bem, João Ricardo!

E repetiu o “Muito bem” tão enfática quanto desnecessariamente, pois a minha reputação estava arruinada. Acrescentou até, com certa nostalgia, que havia ficado muito surpreendida com a minha resposta, que nunca tal ouvira em trinta anos de serviço. Por fim, quase amistosa, quase amiga, fez saber que eu só podia ser um menino especial. E o seu sorriso desabituado fez-se notar ao de leve nos lábios cheios de pregas e batom vermelho.

Guardei sempre esta memória como talvez se guardaram numa caixa de sapatos calendários de antigos jogadores do Benfica, cromos do Dartacão ou um maço de cartas de amor. Puro instinto afetivo.

Claro que sobrevivi. Primeiro por causa da fama de grande batoteiro nos jogos de cartas. Segundo porque era um centrocampista exímio. Depois porque a minha costela donjuanesca vinha já dando frutos notáveis por esses dias. Mas os olhos vorazes e o nariz adunco exigiam-me também provas.

Li nessa altura muito almanaque de igreja, muita quadra popular, muito António Aleixo. Aprendi com efeito a rimar, e a rimar com esmero, com sofisticação técnica. E não apenas a rimar, mas também a metrificar os meus versos, a enfiar neles toda a porção de filosofia e de engate que me assistia aos doze anos.

Foi o tempo em que me fiz poeta. E como todas as grandes decisões, tenho de o confessar por respeito à verdade, apenas por uma sucessão de improváveis peripécias, como as que descrevi.

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Isto é poesia

André Kertész(Mauna Kea, Kmuela (Honolu), 1974)
Fotografia de André Kertész

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Quantas vezes me apeteceu escrever um poema e não pude! Quantas vezes a rotina da profissão se entrepôs entre mim e o silêncio, entre mim e o caderno! Quantas vezes algo semelhante a uma fome veio roer-me por dentro, angustiar-me, espicaçar-me e (sem que o soubesse porquê, sem que pudesse saciá-la) obcecar-me como a voz de um chamamento. É dessa fome que eu falo, da poesia, do prazer daqueles instantes de invenção no tampo da secretária, do rumorejar da caneta de aparo deslizando sobre a folha. Enternecimento este comum aos que escrevem, aos poetas sobretudo…

A poesia imita de muito perto os batimentos e o ritmo da própria vida. Compreendê-la significa em grande medida compreender a natureza do homem, o mistério do mundo, a ontologia das coisas. Alguém há muito a cotejou com um diamante, um que fosse apenas reconhecível pela sensibilidade e pelo talento dos que por hábito delapidam diamantes iguais.

Por outro lado, a poesia é árdua, muito pouco definível, complexa de mais para que possa ser um objeto ensinável ou explicável, ou consumível! Não só mas também por isso verificamos a fraca relevância do texto poético no mercado editorial, onde os grandes romances, ensaios e reportagens (para não falar de outros) passam das montras às mãos do público leitor como navios descomunais, num oceano onde somente um ou outro livro de poesia incontornável granjeia medir forças.

Também não é isso o mais importante. Quem se devota a esta arte, quem a escreve, quem a lê, quem a edita, apega-se menos ao corrupio dos mercados do que à ebulição surpreendente e única e avassaladora das palavras. A poesia é “isto”, o requinte de um dizer na corda bamba, para alguns não-entendimento, para outros a linguagem (ou a língua) que melhor exprime as pulsões do homem, a que oferece o campo mais vasto de visão e descoberta.

Sejam bem-vindos os que não desistiram, os que não desistem, de amar a soberana disciplina do pouco, da palavra olhada sem rodeios, da mensagem legível na mais pura nudez do mecanismo triangular da boca, da cabeça e do coração.

(Prefácio meu à antologia Isto é Poesia, Editora Labirinto, 2004)

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