O VELHO POLÍTICO

Sergei Smirnov
Foto: Sergei Smirnov

 

O velho político estava bastante confiante. Ia defrontar o antigo partido nas eleições do outono e dar uma valente lição aos ex-correligionários, provando ser capaz, sozinho, de derrotar toda uma máquina de angariar votos e de eleger-se à boa maneira antiga: berrando e prometendo, prometendo e berrando. O velho político tinha de si a mais alta estima, ele era uma instituição!

No início do debate, o jornalista moderador, à maneira de um introito, colocou um par de questões a cada candidato. Eram sete ao todo. O velho político terminava a ronda. Tinha bebido. Estava bastante bem-disposto. As faces vermelhuscas não ajudavam à imagem. mas sabia exatamente o que dizer.

– Começo por questioná-lo sobre o leitmotiv da sua candidatura independente: vinte anos ao serviço e agora a decisão de enfrentá-lo. Porque o faz? Não receia que muitos dos seus camaradas vejam nesta sua candidatura um ato de traição?

O velho político tinha resposta para aquilo.

– Oiça. É uma falsa questão. Eu não posso ser mais conotado com o partido a que pertenci. Foram outros tempos! Tenho uma visão nova sobre os mesmos problemas…

– Perdoe a insistência, mas não admite a hipótese de haver alguma contradição em liderar um partido duas décadas, ser eleito sucessivamente nas suas listas e agora refutá-lo liminarmente?

– Nem pouco, nem mais ou menos… Sou um homem com visão, um cidadão livre, com convicções próprias! Esta terra precisa de um pulmão. Temos de a catapultar…

– Terra que liderou durante vinte anos…

– Sim, mas com a minha equipa agora…

– Porque pensa que conseguirá fazer no próximo mandato o que não conseguiu em cinco?

O velho político vermelhava agora ostensivamente, sorrindo com afetação. Havia mais candidatos na sala e não lhes fora dirigida qualquer questão com a mesma veemência. Irritava-o já o tom, os esgares, a insistência do jornalista moderador, para não falar da sua muito provável falta de isenção.

– Oiça! Do que esta terra precisa é de uma de uma liderança forte e experiente. Sou o candidato mais cotado. Tenho experiência e prestígio. Sei bater às portas certas!

Rapidamente o atacaram os adversários. Oportunismo, nepotismo, clientelismo, cizentismo. Acabados em ismo, as palavras soam como chocalhos. O velho político não se livrava do coro crítico que lhas pendurava como vis medalhas ao pescoço. Da plateia às escuras chegavam invisíveis imprecações rudes.

– Corrupto!

O candidato mais à direita soltou a língua.

– O senhor é a pessoa nesta sala menos capaz de entender o futuro e, mormente, de o assegurar. É responsável pelas decisões mais vergonhosas de que há memória na nossa terra, no período democrático… Se houvesse justiça neste país, o senhor estaria preso!

Atenazado pelo rigor, força e juventude dos seus adversários, acossado pelo passado recente a que não eximir-se, vencido pelo torpor do bom alentejano que fizera juntar  à feijoada, o velho político principiou a descambar.

– Esse investimento, a que o senhor chama de «negociata», senhor candidato, é uma mais-valia para esta cidade. Todos, exceto o senhor naturalmente, sabem isso… De resto, o senhor no meu lugar, e conhecendo-o eu como conheço, tinha metido umas boas milenas ao bolso. Mas isso é outra questão…

O jornalista moderador precisou de acalmar os ânimos e de lembrar ao velho político e a todos os senhores candidatos o dever de elevação e de respeito pela democracia.

Mas logo ao primeiro ensejo, o velho político destratou a jovem candidata do partido ecologista, que o inquiria sobre benefícios e benfeitorias alegadamente associadas à sua presidência e a diversas empresas poluidoras.

– Ó senhora candidata, ou menina (talvez seja mais correto tratá-la por menina), suponho que ainda usava cueiros quando eu já governava esta terra. Faça o obséquio de não me vir com pedagogia. Os empresários são, toda a gente sabe isso, a alma de uma região. Não se seja, ou não se faça de pretensiosa, de inocente ou de parva!

Os apupos vieram sob os mais variados registos. Repreendido, admoestado, confrontado com ferocidade por todos os rivais, enxovalhado pela escura assistência, posto perante factos de que se esquecera ou de que não pretendia recordar-se, humilhado pela sua prestação errática diante uma geração diferente daquela que o erguera em braços, o velho político sentia encurralar-se-lhe o raciocínio e roncarem as entranhas. Os gases corriam de víscera em víscera, tomando de assalto o sossego de que tanto necessitava numa hora tão cruel.

Discutidas, arengadas, propostas as melhores, rejeitadas as ideias mais espúrias, chegou-se à fase final do debate.

Quando o candidato do centro-direita, no seu timbre descansado, fazia já o apelo final ao eleitorado, escutou-se um arroto. Foi sonoro e explosivo.

O orador interrompeu-se, surpreendido. Depois, como querendo mascarar o que parecia ser um momento embaraçoso na sala, prosseguiu. Mas teve de parar novamente, quando de novo à sua esquerda, berrando como um sopro de trombone (em escalas diferentes nos diferentes microfones), se escutou indisfarçável, longo e superior o efeito terrível da flatulência.

Os olhares voltaram-se todos na mesma direção. Escarlatíssimo, a espirrar sangue, aceso com um rubi pelos holofotes, o velho político pediu desculpa.

Não houve forma de dominar as gargalhadas, as casquinadas alvares, o apupo de uns e de todos. Nem o caudal de ferozes caricaturas que doravante se publicaram, pintaram e reproduziram em som, a cores e em tarjas insultantes.

Por essa, ou por outras superiores razões, o velho político não foi capaz de reeleger-se.

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