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Em casa havia pouquíssimos livros. De modo que a chegada misteriosa desses dois fez da minha vida um milagre de conversão, ela que se destinava aos fornos de uma padaria: refiro-me ao primeiro tomo da História Universal de H. G. Wells (edição Livros do Brasil) e aos Contos da Montanha de Miguel Torga (uma velhíssima edição de autor). Julgo que vieram ao engano, trazidos por um primo distraído, para serem reduzidos a tiras, que era o nosso modo de fingir as notas verdadeiras. Vinham ambos muitos amachucados e riscados, perfeitos para alguém como eu, que nesses dias detestava coisas muito direitas.
Devo explicar que quando era mais novo tudo me parecia mais simples, mais visceral, mais antagónico, e belo também. Não estava acostumado a luxos. Uma lupa ou um jogo de monopólio eram para mim objetos distantes que só os meninos com sorte possuíam. Sorte era a palavra que me vinha à cabeça em vez de dinheiro, porque aos cinco ou seis anos já eu entendia as nuances discriminatórias da sociedade. Os objetos, quando me chegavam às mãos, quando os manuseava, quando os fazia funcionar por ação dos meus próprios dedos, ganhavam foro de coisas míticas. E eles chegavam, porque afinal também eu tinha alguma sorte: foi assim que me apareceram um porta-chaves em formato de pequeno revólver (tal e qual o revólver do cowboy John Wayne – saberá Deus como idolatrava John Wayne); foi assim que me apareceram, entre outros, um realejo todo cromado, um jogo eletrónico da Pantera Cor-de-Rosa, uma pista de comboio.
Mas os livros tardavam. O primeiro que comprei adquiri-o numa feirinha de escola aos onze anos: foi ele Histórias do Bichinho Qualquer de Sílvia Montarroyos. Também esse o recordo com imensa saudade, em particular com a história da Bola de Sabão que adormecera num mundo limpo e lírico de campos e rios cantantes e acordara para um mundo de fábricas e poluição. Não menos me comoveu o susto do Sapo Ti, que escutara em certo jardim a conversa terrível sobre um sapoti apetitoso e que decidira fugir para escapar às facas de cozinha … Coisas da língua, coisas da vida que eu amava já com escrúpulos de intelectual.
Volto à História Universal de H. G. Wells. Sempre nutri um fascínio especial pela história, induzido pelas lendas que me narrava o meu pai à noite, junto da lareira, histórias reais e fantasiadas, como as façanhas de Viriato contra os romanos ou a Tomada de Lisboa aos mouros por Afonso Henriques. Mas Wells ia muito mais longe, levava-me ao começo do mundo, ao Big Bang, depois aos dinossauros, depois aos primórdios da civilização. A sua História vinha acompanhada de legendas, de ilustrações que me espantavam, sobretudo no tocante às criaturas primitivas, cujas escamas, chifres e mandíbulas monstruosos me faziam sentir tão mais confortável neste tempo de quietas galinhas e gatos preguiçosos.
O livro vinha escrito numa linguagem escorreita, apenas negligenciada por grossas manchas de humidade que o anterior dono não fora capaz de precaver. Um crime. E o criminoso deixara também surripiar umas quantas páginas no final e a capa. Teria dado já então todos os meus porta-chaves em troca de um exemplar integral daquele cartapácio repleto de sagacidade e amistoso arianocentrismo. Creio que o volume terminava algures no período de formação do império de Alexandre Magno, depois de novelisticamente nos deixar a par de todas as intrigas da corte de Filipe, seu pai.
Com os Contos da Montanha de Miguel Torga sucedeu algo parecido. Li-lhes com paixão a linguagem incontida, onde o realismo cru (com inúmeras agulhadas do calão) e as boas intrigas se combinavam rudemente. O volume não vinha em melhor estado do que outro, muito semeado de notas a lápis sublinhando passagens obscuras de mulheres adúlteras, homens castrados, ladrõezecos de sacristia e beatas hipócritas. Mesmo sem compreender completamente aquela escrita, achava-a verdadeira, naquilo que a verdade pode em literatura significar autenticidade e beleza.
Li-o umas três vezes de fio a pavio, admirando o seu exotismo montanhês, absorvendo as suas expressões regionalistas, rindo nos mesmos sítios onde a parvoíce das personagens ou a graça do narrador galgavam os portões do sono e aqueciam (até a fazer cheirar a queimado) a lâmpada do candeeiro.
Dessa sucessão terrível de peripécias ficaram-me em particular os contos «A Ressurreição» e «Um roubo». Quando anos mais tarde pude lecionar nas minhas aulas o último destes dois, foi com choque que me apercebi de como Torga já não criava leitores entusiastas.
Os anos, a informática, a pós-modernidade reduziram Faustino e a sua tentativa gorada (“numa noite medonha, cheia de água”) de assaltar a capela da Senhora da Saúde em qualquer coisa semelhante a uma pilha de palavras incompreensível e enfadonhas…
Julgo que há uma idade em que nos podemos tornar tudo.
Nessa época em que os livros começavam finalmente a circular cá por casa, desisti dos velhos arroubos panificadores para me concentrar no poder (incrivelmente abstrato) das palavras. Quis ser professor de História, depois cientista (antropólogo, talvez), depois jornalista, depois professor de Língua Portuguesa, enfim escritor. Já aos catorze anos, quando acabei «Madalena», o meu primeiro conto (que haveria de queimar com muito outro entulho pessoal no fim da licenciatura), sabia que as grandes escolhas se devem a acasos tão ridículos como o dar de caras com dois livros esfarrapados e cheios de sabedoria.
Nessa altura não tinha computador nem sequer a máquina de escrever – que viria anos depois –, apenas sebentas de papel reciclado e canetas da Bic. E também o resto que já não sei, nem quero explicar…