«EUTRAPELIA» – CRÍTICA DE CLÁUDIO LIMA

Eutrapelia (livro de poesia)

Hoje reunimo-nos para celebrar os 20 anos de poesia publicada em livro por João Ricardo Lopes. Às primícias poéticas deu o Autor o título de a pedra que chora como palavras (ed. Labirinto, Fafe, 2001). E, a justificá-las, se a intrínseca qualidade da obra não bastasse, assinale-se a atribuição do Prémio Revelação de Poesia Ary dos Santos, galardão de encher de orgulho e incentivo qualquer iniciante na difícil arte das belas letras. De facto, percorrendo estes 35 breves poemas, um leitor minimamente apetrechado e familiarizado com os meandros e mistérios da poesia, imediatamente concluirá que aquele livrinho inaugural indiciava, mais do que uma tímida promessa, uma sólida e inequívoca vocação poética. Ainda hoje, volvidos 20 anos, «a poesia irrompe como um meteoro» (pg. 33) ao longo daquelas páginas. Táctil, intensa, evocativa, sob qualquer perspetiva que se a observe, é sempre uma deleitosa fruição o que ela nos proporciona. 

Passados 20 anos e cinco outros títulos de poesia, se o Autor não parou no tempo nem precisou de corrigir a rota, – e entendo que não – é porque partiu de uma rigorosa e bem pensada estrutura formal e conceitual que o tem levado a uma constante e cada vez mais criteriosa indagação do fenómeno, quando não epifenómeno, do que a poesia implica de consistência e aprofundamento. Andam por aí montes de equívocos, montanhas de falácias e cordilheiras de nulidades a doutrinar sobre e a praticar uma escrita balofa e oca a que conferem o rótulo de poesia, travestida, ademais, de genialidade visionária e vanguardista! Um deserto sem vislumbre de qualquer oásis onde mitigar a sede de beleza e unção espiritual!

Um observador comum olha e diz assertivamente: “isto é uma árvore”. E esse juízo, redutor e fechado na estreiteza conceitual, lhe basta. Apenas exige da árvore que lhe dê frutos e alguma sombra. A linguagem com que nomeia e qualifica é pragmática e utilitária; circunscreve o que vê e vê-o por fora e de relance. Um observador de sensibilidade poética, ao invés, vai aos limites da perceção e da expressão da coisa percecionada. Para ele nada é singular e unívoco na linguagem, antes polissémico e polimórfico. Liberta o objeto das amarras a que o uso massivo e ligeiro o submete e explora, ao mesmo tempo que lava as palavras das nódoas causadas pelo uso e o abuso.

Conheço o João Ricardo Lopes há bastante tempo, desde a publicação da coletânea Histórias para um Natal (ed. Labirinto, Fafe, 2004) em que ambos participámos. Mas, sobretudo, desde a publicação das suas crónicas Dos Maus e Bons Pecados (ed. Opera Omnia, Guimarães, 2007), em que de igual modo faz emergir a sua férula de prosador interveniente, atento ao panorama cultural e cívico português. Dessa obra fiz a apresentação na prestigiada e prestimosa Livraria 100.ª Página em 25 de outubro de 2007, cujo texto-base teve publicação no Diário do Minho a 7 de novembro do mesmo ano. Já então eu pressentia, sob a irreverência, por vezes a causticidade, do jovem cronista, a musculada expressão de quem procura bem mais do que a flutuação abúlica à deriva do tempo.

Cláudio Lima e João Ricardo Lopes

Regressa agora, a celebrar duas décadas de poesia, com um título breve e, para muitos leitores, algo esquisito, se não abstruso: Eutrapelia. Palavra de origem grega formada pelo prefixo“Eu” – que significa bem e belo – e pelo lexema “Trapelós”, de amplitude polissémica, omisso em vários dicionários e glossários da língua portuguesa. O velho Cândido de Figueiredo transverte-a simplificadamente para “qualidade daquilo que é gracioso, chistoso, mordaz”; José Pedro Machado no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, tomo II, regista “forma chistosa de motejar”; já o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, no tomo IX alarga um pouco mais o campo semântico: “modo de gracejar sem ofender, zombaria inocente, disposição de pilheriar agradavelmente, brincar amável e espiritualmente, engraçar-se, pilhéria grosseira, palhaçada, troçador birrento”, etc. Por sua vez, o Google, que regista várias entradas de natureza filológica, filosófica e ética, de divergentes, quando não opostos significados e nuances, tendencialmente valoriza os conceitos de conversa agradável, senso de humor, dito jocoso e inofensivo, etc.

E o Autor? Qual destas múltiplas propostas de natureza semântica o moveu à opção por um título que para muitos leitores se torna embaraçoso e impeditivo de uma imediata apreensão, bem como dos conteúdos que pode abranger? Ele esclarece: ao impulso que o moveu a esta solução subjaz um determinado estado de beatitude por indução (osmose?) de tudo quanto o rodeia, o interpela e o seduz. Uma espécie de filtro que tria a indiferenciada e caótica vasa do quotidiano. Veicula uma poesia que vai beber aos clássicos gregos, orientais e a alguns dos mais representativos vultos da cultura ocidental. Exige ser lida com todo o vagar e atenção, dessa forma removendo eventuais dúvidas e obstáculos ao desfrute de uma lírica adulta, bem burilada, pródiga em sugestão, estesia, brincos de retórica e de encantamento. Importa ser lida empenhadamente, em suma.

Facilmente apreendemos o quanto os prodígios da natureza fascinam o Autor e lhe condicionam o estro poético. No seu cíclico e inalterável movimento, estação a estação, admiramos aqui ora o desabrochar pletórico, ora o inelutável dessoramento e morte, para novo ressurgimento em novo ciclo vital. O eterno retorno em movimento perpétuo. Ocorre-me citar, a respeito, o grande Johann Wolfgang Goethe, quando compara a natureza a um livro: «A natureza é o único livro que oferece valioso conteúdo em todas as suas folhas».

Logo na página 13 encontramos um poema intitulado Bosch, Primavera, Museo Del Prado em que, provavelmente influenciado pela contemplação dos trípticos O Jardim das Delícias e / ou O Carro de Feno, do grande pintor brabantino, que se encontram expostos naquele Museu, observa que «encontrar no meio do sangue revolto / a pedra imprecisa // seria essa, talvez, a mais bela fonte da loucura», porque «depois de extraída tudo regressaria ao seu lugar». E na página 16 é ainda um hino à primavera que nos é oferecido num Allegro de jubilosa exaltação: «daqui observo o afã dos piscos nas ramagens / do limoeiro, / oiço o arrulhar, o trissar, / o assobiar das rolas, das andorinhas, dos pardais (…)  em maio as manhãs / fazem-me mergulhar na terra, / na profusão dos cheiros e das formas, / no frescor das ervas, / na quentura das cravinas e das rosas // arrepio-me de pensar que existo / e respiro / e escuto o tempo».

Cláudio Lima, João Ricardo Lopes e João Artur Pinto

Curiosamente, sobre o verão não encontramos nenhum título explícito, não obstante a sua sedução e a sua luminosidade permearem muitas destas composições. Na página 32, por exemplo, podemos ler o poema Agosto, em que fala no «verde azul do mar / ferindo-me como crisocola entre os dedos, / este azul onde os olhos adormecem (…)» E na página 30 repare-se neste extraordinário quadro (tela) estival, intitulado Tremezzo (região italiana da Lombardia): «lembro-me dessa tarde em Tremezzo, / do sol a pique / dos nossos corpos transpirados / à procura de uma sombra (…) os lentos degraus de granito até ao lago, / a água  refrescando-nos os tornozelos, / a lavar-nos do cansaço, / as ondas que os barcos de recreio levantavam / e que vinham de longe, / que vinham contra nós, / criaturas exangues, inofensivas, / sem culpa de nada».

O outono está aqui profusamente referenciado: na página 37, no poema O outono acena mais perto, elenca os gestos rituais de um setembro maduro e abundante: «nestes dias de lavar, brunir, / dobrar em caixas de cartão as roupas, / fazer contas de cabeça, tirar velhas compotas do armário, / despejar-lhes o bolor, lavar os frascos, / fazer polpa, cozer os marmelos, colher os figos, / conservar tudo de novo, como uma memória fresca da infância // o outono acena mais perto, / digo, o ar distraído das coisas, a subtileza madura dos frutos».  Na página 51, em Lendo Erdal Alova, poeta turco, fala do frio que secou os agapantos, das «pétalas soltas, / teias de aranha entre os caules / ressequidos», para concluir: «o outono é a estação do pouco / e eu contento-me / com tê-lo inteiro / aqui, / ou noutro lugar».

Também o inverno percorre estas páginas. No poema, a páginas 10, Sevilha, Inverno de 93, recorda «a pele das tuas mãos / (sempre tão álgidas) / caindo sobre o meu caderno // o que escreves aqui? para quê a poesia? / quem amas tu?» E lá mais para diante, evocando o cineasta russo Andrei Tarkovsky no poema O Inverno ou a Nostalghia de Andrei Tarkovsky, (página 58), é-nos dado a ler: «são agora mais frias as manhãs, / quase espetrais / atravessamos o nevoeiro, / como se atravessa a vau um espelho // os lavradores afastam em molhos a lenha inútil, / pelos campos as gralhas zombam avulsamente» Quadro rústico de grande plasticidade, sem dúvida, a fazer lembrar pintores como van Gogh. A concluir, logo na página seguinte, em Prodígios, leiamos esta quadra: «é possível trazer para dentro da lágrima / a subtil viração de certas tardes de inverno, / quando à janela as cortinas esvoaçam / e se descobre um mundo subitamente interrompido».

João Ricardo Lopes é, sem dúvida, um insaciável buscador de tesouros, naturais ou elaborados por obra do génio humano; coleciona sensações, contemplações, entusiasmos de índole estética e espiritual. Não é um turista apressado e frívolo numa correria tonta, galgando geografias de máquina fotográfica frenética, atrás de alvos banais para registo de selfies e de filmagens. Datados no tempo e situados em amplos espaços da cultura e da arte europeias, estes poemas, de tamanho e estrutura diversificados, constituem-se em precioso álbum literário daquilo que de mais belo e imperecível a humanidade foi realizando. Por aqui se movem em aparições mais breves ou mais demoradas, vultos tutelares da língua e cultura portuguesas, como Camões, Camilo Pessanha, Saramago; génios da arte universal como os poetas Horácio, Schiller, Whitman, Lorca e Seferis; pintores como Vermeer, Caravaggio e Bosch; músicos como Schubert, Debussy e Ravel. E tantos outros, cujas vidas e legados impressionaram o Poeta e o inspiraram nas digressões por museus, catedrais, jardins, monumentos, praças e avenidas, em diversos sítios tais como Creta, Londres, Milão, Madrid, Sevilha, Lanzarote, etc. Um andarilho do sonho e do mistério; do fascínio dos lugares e das coisas em que poisa e demora um olhar deslumbrado.

Encerro esta despretensiosa e limitada exposição-apresentação, lendo o poema O Cheiro da Terra (página 31), demonstrativo da faceta telúrica que esta obra também revela.

O CHEIRO DA TERRA

o cheiro mais antigo de que me lembro

é o perfume da terra

antes mesmo da fragrância húmida

do mar e da chuva,

antes do odor do papel, dos vernizes

ou da tinta,

antes mesmo do aroma dos laranjais,

ou das rosas, ou do pão

invade-me às vezes uma volúpia incerta

de caminhar descalço

sobre os campos lavrados,

de erguer punhados dessa matéria negra

e macia

– aparentada com o ardor

do alecrim e da rezina –,

caindo em torrões e grânulos

como deve cair

os cheiros são o nosso modo de rastrear

o tempo

é um mistério o que deles nos fica

e porque ficam,

um mistério

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O SENHOR NAKATA

Captura de ecrã 2019-03-31, às 16.47.11

para a Céu

Na cidade de Quioto, no antiquíssimo bairro de Higashyama, numa das casas mais humildes, próxima do templo de Kyomizudera, vive o senhor Nakata.

É um artesão legítimo e completo. Os turistas gostariam de o tornar uma atração fotográfica, ao lado das aprendizas de gueixa (as maiko) e das casas de chá. Mas o senhor Nakata, como manda a boa tradição nipónica, gosta do silêncio e da sombra, prefere o seu trabalho livre das perguntas incómodas e do olhar indiscreto dos forasteiros.

A oficina fica nas traseiras da casa. Um pequeno caminho condu-lo todas as manhãs de uma à outra e devolve-o à noitinha ao ponto de partida. É uma viagem curta, mas suficiente. O ar frio das neves ou o ar morno da primavera são-lhe igualmente maravilhosos. Os telhados recurvos do templo e a fronde rosada das cerejeiras ao fundo despertam-lhe o mesmo agradecimento que a água das fontes e o perfume do musgo do jardim.

O senhor Nakata descalça-se sempre ao entrar e permanece imóvel algum tempo, até que a visão se acostume à penumbra. Aproveita esses minutos para escrever poesia.

Escreve-a de memória, às vezes repetindo-a nos monólogos, esforçando-se por usar a palavra certa no lugar certo. É, além do trabalho manual e da poesia, cultor da sopa de miso e dos banhos de água gelada, da filosofia budista (wabi-sabi) e da obediência samurai. Acredita que cada trabalho que fizer será mais perfeito do que o anterior e que mil anos não chegariam para que se atingisse a perfeição. Mil e um anos, sim!

Ninguém sabe a idade certa deste homem. Dito de outro modo, ninguém sabe quantos anos faltam para se sentir preparado para morrer.

O senhor Nakata é paciente, laborioso e apaixonado. Depois de compor o seu poema (como quem apara uma folha de bonsai ou lhe extirpa uma erva), escolhe o papel, o couro, o molde, as linhas com que há de coser mais um caderno. Cose-os tão devagar como cose uns aos outros os três versos dos haiku. Para quê apressar o amor se pode nele morar e não noutro sítio?

Uma vez, depois da guerra, vieram dizer-lhe que o filho tinha sido encontrado morto num poço. O senhor Nakata manuseava a sovela, à luz escassa de uma lâmpada.  Na sua mesa via-se uma coleção de tesouras, facas, réguas, linhas, um esmeril, giz, pilhas de papel, tiras de couro de boi e de cordeiro. O cheiro das colas impregnara todo o espaço. Os visitantes afogueavam-se, dobravam-se numa mesura fúnebre, emocionados com a tragédia. Esperavam não matar o vizinho, já então velho e atingido por várias desgraças.

Sem se mexer, sem um esgar de surpresa, o senhor Nakata escutou a notícia. Aos poucos afastaram-se às arrecuas todos os que ali foram levar-lha.

O caderno que sustinha nas mãos era esmerado, impolutamente branco, cosido com precisão. Faltava-lhe o resguardo em pele com que deveria fechar-se. Era imperioso que o papel pudesse contar com essa capa de tecido animal para permanecer no tempo, para assegurar ao futuro proprietário o prazer máximo de uma escrita lenta e longeva. Aquele caderno não seria apenas mais um objeto, mas o objeto de que alguém jamais prescindiria. Diriam «Foi este o caderno que Nakata cosia quando lhe deram a notícia da morte do filho!»

O artesão prosseguiu com a sovela, abrindo um a um os equidistantes buracos da sua dor. Depois, até que a noite sobreviesse, tapá-los-ia com orgulho como quem prende a si um destino ou uma missão na terra. Cada trabalho que fizer será mais perfeito do que o anterior. Mil anos não chegarão para que atinja a perfeição. Desejá-lo em cada dia, isso sim!

CADA POEMA É UM BIG BANG PRODIGIOSO!

big bang
Foto: NASA

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«Só nos meus poemas encontro morada» escreveu Jan Jacob Slauerhoff. Cito-o por não precisar de outras palavras para dizer exatamente o mesmo, por comodidade portanto. Mas por defesa também, para não me servir de argumentos mais terríveis para justificar a franciscana fortuna que juntei em quase quatro década de vida. Aos muitos que se queixam do amor e de uma cabana oponho eu a miséria ainda maior de não possuir nem uma coisa nem outra. Porque esta servidão (ocorreu-me o último título de Herberto Helder) o é no sentido pleno da palavra servir. Servir a poesia é, em última análise, nascer, viver e morrer com a poesia, ao lado, para ela e por causa dela… Servidão sem renúncia, sem protesto, sem arrependimento, servidão que torna tudo o mais secundário, incompleto ou incompreensível… 

Mas moro também na poesia dos outros. Na sageza dos truques de linguagem. Na metáfora que o tempo lavou ‒ como a um espelho ‒ com sais e sabão. No ímpeto e jactância de uma estrofe, que ao passar por nós ‒ pela nossa língua ‒ levanta as pequenas chamas vacilantes e acaba incendiando-nos os olhos por dentro. No brilho intenso de uma imagem original, pura e espontânea, como o movimento de um abelhão ao deparar-se com canteiro de amores-perfeitos que salpica o lado de fora da nossa janela. Moro na poesia com a paz e o desprendimento de um santo eremita, de um sem-abrigo, de um louco, que no final de cada dia regressa ao seu tugúrio, à sua manta, à sua cela silenciosa. E que consolo habitar o miolo dos livros! Degustar com frenesi o cheiro a papel reciclado, como o das revistas do Tio Patinhas, o aroma da celulose, o odor perfeito do papel novo, semiplastificado, como o dos baralhos de cartas ou dos manuais escolares, acabados de estrear. E que prazer manusear antigos cadernos de sebenta, guardanapos, meias folhas aproveitadas, velhas agendas, cartões e panfletos já esquecidos, com versos, rasuras, anotações e correções feitas com a caneta de aparo, surpreendentemente lúcidos, agradavelmente melódicos, imageticamente vivos… 

E é por isso que troquei sempre o Audi pela poesia de Homero, Camões, Whitman e Pessoa. Foi também por essa razão que hipotequei a casa, salvando somente os volumes de Arquíloco, Catulo, Dante, Baudelaire, Eliot, Breton, Celan, Miłozs, Tranströmer, Al Berto. E esqueci-me da data do nosso casamento, quando às tantas acabava numa mesa de café uma longa respiração, como as que Ruy Belo me ensinou, lidas em voz alta por Luís Miguel Cintra, junto ao mar, em tardes de inverno, quando as finanças, os altares, as multidões, os ruídos todos me angustiavam de uma forma que jamais conseguirei explicar-te. Troquei-te por Safo, por Emily Dickinson, por Akhmátova, por Sylvia Plath, por Sophia, por Fiama, por Elaine Feinstein, por Wisława Szymborska. E tu nunca me perdoaste. E eu nunca procurei o teu perdão. E tu decidiste, como outros faziam no óstraco, condenar-me ao pior dos exílios, que é e há de ser sempre o do desprezo. 

Não tenho emenda. Não há remédio para isto. Nenhuma solução. Divorciei-me deste tempo, divorciado ele mesmo da poesia. Divorciado ele próprio da função principal do tempo, que é o de cavar crateras na nossa memória, como as da lua, onde acolhêssemos como a luz dos charcos os dias limpos, onde acolhêssemos como a lama dos charcos os turvos redemoinhos dos remorsos e do sofrimento. Divorciei-me deste tempo que não entende de espiritualidade, que se tornou belo e artificial como os antigos bezerros de ouro, artificial e belo como as frases ocas que leio todos os dias em todos os lugares e na boca das pessoas que me não entendem. Não tenho emenda. Sou viciado na pior das anfetaminas, no puro ecstasy das palavras que são música, religião e verdade. Sou viciado em POIESIS! 

Mas mais do que isso. Sou viciado numa certa forma de querer existir. Sou viciado na preferência pelo profundo e pelo complexo, pelo subtil e pelo difícil, pelo que é ineficaz, imprestável e impagável, pelo que às vezes é vão e muitas vezes é efémero. Viciado por exemplo numa fuga de Bach ou numa elegia de Eleni Karaindrou, por oposição a todo o que é forró, pimba ou kitsch. Viciado por exemplo num bom filme de Fellini ou de Antonioni, de Wim Wenders ou de Alexander Payne, em troca dos quais mandaria incinerar todas as telenovelas da TVI. Viciado numa boa ópera de Mozart ou de Rossini, numa boa peça de Ibsen ou de Brecht (nem falo dos muito amados e adorados helénicos), numa boa conversa sobre antropologia ou astrofísica, viciado num bom café, amante dos melhores Cohiba, apreciador de uma reserva de Mouchão, naquela mousse de manga especialmente cremosa, nesse pudim de limão que apenas uma pessoa sabe fazer… 

Ser viciado em poesia é o diabo! Habituamo-nos a luxos incomensuráveis, incontornáveis, irremediáveis, aos quais votamos não apenas a gula do instante, como sobretudo as epifanias que valem versos e uma eternidade (pelo menos o desejo de uma eternidade no prolongamento do nosso olhar). Ser viciado em poesia (que o são também aqueles que escrevem equações ou partituras, aqueles que modelam cerâmica ou coreografam pulsões) é uma porta aberta para o princípio, para o reconhecimento de que nos nossos gestos (nos mais ínfimos e risíveis) se repete o começo do cosmos, o movimento inicial, vital, verbal que acelera as veias e nos torna senhores da nossa própria ausência. 

Milhões de páginas foram escritas sobre o mesmo assunto, em centenas de línguas, em milhares de universidades, mais objetiva ou mais subjetivamente. Do que dela disseram Aristóteles, Horácio, Wordsworh, Edgar Alan Poe, Derrida, Octavio Paz, João Cabral de Melo Neto, Bloom, George Steiner se fizeram códices e volumes imensos. Pura repetição! Ainda ecoam nas paredes da minha cabeça as frases eruditas com Ruy Belo procura agadanhar «Na Senda da Poesia» (1969) os grandes filões desta arte, que é religião e mito, ilusionismo e música, ciência e pão, amor e morte. 

Cada poema (conforme deixei escrito em certo apontamento de 1998) é uma reedição do universo, cada um é a busca de uma ordem no caos permanente, a crença num lugar eterno como se crê num qualquer ponto abstrato, no movimento de cá para lá e de lá para cá do pêndulo. 

O dito apontamento, escrito em caligrafia descuidada, provavelmente embriagada pela recente leitura de Gilles Deleuze, num caderno muito sujo pela cinza dos cigarros, não é grande coisa, admito. Gostava de filosofar, de tentar dizer por palavras minhas o que outros haviam porventura escrito com solene profundidade. Mas ficou aí o meu Credo, lídima profissão de fé, que o tempo não viria senão a corroborar: 

«Nada em poesia é inócuo ou arbitrário. Nem sequer o silêncio que intervala as palavras, e as intervala entre o instante e o infinito. Nem sequer o modo como um homem ou uma mulher decidem viver para melhor a segregarem, como o fazem e o fizeram as límpidas abelhas de todos os tempos. Nada em poesia é inocente. Cada poema é um Big Bang prodigioso. Somos poesia e à poesia havemos de tornar, não no fim, mas outra vez e sempre no princípio.»

UM POVO QUE NÃO AMA A POESIA É UM POVO ESTÚPIDO: PONTO!

Victor More
Fotografia de Victor More

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Aceitemos o facto: nós, os portugueses, estamo-nos positivamente marimbando para a poesia. Acrescentemos essa a outras famigeradas sinas: nós, os portugueses, damos o litro a escrever poesia, mas estamo-nos nas tintas para a poesia dos outros. Nós, os portugueses, como os demais povos que já foram um dia burgueses, que tiveram já na sua História a fase do ócio, da novela e dos sonhos cor-de-rosa, gostamos é da Carochinha. Matemática, ópera e poesia é que não! Que horror! São abstrações que dão trabalho (levam séculos a aprender) e tempo é coisa de que nós, os portugueses, não possuímos. Em regra, depois das séries da TVI, do futebol e das tricas políticas, nós, os portugueses, mal conseguimos olhar para a filharada, para as contas nos envelopes por abrir ou para o aviso do condomínio. 

Não custa nada aceitar. Basta aceitar! O facto é este: na terra de Fernando Pessoa, o tuga gosta é do Tony Carreira. Camões é fixe, mas desde que deixou o Benfica é só uma glória enfeitada na praça com merda de pombo. Antero de Quental, Camilo Pessanha, Jorge de Sena, Sophia, Torga são uns chatos que às vezes aparecem mesmo à frente dos nossos olhinhos, escritos nas placas toponímicas. Devem ter sido bons atores de algum Big Brother primitivo. Mas esta rapaziada, este mulherio bronzeado da TVI, este luxo de mamas de silicone e cabelo à moicano depressa faz esquecer os cotas do passado. É a lei do tempo. É tudo sempre a correr. Que o digam os portugueses, que mal começam a ler uma extensa reportagem de dois parágrafos no jornal do metro têm de se interromper, visto a saída ser na estação a seguir. O facto é esse. Aceitemo-lo. Nós, os portugueses, estamo-nos a cagar para a literatura, especialmente para a poesia. 

Pela parte que me toca, contento-me com a meia dúzia de amigos que põem gosto nas minhas publicações do Facebook. Está lá a foto. Está lá a hiperligação. Está lá a citação de qualquer coisa (lidimamente poética) que publiquei no blogue. Tudo muito limpo, muito virtual, muito apelativo. Contento-me em publicar digitalmente, porque entretanto (reza-se por aí) a crise chegou às editoras, que gostam muito dos novos, lhes admiram a coragem, lhes vaticinam prosperidade, mas que entretanto lhes fecham as portas. Menos aos novos já consagrados. Esses são vinho de outra pipa. Esses sempre vendem alguma coisita que dá para cima de quatro dígitos. Desde que escrevam de vez em quando (pode até ser; muitas vezes é) um mau romance. Só para acertar as contas, equilibrar números, projetar a imagem… 

Claro que um poeta pode ter sucesso. Imenso, aliás. Nem precisa de se esforçar por aí além. Pode atirar-se às rimas. Poder aguçar a redondilha. Pode treinar primeiro com quadras de S. João. Ganhar um prémio ajuda. Depois é só pedir um patrocínio à Junta de Freguesia, ou à Câmara, ou ao primo que tem um negócio de fazendas. E lá sai uma «Seara de Versos», umas «Folhas Avulsas», um «Parnaso Popular». Depois é vê-lo faturar! Basta impingir um exemplar a cada cliente, no fim de lhes engraxar os sapatos e limpar as mãos aos desperdícios. Basta estar à porta da igreja, no final da missa. Basta pô-lo no Talho da Dona Rosalina, ao lado dos chouriços e do salpicão! 

Também eu comi o pão que o diabo amassou para chegar às livrarias. Consegui-o a custo, engolindo sapos, entretendo-me com vigaristas, perdendo o tempo a fazer de conta que acreditava nas explicações. De toda a poesia que fiz sair em livro não lucrei até hoje um cêntimo. Exceto, claro, o que ganhei nos prémios. O país não tem como pagar a abundância de génio e de candidatos ao Dicionário da Literatura do Professor Álvaro Manuel Machado. De resto, «direitos de autor» é uma daquelas expressões que provocam asma. Tosse-se muito quando se pronunciam as três palavras. Um tipo com vinte e poucos anos imagina-se a dar autógrafos, a responder às entrevistas, a ser conhecido na rua. Só a calvície faz compreender (mais vale agora do que depois) o sujo pragmatismo do dinheiro. Faz-se perguntas à mesa do café. Volta-se a tossir muito. A conversa, como a viagem daquele agrimensor de Kafka, não leva a lado nenhum… 

Um tipo, por maior poeta e boa pessoa que seja, farta-se. Um dia diz «Puta que pariu esta merda!». Um dia chega mesmo a ameaçar «Meu grande filho da puta, quando pagas o que me deves?». Diz outras coisas afins (limito-me a citar), mas acaba por desistir. Os poetas são seres instáveis, cansam-se depressa, não sabem senão pensar em metafísica. Prova a história (e a fonologia também) que decência não rima com editor. E um poeta, ainda que vibre fundo o desespero, acaba por encontrar outra solução. 

Estamos na época da edição de autor. Estamos a voltar ao começo, ao tempo em que Camões, com Os Lusíadas manuscritos debaixo do braço, ia mendigar esmola para pagar a tipografia. Saibam os portugueses que o caché no tempo de Camões era ridículo. Não, portugueses, era tanga aquilo há pouco: Camões não foi jogador do Benfica. Não, Camões, não era o tipo do Conta-me como foi! Quer dizer, também havia um Camões no Conta-me como foi. Mas estamos a falar doutro Camões, portugueses. Este Camões era poeta: um desgraçado; passou pessimamente. Para compensar deram-lhe um feriado. Sim, portugueses: o 10 de junho! Não, portugueses: tenho a certeza de que Camões não jogou no Benfica! 

Mas os feriados são caros — não queiramos ouvi-lo da boca do Primeiro-Ministro! Não conto, portanto, que me deem um. Nem que me fique o nome gravado numa tabuleta, depois de uma rotunda, ou à entrada para um beco sem saída. Nem que me leiam (com voz rouca, pose melodramática, lágrimas nos olhos) nos saraus semanais da associação cultural e recreativa, sita na rua-de-não-sei-que-antigo-ministro-do-ultramar. 

Contento-me com a minha meia dúzia de leitores. Com a perspetiva de que melhores dias surjam no horizonte e com eles uma geração inteligente, capaz de saborear um poema como se saboreia um pitéu; capaz de ler um poema como se lê a bula da Aspirina, com inteligência e sobriedade; capaz de ensinar aos filhos um poema como se ensina um conto popular ou uma adivinha… E não digo um poema recolhido do Jornal de Notícias. Digo um poema de Luiza Neto Jorge, um poema de Nuno Júdice ou um poema de Herberto Helder. 

Estou a exagerar? Não, nós, os portugueses, é que estamos demasiado acostumados ao pouco. E a pouquidão (a palavra existe e assenta-nos que nem uma luva) não nos tem levado senão a preservar nos genes, com o passar dos séculos, contra o ardor da História (como num frigorífico) a mesquinhez, a futilidade e a inveja. Por contraponto, um povo capaz de vibrar com um bom poema será (é) um povo inteligente, sensível e evoluído. 

Não peço glória. Peço um povo em condições. Foda-se, portugueses! Isso é pedir muito?

FAZER VERSOS

Boy (Vedran Vidak)
Fotografia de Vedran Vidak

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Metade da minha turma reprovou no final do 5.º ano. Éramos uma turbamulta pouco polida e mal preparada intelectualmente. Eu escapava. Quem o dizia era o Padre Lobo, professor de Religião e Moral. Mesmo assim fui obrigado a pedir desculpa, diante de toda a classe, e em pé, sobre o estrado, à professora de Educação Visual, por me ter envolvido durante uma das suas aulas de desenho numa zaragata artística com o meu primo Barnabé. Cada qual usou a respetiva régua T para sovar o outro. O resultado foi ficarmos os dois com a cabeça rachada e inundarmos as nossas e as mesas dos colegas com restos de plástico.

De maneira que o primeiro dia de aulas no 6.º ano foi um terror, não fosse eu um intruso no meio daquela gente toda que se conhecia e se dava de cotovelos para me indicar. Eu era o tipo novo. Senti saudades dos velhos terroristas. A tal ponto que os olhos se me afligiam com a água teimosa que os queria submergir.

Estávamos em Língua Portuguesa, a primeira de todas desse ano letivo. Isto porque a professa dessa disciplina era também a Diretora de Turma. E viva aflição nos causou, porque nunca sorria e à medida que ia dando informações lançava-nos grandes olhos de coruja, que pareciam espiar-nos até para lá da sombra dos pensamentos. Tinha para além desta outra afinidade com uma ave de rapina: o seu fino nariz adunco, uma espantosa curvatura semelhante ao bico de uma águia.

De maneira que esmagado pela hostilidade geral tive o estranho pressentimento de estar a viver bem acordado um dos pesadelos da infância. Aquele seria um dia longuíssimo num ano que nunca mais teria fim. Tudo era tão distante de tudo que até as férias, acabadas no outro dia, me pareciam já um remotíssimo adeus por correr das memórias.

A professora continuava a comandar a tropa. Ditava umas coisas, apontava outras no quadro. Para umas coisas e para todas usava o mesmo tom de voz excessivamente imperativo. Falava áspera como as senhoras da Secretaria ou como a velha catequista que nos treinava para a Comunhão Solene. Depois das saudades dos antigos colegas, vieram as saudades do professor de Língua Portuguesa do ano anterior, que era jovem e se chamava Miguel, que nos lia histórias incríveis de todas as épocas e de todas as civilizações da Terra. Nas suas aulas ninguém ousava portar-se mal, porque cada minuto perdido era verdadeiramente um minuto a menos de magia. Chegávamos a esquecer-nos do tempo! O toque de saída era muitas vezes acompanhado de expressões de pesar, como quando somos forçados a interromper um sonho magnífico.

Mas isso fora antes. Agora tínhamos aquela senhora que berrava a cada cinco minutos; que se esganiçava para exigir que levantássemos a mão se pretendíamos falar; que aplicava palmadas violentas no tampo da sua mesa se lhe cortávamos o fio à meada. Foi então, terminadas todas as explicações práticas, que pretendeu conhecer-nos um pouco melhor. Perguntou o que gostávamos de fazer nos tempos livres. E o Alberto Carlos, que era o número um, explicou com o seu timbre grave o que fazia nos seus tempos livres: ajudar os pais com o gado. Houve uma risada geral. Também me ri. A professora ainda esboçou o ar de quem ia fazer o mesmo. Mas cortou a galhofa no seu jeito militar. Depois do Alberto Carlos seguiu-se a Anabela, depois a Ana Isabel e o César, a Daniela e por aí diante até chegar a minha vez.

Quanto a mim, francamente não sei o que me deu. Nunca o pude apurar. Eu, que adorava jogar à bola, meter-me em bulhas, trepar aos bardos mais altos da vinha do meu avô, que passava horas a jogar aos cowboys e ao esconde-esconde, que me pelava por grandes passeios de bicicleta e por mergulhar no riacho, alto da pontezinha romana ao lado da antiga leprosaria, disse que gostava de fazer versos.

Foi uma assuada trocista, miúdos da frente a fingir que tinham de segurar na barriga, meninas com a tacha arreganhada atrás, pateada à direita e à esquerda, piadas sussurradas de todas as bandas, “Copinho de leite”, “Coninhas”, “Grande maricas”…

Com que então eu gostava de fazer versos

Bem podia ter dito que ajudava o meu pai na tecelagem, trabalhando como gente crescida à frente de máquinas como o caneleiro de dez fusos. Podia ter confessado que gostava de desenhar e de erguer miniaturas de casas e igrejas com cartão (demonstração de talento arquitetural que se me apagou lamentavelmente com a idade). Podia até, para angariar rapidamente camaradagem, explicar que gostava de namorar com meninas bonitas de olhos azuis. Mas não. Fiz saber que gostava de fazer versos

Entretanto, ouviu-se um grande som de vergasta. Com uma espécie de antena de rádio toda estendida, em riste, mais assustadora ainda, a Diretora de Turma avançou uns passos, fê-la embater com estrondo no caderno diário de um colega lá da frente. Todas as cadeiras se colaram ao chão. Os olhos da coruja varreram então por uns segundos a sala à cata de prevaricadores. Mas a vergasta podia muito. Depois o aquilino nariz respirou melhor e a própria voz, mais doce, mais falsete, disse:

— Muito bem, João Ricardo!

E repetiu o “Muito bem” tão enfática quanto desnecessariamente, pois a minha reputação estava arruinada. Acrescentou até, com certa nostalgia, que havia ficado muito surpreendida com a minha resposta, que nunca tal ouvira em trinta anos de serviço. Por fim, quase amistosa, quase amiga, fez saber que eu só podia ser um menino especial. E o seu sorriso desabituado fez-se notar ao de leve nos lábios cheios de pregas e batom vermelho.

Guardei sempre esta memória como talvez se guardaram numa caixa de sapatos calendários de antigos jogadores do Benfica, cromos do Dartacão ou um maço de cartas de amor. Puro instinto afetivo.

Claro que sobrevivi. Primeiro por causa da fama de grande batoteiro nos jogos de cartas. Segundo porque era um centrocampista exímio. Depois porque a minha costela donjuanesca vinha já dando frutos notáveis por esses dias. Mas os olhos vorazes e o nariz adunco exigiam-me também provas.

Li nessa altura muito almanaque de igreja, muita quadra popular, muito António Aleixo. Aprendi com efeito a rimar, e a rimar com esmero, com sofisticação técnica. E não apenas a rimar, mas também a metrificar os meus versos, a enfiar neles toda a porção de filosofia e de engate que me assistia aos doze anos.

Foi o tempo em que me fiz poeta. E como todas as grandes decisões, tenho de o confessar por respeito à verdade, apenas por uma sucessão de improváveis peripécias, como as que descrevi.

ISTO É POESIA

André Kertész(Mauna Kea, Kmuela (Honolu), 1974)
Foto: André Kertész

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Quantas vezes me apeteceu escrever um poema e não pude! Quantas vezes a rotina da profissão se entrepôs entre mim e o silêncio, entre mim e o caderno! Quantas vezes algo semelhante a uma fome veio roer-me por dentro, angustiar-me, espicaçar-me e (sem que o soubesse porquê, sem que pudesse saciá-la) obcecar-me como a voz de um chamamento. É dessa fome que eu falo, da poesia, do prazer daqueles instantes de invenção no tampo da secretária, do rumorejar da caneta de aparo deslizando sobre a folha. Enternecimento este comum aos que escrevem, aos poetas sobretudo…

A poesia imita de muito perto os batimentos e o ritmo da própria vida. Compreendê-la significa em grande medida compreender a natureza do homem, o mistério do mundo, a ontologia das coisas. Alguém há muito a cotejou com um diamante, um que fosse apenas reconhecível pela sensibilidade e pelo talento dos que por hábito delapidam diamantes iguais.

Por outro lado, a poesia é árdua, muito pouco definível, complexa de mais para que possa ser um objeto ensinável ou explicável, ou consumível! Não só mas também por isso verificamos a fraca relevância do texto poético no mercado editorial, onde os grandes romances, ensaios e reportagens (para não falar de outros) passam das montras às mãos do público leitor como navios descomunais, num oceano onde somente um ou outro livro de poesia incontornável granjeia medir forças.

Também não é isso o mais importante. Quem se devota a esta arte, quem a escreve, quem a lê, quem a edita, apega-se menos ao corrupio dos mercados do que à ebulição surpreendente e única e avassaladora das palavras. A poesia é “isto”, o requinte de um dizer na corda bamba, para alguns não-entendimento, para outros a linguagem (ou a língua) que melhor exprime as pulsões do homem, a que oferece o campo mais vasto de visão e descoberta.

Sejam bem-vindos os que não desistiram, os que não desistem, de amar a soberana disciplina do pouco, da palavra olhada sem rodeios, da mensagem legível na mais pura nudez do mecanismo triangular da boca, da cabeça e do coração.

(Prefácio meu à antologia Isto é Poesia, Editora Labirinto, 2004)