UM AMOR SONÂMBULO

amor, coração, desenho,
Fotografia de Gaelle Marcel

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Para ti, Céu, neste teu aniversário. Busquemos o sorriso, também ele uma forma de amor.

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O rapaz sofria de noctambulismo. Durante a noite, empunhando uma vela, passeava para a frente e para trás pelos corredores da pensão e só ao cabo de algum tempo regressava ao quarto em paz.

É claro que esta história já tem algum tempo. Hoje ninguém passeia pelos corredores das pensões durante a madrugada.

O rapaz procurava o seu amor: ia sem saber que ia, voltava ao ponto de partida sem perceber que partira. Um autómato. Não oferece dúvida que este é o proceder dos que padecem da enfermidade. Nas últimas vezes fazia uma paragem diante a entrada do quarto 107.

Alguém que queria saber mais seguia-o cheio de curiosidade. Quiçá habitasse um quarto lá ao fundo, na ponta oposto do mesmo corredor. Talvez entreabrisse silenciosamente a porta à hora certa (os curiosos estão sempre a par das horas certas) e espreitasse, seguro de poder ver sem ser visto.

O rapaz carregava a candela com a mão direita e com a outra mão escrevia a giz (era, portanto, canhoto) qualquer coisa. Depois prosseguia a sua jornada sonâmbula e não acontecia mais nada. Esta coisa de escrever a giz era recente. Fazia-o com gestos lentos e macios, quase sussurrantes.

De manhã cedo a porta do quarto 107 rangia docemente, deixando sair para a penumbra do espaço comum a boa luz da manhã que nele já se havia instalado. A jovem professora de francês saía para o trabalho, uma rapariga muito bonita, de cabelos loiros encaracolados e olhos safíricos.

Vexadíssima, lia as misteriosas palavras e apagava-as com um lenço, não sem primeiro deitar uma mirada em redor.

Mais uma vez, quem isto observava regozijava-se com o segredo. Devia regozijar-se, porque abdicava do seu próprio sono. Quem trabalha precisa de dormir e nós sabemos que entre a escrita e a limpeza das palavras decorriam horas escassas.

Uma noite o rapaz demorou-se um pouco mais. Escreveu um poema. Era um bom poema, garantiram-nos. A rapariga leu-o na manhãzinha seguinte e hesitou. Vieram outros poemas e outras hesitações. Às tantas a professora passou a usar um lápis e a registar as palavras que lhe dedicavam num caderninho. Estava rendida.

Mas quem seria o poeta. Nos quatro pisos da pensão juntava-se muita gente, jovem, menos jovem, velha. Havia um rapaz bem-apessoado, o do número 114: só se cruzavam ao fim de semana, por trabalharem em diferentes turnos. Ela encarou-o com interesse, mas ele lia as Flores de Baudelaire e nem lhe pôs os olhos em cima.

Como gostaria de conhecer o autor daqueles versos tão belos e tão saturados de ternura!

Alguém conhecia o segredo.

Mas os segredos deixam de ser segredos quando revelados. E nada se sobrepõe ao prazer imenso de o gozar a sós, como fará Deus amiúde lá no Céu, ou onde quer que Ele viva. Além disso, quem pode prever as consequências de uma intromissão (bastante espúria, aliás) na narrativa de terceiros?

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