O senhor Nakata

Fotografia de Tatsuo Suzuki
para a Céu

.

Na cidade de Quioto, no antiquíssimo bairro de Higashyama, numa das casas mais humildes e próximas do templo de Kyomizudera, vive o senhor Nakata.

É um artesão completo e legítimo. Os turistas gostariam de o tornar numa atração fotográfica, ao lado das maiko, dos tocadores de biwa e das casas de chá. Mas o senhor Nakata, como manda a boa tradição nipónica, gosta do silêncio e da sombra, prefere o seu trabalho livre de perguntas incómodas e do olhar indiscreto dos forasteiros.

A oficina fica nas traseiras da casa. Um pequeno caminho condu-lo todas as manhãs de uma à outra e devolve-o à noitinha ao ponto de partida. É uma viagem curta, mas suficiente.

O ar frio da neve ou o ar morno da primavera são-lhe igualmente maravilhosos. Os telhados recurvos do templo e a fronde rosada das cerejeiras ao fundo despertam-lhe o mesmo agradecimento, a mesma alegria que a água das fontes e o perfume do musgo.

O senhor Nakata descalça-se sempre que entra na oficina e permanece imóvel algum tempo, até que a visão se acostume à penumbra. Aproveita esses minutos para escrever poesia.

Escreve-a de memória, às vezes repetindo-a em monólogo, esforçando-se por usar a palavra certa no lugar certo. Além do trabalho manual e da poesia, é cultor da sopa de miso, dos banhos de água gelada, da filosofia wabi-sabi e da obediência samurai. Acredita que cada trabalho que fizer será mais perfeito do que o anterior e que mil anos não chegariam para que se atinja a perfeição. Mil e um anos, sim!

Ninguém sabe a idade certa deste homem. Dito de outro modo, ninguém sabe quantos anos faltam para se sentir preparado para morrer.

O senhor Nakata exibe em todos os gestos paciência, labor, paixão. Depois de compor o seu poema (como quem apara uma folha de bonsai ou lhe extirpa uma erva do pequeno tronco), escolhe o papel, o couro, o molde e as linhas com que coser mais um caderno. Cose-os tão devagar como cose uns aos outros os três versos dos haikus.

Para quê apressar o amor se se pode morar nele e não noutro sítio?

Uma vez, depois da guerra, vieram dizer-lhe que o filho tinha sido encontrado morto num poço. O senhor Nakata manuseava a sovela à luz escassa de um gasómetro. Na sua mesa via-se uma coleção de tesouras, facas e réguas, carrinhos de linha, giz, pilhas de papel, tiras de couro de boi e de cordeiro. O cheiro das colas impregnava o espaço. Os visitantes afogueavam-se, dobravam-se numa mesura fúnebre, emocionados com a tragédia. Esperavam não matar o vizinho, já então velho e atingido por várias desgraças.

Sem se mexer, sem um esgar de surpresa, o senhor Nakata escutou a notícia. Aos poucos afastaram-se às arrecuas os que ali foram levar-lha.

O caderno que sustinha nas mãos era esmerado, impolutamente branco, cosido com precisão. Faltava-lhe o resguardo em pele com que deveria fechar-se. Era imperioso que o papel pudesse contar com essa capa de tecido animal para permanecer no tempo, para assegurar ao futuro proprietário o prazer máximo de uma escrita lenta e longeva. Aquele caderno não seria apenas mais um objeto, mas o objeto de que alguém jamais prescindiria.
Diriam «Foi este o caderno que Nakata cosia, quando lhe deram a notícia da morte do filho!»

O artesão prosseguiu com a sovela, abrindo um a um os equidistantes buracos da sua dor. Depois, até que a noite sobreviesse, tapá-los-ia com orgulho, como quem prende a si um destino ou uma missão na terra.

Hoje, os forasteiros ouvem falar dele e procuram-no embalde. Descrevem-no como se descreve a criatura principal de um mito. Dizem que cada trabalho que fizer será mais perfeito do que o anterior.

Mil anos não chegarão para que atinja a perfeição. Desejá-lo em cada dia, isso sim.

.