Tu

Fotografia de Mario Raia

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Duas coisas distinguem a vida de um homem da vida de outro homem: a capacidade de suportar a dor e a capacidade de produzir prazer. Uma terceira coisa o distingue depois da morte: a exemplaridade da sua memória. Tenho, a esse respeito, tido grandes mestres. Mas tu foste o maior!

Porque nesta época em que tudo se confunde, ruído e realidade, poder e importância, espetáculo e reconhecimento, ouro e pechisbeque, nesta época em que se não distingue autenticidade e clichés, nobreza e velhacaria, nesta época vil e mecânica, nesta época automática e plástica, insossa e cega, nesta época de famigerados da fama, ó Régio!, de louvadores do fácil, nesta época de nadadores em mares de contentamento, ó grande Camões!, nesta época provavelmente não menos nem mais facínora e execrável do que todas as outras, tu passeias-te no meu pensamento muitas vezes, nítido ainda, inteiro como dantes, muitas vezes, subindo com as neblinas a várzea silenciosa, lento, firme, feliz, com ou sem a espingarda ao ombro, com ou sem coelhos à ilharga, feliz, firme, lento, para me ensinar.

Um homem não vale pelo que tem, nem sequer pelo que é. Mas pelo que fará ter aos outros, pelo que for capaz de deixar de seu, não a uma, mas a dez gerações!

E como eu te escutava, meu velho amado! Os nossos colóquios eram na cozinha, junto à lareira grande de pedra, onde o fumeiro e os grandes potes de ferro enegreciam. Onde a ciência intemporal dos teus provérbios ardia. Onde me contavas as tuas histórias de licantropos, homens voadores, sereias e mouras encantadas. E como eu te escutava, meu velho amado! Como ardem ainda as manhãs nevoentas, em que desjejuávamos os dois, rapando com um pedaço de pão o prato dos ovos estrelados! Como recordo esses ovos de gema sumarenta, esse pão de sêmola, junto dessa lareira grande nessa cozinha escura e fumada! Como estremeço ainda à tua voz, às tuas palavras despidas de vaidade.

Quando chegares à minha idade, meu filho, vais perceber que o céu é para quem o ganha e este mundo para quem mais apanha… Bem prega Frei Tomás, faz como ele diz e não como ele faz! É tão certo isto, como dois e dois serem quatro, meu filho!…

E tu limpavas os beiços a um pedaço de pão. Limpavas o catarro com um gole de vinho. Como eu amava aquela história do homem que queria voar, das imprudentes asas de cera, do sol impiedoso, da queda no oceano. Tudo narrado ao pormenor, sem pressa, com a paixão de quem semeia um tempo por vir… Deves ter-me contado essa história umas vinte mil vezes. Na cama, onde te admirava as ceroulas de flanela e a cicatriz no abdómen, no quintal, enquanto semeavas favas e ervilhas; no lagar, onde depois das vindimas depositavas caruma e palha seca, onde nasciam às dezenas, pintos magnificamente enxutos e amarelos. Porque me contavas as histórias sem querer ensinar.

Porque os vícios se aprendem depressa e os sublimes prazeres devagar. É preciso amar a vida para se compreender a vida, meu filho!

Julgo que uma ou outra vez, empolgado pelas lições, quis fumar também. O teu maço de doze Kentucky era uma tentação. Mas tu somavas em voz alta os cigarros que ficavam a guardar-te a casa enquanto ias dormir a sesta. Limitava-me a colocá-los na boca, a imitar-te de longe, a fingir-me caçador, lento, firme, feliz.

Porque o exemplo e a memória que nos fica de um homem é a terceira e mais importante coisa que distingue um homem de outro homem, logo depois da sua capacidade de suportar a dor e da qualidade dos seus prazeres.

Julgo que arrostaste com estoicismo o cancro. Eras um velho já tão velho que o meu amor por ti não cessava de crescer. E, no entanto, não compreendi jamais a tua derradeira cama, os cigarros abandonados, a espingarda com teias de aranha, os ervilhais deixados ao deus-dará, os ovos por recolher e pintos nascituros nos remansos da cave, a lareira sem lume, as histórias por contar, as manhãs sem ti…

Penso em ti muitas vezes, avô. Porque nesta época em que tudo se parece estranho e estéril, feio e enfermo, esquálido e esquecido, doloroso e dorido, demasiado e diminuído, sinto a falta do maravilhamento calado dos teus olhos, do catarro sombrio que enchia a alvenaria da casa, do desembaraço e desembaciamento e sonoridade limpa de cada um dos teus gestos, da luz das tuas palavras, da certeza que tinhas então sobre mim.

Um homem vale pelo que tem cá dentro, meu filho! Lembra-te disso! Um homem vale pelo tamanho do seu coração! Homens graúdos têm o coração do tamanho de uma melancia, ouviste?

E eu a querer um coração grande, com medo de que pesasse tanto que me afundasse. E eu a imitar-te em tudo, meu velho. E eu a não perceber aquela gente que me dizia que tinhas uma doença, que tinhas morrido, que tinhas partido, que não virias contar-me mais histórias de lobisomens e ícaros, sereias e mouras, anões, sapateiros e hortelões, raposas matreiras e criados do diabo…

Não te perdoei a primeira, nem todas as outras manhãs em que não regressaste das neblinas sobre a várzea silenciosa. Julgo que uma ou outra vez, esquecido das lições, quis fumar também. O maço em cima da escrivaninha. O isqueiro em cima do maço. Os dedos em cima do isqueiro. Penso em ti muitas vezes, avô. Em ti, corpo encarquilhado, cansado de lutar, escavado pelo mal. Porque uma terceira coisa distingue um homem depois da morte: a exemplaridade da sua memória. Em ti, que um dia não regressaste. Porque duas coisas distinguem a vida de um homem da vida de outro homem, não é assim? Em ti. Julgo que uma ou outra vez quis fumar também. A capacidade de suportar a dor e a capacidade de produzir prazer, não é verdade? Como te escutava, meu velho amado!

Não deixei que o vício me levasse a palma, avô. Porque os vícios se aprendem depressa e os sublimes prazeres devagar. Não é assim?

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Da saudade que nós sentimos das pessoas que nos morrem ainda vivas

Drew Hopper
Fotografia de Drew Hopper

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Há dores que doem mais do que as outras dores. É um absurdo. Dói-nos tudo quando dói assim. Dói-nos o corpo ao alto, os ossos, o intervalo entre os ossos, os olhos, dentro dos olhos, a boca, a garganta, os pulmões inchando e desinchando, o estômago, os rins, as costas, as mãos, os cabelos até à última ponta do último cabelo. Dói-nos tudo. A mobília, o tapete, as sombras, o silêncio. Tudo. E quando mexemos um músculo o universo inteiro estremece. E quando uma corda vocal quer vibrar todo o espaço trepida com o catarro. E quando as palavras saltam, tropeçando, cegas, às apalpadelas, quando riscam com o seu fósforo efémero a parede gelada do tempo, é ainda um resto de dor que as torna mais belas e terríveis. Porque quando dói tudo dói tudo. É um absurdo. Um cataclismo. Um colapsar de sonhos e memórias e esperanças e alegrias subtis, risos, confidências, carícias, hálitos, secreções, murmúrios, quenturas, prazer… É um absurdo. Porque erguer gigantes não devia ser para tombá-los, vergá-los, humilhá-los, enlameá-los, arrastá-los a ferros. Porque, no interior de um pequeno fole de trezentos gramas, sístole-diástole, sístole-diástole, sístole-diástole, é possível caber um gigante. Um gigante com um milhão de fotogramas, um fantasma, um holograma, um amor!

Porra, um amor!

De maneira que hoje foi mais um dia. Daqueles que precisam de nos arrancar à cova, com esforço, virilmente, sob ameaça de estalo. Meia hora no duche. A água a escorrer na pele como em pedra. Não me lembro se estava quente ou fria. Dá para acreditar? Não me lembro se gemi com frio ou sentindo uma queimadura. Gestos sonâmbulos, mecanizados, entrando e saindo de mim como gente de um motel. Não me lembro do que engoli. Decerto os cereais. Provavelmente um iogurte. Porventura uma peça de fruta. Talvez pão com geleia. Não sei se meio pão com queijo. Possivelmente nada. Não me apetece comer. Ultimamente não sinto fome. O carro levou-me sem um protesto para o trabalho. Não me lembro de o conduzir. Julgo que se conduziu sozinho, como os cavalos nos campos de batalha. Devo ter bebido um café. Ou dois. Teriam sido três ou quatro. Mais. O café é bom, aquece, traz-me de volta à superfície. Chego a reconhecer as pessoas. Digo-lhes a cada qual, à vez, sem pensar muito

Bom dia, como está?

O pior é acordar. As manhãs são bolas de sabão inquebráveis. Escuto-as por dentro (escuto as ervas, o cheiro das madressilvas, o olhar acutilante das gralhas no bosquezito ao lado do apartamento, o frio do riacho, as neblinas erguendo-se até ao cocuruto dos choupos. Escuto crianças. O riso maravilhoso que ecoa dos seus passos. Escuto o sol. Escuto o abrir das janelas, o perfume das roupas que se estendem nas varandas. Escuto o sorriso desdentado das velhas, tricotando e rezando em simultâneo. O frenesim dos pequenos mercados de esquina. As caixas de pão, o cheiro do pão, a farinha saltando sobre o papel pardo das contas de somar). Escuto-as e quando me sacodem, me dizem

Já tocou, professor!

Eu sinto a mesma pesada maquinaria, ferrugenta maquinaria, terrível maquinaria, desengonçada maquinaria, a mover-se, caminhar para uma porta, desaparecer por algum lado, sumir-se nalgum corredor, entrar nalguma conjuntura de paredes. De maneira que respondo

Obrigado! Não me tinha dado conta!

As manhãs são sempre longas, distantes, capazes de vencer-me. Um corpo derrotado é um sempre um corpo. Um touro caído. Decaído. Um corpo.

Obrigado! Tenho aula, sim!

E com o copo de café na mão sinto falta de um café para acordar. De maneira que perco a conta aos cafés que bebo. O café é bom, afugenta as cinzas, traz-me de volta à bela chama que ainda há instantes sentia viva no lugar do coração. Chego a reconhecer as pessoas. Digo-lhes

Está uma bela manhã, não está?

E as palavras recomeçam. Os alunos apontam, seguem o raciocínio, não fazem perguntas, acreditam na versão limpa e oblíqua das páginas do manual. As palavras saracoteiam-se com um vago esplendor de ouro falso. O conhecimento. Tão grato, o saber. Tão importante senti-lo fluir na sala, como o balbuciar de um vento moderado e casto.

Sim, meus caros. O conhecimento é sagrado. Puro como uma Vestal.

De maneira que tenho andado meio esquecido. Quase me esqueci de ti, imagina? Quase me esqueci que o sofrimento é uma ampulheta, engolindo tudo de um lado e depois do outro lado, à vez, cambalhota para aqui, cambalhota para acolá, à vez, acumulando tudo, aniquilando tudo…

Não há remédio para isto. Guillén escreveu uma vez sobre a saudade que sentimos das pessoas que nos morrem ainda vivas. Achei belo. Suponho que o acharás também. Belo. E tão triste. Tão triste.

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Uma promessa que te faço

Fotografia de George Vintila

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Todas as pessoas prestam. Mais que não seja para nos ensinarem a preciosa lição de que não podemos confiar nelas.

Que saudades, avô!

Massajo a cabeça com o champô, sinto o frio rodear-me o corpo por todos os lados, a chuva a cair do outro lado da parede, o sono a puxar-me de longe (da infância), os minutos a passar lentos, velocíssimos, o jato de água quente deslizar de novo, por mim abaixo.

As pessoas são como as árvores!

Como as árvores, avô?

Como as árvores. Uma vezes são da terra, outras vezes são do céu, outras vezes são de debaixo, de muito debaixo, do último pedaço de raiz, tão escondidas como o Diabo.

Enxaguo-me. Já tão exausto, como se estivesse a preparar-me para a cama. Já tão distante, como se pertencesse a outro tempo. O felpo a lembrar-me a ferida na orelha, o desalento da manhã ocupadíssima, a viagem, o mau tempo, o pequeno-almoço devorado a correr, os sons da campainha, os cheiros desagradáveis, o tom de voz crispado, os pixéis fundidos dos computadores, as faltas, as falhas, as frustrações.

Um dia hás de perceber tudo isto, meu filho!

O quê, avô? O que hei de eu perceber? Que as pessoas gravitam em torno de nós como corpos aleatórios, desejados, indesejados, esperançosos, malditos? Que as melhores pessoas nos morrem e são como os primeiros cadernos de escola, onde escrevemos as mais puras manhãs? Que o destino é um matadouro de sonhos? Que nos magoa horrivelmente amar e ser amado? Que amar é só o primeiro sinal de decadência? Que um animal nos mora na alma e nos morará sempre, igual aos primeiros vírus?

Porque tu és reguila! Tu vais desenrascar-te bem, não vais?

E de um momento para o outro, apoiando-te na bengala, sem olhar para trás, sem te despedir, caminhando curvado (sempre que penso em ti, sempre que me recordo, mais curvado me pareces), caminhando paulatino, caminhando na mesma direção, caminhando para longe, foste sem voltar.

Tu és reguila, hem? Olho aberto, ouviste?

E só me ocorre nevoeiro. O nevoeiro que agora me tapa a visão, debaixo de bátegas inclementes. O para-brisas dançando como um louco, o ar condicionado no máximo, os intermitentes ligados. O nevoeiro que me não deixa olhar mais na tua direção, tu mancando, apoiado na bengala, deixando-me para trás, sem me ouvir, rouco, cansado de gritar por ti, com as lágrimas e o ranho a impedir-me de respirar, incapaz de compreender.

Porque não se compreende que um avô deixe uma criança assim…

Todas as pessoas valem a pena. Mesmo aquelas que não valem nada. Aprenderás como…

E a viagem alonga-se, eterniza-se, deixa-me ainda mais longe de quem sou, como se de repente tivesse principiado a rodar noutra estrada, a galgar anos em lugar de asfalto, a procurar um ser de outrora como se procura um objeto perdido, a descobrir com olhos novos verdades antigas, a alcançar finalmente o significado das palavras que ficaram gatafunhadas em papel pardo, junto à lareira, com um velho lápis de carpinteiro aguçado pela tua navalha.

Que saudades, avô!

E é quando dou por mim junto do portão. A confusão ímpia das segundas-feiras. O motorzinho escancarando-lhe a boca, introduzindo-me na vida, engolindo. Que saudades, avó! Dessas manhãs junto à lareira, das tuas mãos calosas, quentes, magoadas.

Aprende a conhecer as pessoas, meu filho! Tu és reguila! Tu vais safar-te, não vais?

Primo um botão. O carro fica para trás. O ar violento da cidade. Sim, avô! Prometo que sim! Verás que sim! Juro que sim! Porque nunca se deixa uma criança para trás, dobrada num pranto, ferindo-se sem cura! Nunca se deve ser surdo e insensível. E um velho morrendo-nos, curvado numa bengala, enfiando-se no nevoeiro, é uma questão de honra, de orgulho, de sangue!

Prometo que sim! Verás que sim! Juro que sim, avô!

Saberei desenrascar-me, conhecer as pessoas, escrever melhores palavras, ser alguém. Todas as pessoas prestam. Mais que não seja para nos ensinarem a preciosa lição de que não podemos confiar nelas. E há, algumas, pouca, escassíssimas, que nos fazem bem, que nos saram das hemorragias.

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Que bem que se está aqui!

moses stell
Fotografia de Moses Stell

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As manhãs são prodigiosas. As manhãs de sábado e de domingo. As manhãs das férias e dos feriados, dos dias de café silencioso e olhos fechados contra o sol. As manhãs de música barroco e de janelas abertas. As manhãs de caderno em cima da mesa e caneta de aparo. As manhãs de depois de termos feito amor, quando te despedes com um beijo antes da piscina e do ginásio ‒ tu a tornear o corpo, eu a cismar em trapézios de palavras. As manhãs de quando os vizinhos mais novos não estão. De quando a rua acorda como as ruas da infância, devagar, sonolentas, sem relógio. As manhãs de quando os miúdos das moto 4 se extinguiram no horizonte, por causa da prova nos matos alentejanos. As manhãs de quando os outros miúdos, os das noitadas, das passas, das bebedeiras, das curtes, do pandemónio de copos plásticos partidos e latas amolgadas, se encontram ainda na ressaca das respetivas camas.

‒ Que bem que se está aqui!

E é um bem-estar que me ilumina as coisas à volta. Que me faz olhar para a mobília e para o interior de um livro com o mesmo desvelo com que observo à varanda o senhor Afrânio, o septuagenário mais educado e galante que conheci.

‒ Bom dia, senhor Afrânio!

‒ Muitos bons dias, meu caro Lopes!

Um bem-estar que tem a sua própria química molecular, as suas leis físicas inconfundíveis. O ar respira-se melhor, mais leve, menos sujo e rarefeito, como se os pulmões se dessem conta do milagre que os dilata. A fruta e as velas de cheiro açucarando as paredes. Os detergentes e o teu perfume não mais agradáveis do que o fiozinho de cigarro subindo da professora Clotilde, antiga mestra do Magistério Público, que à sacada, à puridade, vem cuidar dos seus jacintos e gerânios e begónias e agapantos, falando-lhes, confidenciando-lhes, namorando-lhes as pétalas.

‒ Que bem que se está aqui!

E ao dar-se conta da minha presença, chávena na mão, olhos semicerrados, ronronando, se assusta em pouco.

‒ Bom dia, senhora professora!

‒ Como está, João?

Gosto de colher estas sementes. De ressuscitar sem pressa. De escrever como outrora, repleto de esperança e de inconsequência, para ninguém e, quem sabe, para quem me entenda. Gosto de rasurar as frases, de erguer-lhes balões corretivos, glosas e anotações, segundas linhas, sublinhados e círculos, setas e chavetas, novas rasuras, riscos e desabafos de frustração. Gosto de encher a casa com a máquina de escrever, com as suítes para violoncelo de Bach, com os meus pensamentos, com a minha loucura, com o meu coração.

‒ Que bem que se está aqui!

E é quando o voo é mais longo e mais profundo. Quase como se me esquecesse da minha pele e dos meus ossos e dos meus males de alma e dos azedumes e das vezes em que a vida me pareceu uma infinita tortura. O martelar de cada tecla, a subtil variação das notas musicais, o reflexo de cada raio de luz no vidro das janelas e na madeira e na carne macia de cada fruto, tudo, tudo tão sincrético (para me servir de Lévi-Strauss) e de outra espécie de tempo, como se o contasse agora por séculos em vez de segundos.

‒ És um tonto, meu amor!

‒ Eu sei… Eu sei!…

E as manhãs adquirem a expressão de uma eternidade de que jamais saberei dar conta. Porque o amor que nelas desabrocha, como o das flores da professora Clotilde, é um eflúvio transcendente, um caudal de espírito capaz de adocicar os solavancos metálicos do elevador e de tornar risível a discussão na rua sobre futebol. Porque Bach e o café e o caderno cheio de rabiscos são capazes de me bem-dispor, a ponto de me esquecer das aulas e das agendas e dos recados mais ínfimos… Como se a vida pudesse seguir sem eles… Como se eu pudesse viver a vida sem a vida dos outros, ombros direitos e o rosto erguido, concentrado somente no discurso puro do meu espaço…

‒ Que bem que se está aqui!

Confesso que são as melhores manhãs. Quase inconfessáveis. Quase intraduzíveis. Quase de um outro eu. Como se de um outro eu que visitasse de vez em quando, como quando se visita um outro eu no álbum de fotografias… Falo destas manhãs de sábado e de domingo, de férias e feriados, de café silencioso e olhos fechados contra o sol. E tu vens, muito devagar, sem um ruído, tão adolescente como quanto te conheci, colocar-te atrás de mim, pondo-me as mãos nos olhos, invadindo-me com o teu aroma, preenchendo-me com as tuas formas, calando com as tuas poucas as minhas palavras prolixas.

‒ És um tonto, meu amor!

E eu sei que sim. E eu sei que sim. E nada é, juro-to, tão belo, tão magnífico, tão importante como essa última sintaxe, esse modo de findar o trabalho, retirar a folha do cilindro, cheirar contigo a tinta, ler a duas vozes, sorrir, adormecer no aconchego do teu corpo, sem pressa, como se o tempo o contasse agora por séculos em vez de segundos.

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Crónica das palavras que nos (não) farão falta

Ziga Gricnik
Fotografia de Ziga Gricnik

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Chegará uma altura em que preferiremos não ter proferido uma única palavra, meu amor. Será o silêncio a dizer por nós o que as palavras não podem. Porque as palavras, como os aleijões, como os paralíticos, como os corpos encarquilhados pelo reumatismo, não conseguirão dar mais um passo. Limitar-se-ão a ter querido. A esboçar um rumor. A pingar um sorriso.

Tu sabes como o receio. Como tenho pavor desse silêncio. Dessa língua envelhecida, atrofiada, incapaz de um milagre. Dessa desabafo desamparado.

‒ Sabes, hoje sinto-me tão triste…

E haverá um encolher de ombros. Continuarás a preparar as tuas aulas com os óculos sepultados no fundo do nariz. Replicar-me-ás com blandícia. Um gesto tão inútil quanto as flores de plástico numa jarra da cozinha.

‒ Claro que sim, meu anjo…

Terei os olhos tresmalhados na varanda, pela rua, de encontro aos prédios grisalhos, sem poiso certo. Olhos trôpegos, sujos, vencidos pelo meu próprio tempo.

‒ É como se pudesse morrer a qualquer instante…

E tu, teclando com dificuldade, esforçando-se por conjugar parágrafos, imagens, formas, tamanhos e tipos de letra, com as lentes trespassadas pelos pixéis agressivos, multicolores, desumanizados de um computador de uma outrora novíssima geração, consolar-me-ás como quem consola de raspão um moribundo.

‒ Claro que sim, meu amor…

A língua não é inesgotável. Filões de metáforas, adjetivos, interjeições, belas frases singulares, tudo exaurido até ao amuo. Até ao monossílabo. Até ao grunhido.

‒ Sabes do que tenho saudades?

As ruas serão uma feição estranha. Em vez de miúdos, velhos brincarão em parques solitários até que os venham resgatar à penumbra. No lugar das placas alusivas a monumentos históricos, nascerão da grama dos jardins evocações a grandes escombros removidos. Dispositivos eletrónicos repetirão, dia e noite, olvidados, o som de animais extintos…

‒ Claro que sim, meu querido!

E eu falar-te-ei das palavras. Da saudade das palavras. Do vigor de ter desejado, compreendido, justaposto palavras. Falar-te-ei da palavra enxuto. Da palavra aconchego. Da palavra apaziguado. Da palavra pernoitar. Da palavra sopro. Da palavra dúctil.

‒ Acho que me tornei num fantoche!

E tu, com a mesma expressão, os mesmos lábios (agora mais engelhados, distraídos, dormentes), a mesma placidez, suspirarás, como quando o suspiro é uma evolação, uma faúlha, uma despedida.

‒ Claro que sim, meu mais que tudo!

As ruas já não serão paredes, becos, muros, cercas, mas dormitórios verticais. Criaturas voadoras robóticas, pterodáctilos ultramodernos, trar-nos-ão a ração alimentar. Silvos metálicos atravessarão as paredes, como o faz agora a euforia dos pássaros…

‒ O mundo já não é para nós…

E tu, mais feliz agora, aliviada, com a expressão de quem acoita com estoicismo uma hérnia, de quem sabe ter valido a pena, de quem desliga a máquina, a luz o trabalho, responder-me-ás.

‒ Claro que sim, meu amado!

E daremos um beijo. Será como um encosto de pele. Pele ressequida e fria. Pedirás que use o comando para preparar a mesa de jantar. Um resto de nostalgia circulará pelo cubo da casa. Serão praticamente sílabas, moléculas prosódicas, vazio. Uma solidão engessada e incurável juntar-nos-á à mesma comida insossa. Nada haverá a dizer. As palavras estarão gastas. Tão estafadas como os nossos ossos.

‒ Nunca deveríamos ter chegado a velhos…

Saberei que me escutas. Que me reconheces. Que a mesma decrepitude nos lavou com cinzas o rosto, os braços, o tronco, o sexo, as pernas. Que o amor pode restar num miligrama de coração. Que terá valido a pena.

‒ Claro que sim, bebé!

E dormiremos juntos. Agarrados um ao outro. Como náufragos à sua tábua bendita. Sem uma palavra mais. Como se o silêncio pudesse dizer por nós o que as palavras não podem. Como se a noite não fosse tão longa. Tão assustadora. Tão rente a um e a outro.

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O Professor Arcílio

Rapahael Guarino
Fotografia de Rapahael Guarino

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É difícil recompor em palavras os tiques do professor Arcílio Pinto. Diria que o tornou famoso o costume de bater com as costas da mão direita na boca e a ir empurrando ao nariz e pela testa fora até à sonora fungadela final, com que se despedia do espasmo e se concentrava de novo em nós, caloiros estupefactos.

Diria ter-se nele tornado não menos conspícuo o escancarar da boca, quando travava as frases com nomes em P.

– … eis portanto aí, grosso modo, a génese do hodierno pensamento.

Fazia-o numa imitação perfeita do Marlon Brando mafioso.

– … isso, meus caros e minhas caras, é o que se estatuiu chamar de paradoxo!

Com a mesma expressão circunflexada dos bóxeres.

– … em suma, esse o sistema de Parménides…

A tudo sobrepunha-se o arregalar dos olhos.

Arregalava-os muito, num gesto de perplexidade, para dentro dos livros, como se neles tivesse encontrado, de súbito, uma bizarria, um escândalo, uma condenação.

– Nietzsche afirmou-o… Heidegger afirmou-o… Sartre afirmou-o…

Fechava com ímpeto a edição do Para além do bem e do mal. Os olhos exorbitavam-se-lhe uma última vez. Fuzilava a plateia. Nietzsche, Heidegger, Sartre ter-se-iam encolhido connosco, assustados e arrependidos. A voz cavernosa de Arcílio Pinto compensava o gestuário destrambelhado.

Não havia território seguro na sala. Nem muito lá trás, na penumbra do auditório, onde os boémios e repetentes (encolhidos, assustados, arrependidos) se esforçavam por não existir.

– O cavalheiro de barba, na terceira fila a contar do fim, à direita: o que me diz deste problema?

Havia uma infinita peculiaridade nos problemas do professor Arcílio. Lembro-me de uma conferência:

– Imaginem os senhores e as senhoras a seguinte situação: de manhãzinha, quando estão a tomar o pequeno-almoço, dão-se conta que as duas partes da embalagem A Vaca que Ri não coincidem no lugar do logótipo, no código de barras, nas informações da empresa. Os senhores e as senhoras, que nunca haviam reparado nessa minudência, dão-se conta que não conseguem sair de casa nessa manhã sem acertar a informação que ficou nas duas metades da embalagem. E porquê, não me dirão?

O professor Arcílio Pinto batia, então, com as costas da mão direita na boca e empurrava-a, entre fungadelas, até ao cimo da testa. Esperava a resposta. Nós também.

– Porque o sentido estético é latente, emergente, intrínseco à condição humana. Meus caros senhores e minhas caras senhoras, o sentido estético, que em última instância é amoral, concita um princípio de ordenação das coisas…

O cenho abespinhava-se-lhe.

– E eu pergunto se tal princípio não é ele próprio uma moralidade? Mesmo que em potência?

Lá estava o P, a palavra potência, a pausa dramática, a boca escancarada (um escancaramento horrível de trombótico), o raciocínio tortuoso, a expressão snob de académico, a vontade de rir à vez com a vontade de esbofetear.

– Essa moralidade educa a consciência. Um dia em lugar de uma embalagem, temos uma animal abandonado na rua, um mendigo, uma mulher maltratada… E, então, a consciência impede-nos de arredar o pé, de desviar os olhos, de não agir.

Há dias, numa das minhas deslocações profissionais, reencontrei o velho mestre de Introdução à Filosofia do Conhecimento. Tão igual a si mesmo que senti um abalo. Tão igual a si mesmo que senti quase o terror de um déjà vu. Caminhava calmamente pela alameda universitária, com a mesma sacola de couro, a mesma repa desordenada sobre a fronte, a mesma fisionomia de génio doido.

Aposto que não se reformou. Aposto que os caloiros de agora ainda o veem a fungar e a arregalar os olhos. E a trazer à luz do dia filósofos renitentes, autores de afirmações e teses que talvez quisessem desdizer, renegar, guardar no sepulcro do pó.

– A menina de echarpe bordô, na antepenúltima fila: o que nos pode dizer sobre a dúvida hiperbólica de Descartes?

Aposto que o professor Arcílio Pinto massacra, ainda, com Nietzsche, Heidegger e Sartre. E que lá bem no fundo do auditório, numa nesga de sombra, algum boémio treme, ainda, rezando para que não o chamem a depor, a testemunhar a sua insuficiência em silogismos e epistemas, a merecer uma reprovação…

Foi um baque, quase arrisco confessar uma saudade. Os senhores e as senhoras, claro está, entendem. Entenderão.

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Crónica dos nomes próprios

Arzu Bulut
Fotografia de Arzu Bulut

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A infância pertence, também, aos nomes próprios. A minha aquilatou alguns preciosos e inesquecíveis: uma Donzília, um Eleutério, um Zeferino, uma Porcina, dois Franquelins, uma Hermengarda, salvo erro três Casimiros, uma Engrácia e um Barnabé. Não me lembro de outro Barnabé. Lembro-me do meu primo. Quando se irritavam com o meu primo Barnabé chamavam-lhe Barrabás. Entre Barnabé e Barrabás firmou-se uma aliança de acinte, como a que conspurcou para sempre os nomes de Caifás ou de Judas. Ninguém era indiferente a este opróbrio! A professora benzia-se para a cruz empoleirada no alto da parede branca:

– Santo Deus, meu menino! Quem te deu um nomes destes?

A verdade é que ninguém sabia.

– É por causa do meu bisavô!

E a coisa subia pela árvore genealógica, de galho em galho, de padrinho em padrinho, passando dos tios aos avós até aos parentes mais afastados. De maneira que corriam no recreio Firminos e Evaristos, eram cowboys Torquatos e Narcisos, saltavam à corda e jogavam à macaca Esmeraldinas e Leocádias, comiam o mesmo pão com a mesma geleia de marmelo Joaquins e Filomenas, Bernardinos e Purezas.

– Santo Nome de Jesus, onde arranjaram vocês estes nomes?

Da primeira à quarta classe, a chamada no início das aulas foi um festim onomástico. A seguir às Anas Margaridas e às Carolinas vinham o Damião e o Estêvão, o Gualberto e a Henedina, a Isménia e o Ilídio, uma sucessão de Joães (eu, que estive para ser Júlio, incluído), o Lázaro e o Laurindo, a Oscarina e o Simão Pedro, e por aí fora, até à cauda, arrumada de resto à direita e ao canto, com o Severo e a beldade da escola, a Zínia Daniela!

– Minha rica menina, que nome tão esdrúxulo!

Podia juntar a estes o Ascenso e o Antímio, irmãos da Urraca. Mas como emigraram para a Suíça a meio da primária, o paraíso passou-lhes ao lado. Nunca riscaram com um pedaço de telha, ou com uma ponta de giz, nas paredes caiadas, no arco de pedra sobre a porta, no chão, nas casas de banho, as triunfantes palavras «AMO-TE, ZÍNIA!».

– A minha avó também se chamava Zínia.

– Aposto que sim! – ironizava a professora.

Nunca percebi as modas. Subitamente (ou decerto aos poucos, como nas mudanças de estação), as Glórias e as Ermelindas, as Paulinas e as Ludovicas deram lugar às Marlenes, às Sabrinas, às Vanessas, a um pelotão de Cátias, Nídias, Núrias, Urânias. As Marias e Marianas tornaram-se Carlotas, Beatrizes, Violetas, Constanças. Os Zecas e Tós Zés, os Armandos e os Agostinhos passaram a preferir-se Martins e Afonsos, Gonçalos, Tomás, Henriques…

– Que nome tão bonito!

– É não é?

A acompanhar a evolução, os miúdos, que usavam roupa da feira e andavam de cara suja atrás dos grilos, passaram a vestir Gant e Tommy Hilfinger, a responder com má criação e a procurar no tablet informações sobre o trânsito e a bolsa…

– Santo Deus, que criança tão esperta, a sua!

– É não é?

Pelo que começo a sentir uma saudade estúpida da miudagem que transportava não apenas nos genes, mas também no antropónimo a herança dos entes passados. Da miudagem que sabia estancar uma ferida com saliva e urina e não tinha medo de trepar as cerejeiras e se divertia do alto da sua competência de ser feliz. Da miudagem que encolhia os ombros.

– Santo Nome de Jesus, onde arranjaste tu esse nome?

E respondia com simplicidade

– É por causa do meu bisavô.

E ignorava à professora (vim a sabê-lo há pouco mais de meia dúzia de anos, não sem gáudio e pura nostalgia) o nome do meio, que era (não sei se por causa dalguma avó, madrinha, parente próxima, benfeitora passada) sem tirar nem pôr uma pérola: Outubrina!

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