Enquanto não poisava completamente a noite, ele ia passando em revista as notas de agenda. Era cada vez mais complicado tê-las organizadas na memória. O jantar, no fogão, dava mostras de estar quase pronto. No chuveiro terminara o som da água a correr. Daí a nada ela viria juntar-se-lhe.
O tempo do desejo acabara irremediavelmente. Agora, só uma força irresistível, cheia de hipocrisia os colava um ao outro.
Comeram em silêncio. Um silêncio mastigado, interrompido, tilintante. Ela levantou-se e retirou do frigorífico um refrigerante. Quis saber se ele beberia sumo ou vinho ou água.
Às vezes há no modo de perguntar um ódio a que se pode responder apenas com um ódio ainda maior. Quis responder, preferiu não beber coisa nenhuma.
Terminada a refeição, ele levantou-se e trouxe um cestinho com fruta. Descascou uma laranja para si, mas quis dar-lha. Ela recusou. Precisava de telefonar, coisa rápida. Os cafés tirava-os a seguir. Algo lhe vinha ao fundo da alma como uma expectativa, uma adivinhação, um ressentimento.
Limpou tudo, arrumou a mesa, guardou o pão sobrante, devolveu os frascos do ketchup e da mostarda ao frigorífico, varreu a cozinha, passou a esfregona sobre as tijoleiras brancas. Verificou o balde do lixo, achou ser altura de lhe trocar o saco. Desceu à rua, depositou o saco num lugar próprio e subiu. Nessa altura, ela falava ainda, mais baixo, quase abafando a voz.
Ele quis fumar. Já a noite derrubara tudo. Já a cidade afundava no seu torpor de animal morrente. Às vezes o ódio é mais do que um estado. É um convencimento. Digamos, uma salvação.
Gosto de conversar contigo. Gosto da tua voz, que é meiga e cheia. Gosto dos teus olhos, caindo e recaindo sobre os meus, tão devagar como duas pedras em câmara lenta. Gosto das tuas palavras. Do teu perfume. Do modo como apanhas o cabelo e penteias as farripas tresmalhadas. Às vezes nem te oiço. Sinto apenas a percussão doce das frases a massajar-me a cabeça. E (nunca to disse) apetece-me mergulhar no teu colo, deixar que me embales, adormecer a teu lado.
A vida é tão igual a si própria. Somos todos tão escravos dela! Tão incapazes de sentir. Como se pudéssemos ter dentro de nós cabos e fios e fusíveis, em vez de sentimentos. E, por isso, um dia disse isto.
– Um dia acabamos morrendo sem termos sequer começado a viver!
E tu sorriste. Era um dia de final de outono. E tu passaste a mão pelos cabelos. Era uma daquelas tardes em que o nevoeiro parece chegar de longe e atravessar a janela e engolir tudo em nós e ao redor de nós. E tu disseste.
– Acho que tens andado distraído, Xavier! Tens mesmo de abrir os olhos…
E o nevoeiro vinha de longe, de fora, do fundo. Passava pela janela como um exército marchando, como uma boca devorando a paisagem, como um buraco absorvendo os pensamentos. E eu senti-me tão mole, tão aluído, tão triste que não encontrei palavras e foram elas que se disseram sozinhas.
– Não ando distraído. Já não consigo é distrair-me. Já vivi tudo. Já sei tudo. Já adivinho tudo. A vida é a porra de uma repetição! Nem um milagre me podia salvar agora.
E tu sorriste. E o teu sorriso era um astro frio, alumiando a anos-luz. Tocaste-me o rosto, deixaste os olhos cair, soar no imo do poço, afagaste-me o cabelo, meneaste a cabeça, disseste.
– Estás doente. Precisas de curar-te. Essa tristeza é uma sombra maldita, a pesar toneladas de um peso morto e sem justificação. És tão bonito, pá! E tão infeliz!
E eu sinto. Não tenho medo de sentir. De experimentar de uma ponta à outra os impulsos elétricos do medo e da surpresa e da desilusão. Nada receio. É como uma vertigem. É como fechar os olhos e ir. Já vivi tanto. E, no entanto, os teus olhos poisaram em mim e puxaram-me. Como um magnetismo sem explicação, eles alavancaram os meus olhos, fizeram-me agarrar uma réstia de luz e caminhar.
– Gosto de conversar contigo!
E o teu abraço é desde então uma casa. Nunca na vida tive tanto medo. O teu abraço apertado faz-me sentir desde então uma criança renascente. E eu sinto uma mistura de tortura e de prazer quando me tocas e o teu perfume e a tua voz e os teus olhos aquecem as minhas tardes enevoadas.
– Tens de abrir esses olhinhos!
E dou comigo a pensar nos teus cabelos. E a ouvir pela primeira vez as tuas palavras antigas. E a sair de um túnel terrível. E a escutar outra vez o silêncio das ervas e o rumor das coisas que havia esquecido nos meus olhos. E dou pela paisagem descobrindo-se, desembaciando-se, desimpedindo-se. E talvez me apeteça dizer-te palavras novas, enxutas, belas como grãos de cereal e puras como o toque das unhas na pele, como as tuas mãos finas e firmes.
– Não ando distraído!
E tu, abraçando-me, acalentando-me como um sol inesperadamente crescido entre as nuvens, tu beijando-me como um milagre, tu sorrindo como um vidro amplo e sem mácula, completas a última frase. Que trago comigo. Que levarei comigo.
No fim acabamos sempre nisto, fogo roendo as entranhas, labaredas encarquilhando a alma, combustão pulverizando o silêncio… Tu sabes como é fácil um incêndio deflagrar, contaminar tudo, espalhar-se… Basta ver como dançam as chamas, ver como são levianas, enganadoras… E não falo das chamas-chamas, físicas, químicas, comburentes. Falo de amor. Falo da desilusão! Tu sabes, do amor! Labaredas roendo as entranhas, chamuscando, devastando, consumindo, ardendo mais alto, reduzindo tudo a pó!
Durante anos olhei para nós sem suspeita. Fomos felizes, casados, comprometidos! Partilhámos corredores na mesma empresa, cafés, conversas, confidências… Depois dividimos piropos, promessas, alianças. Trocámos tudo pela mesma casa, pela mesma cama, pelo mesmo sonho. Tudo muito sincero (nada na minha vida foi tão sincero como as coisas que fiz e quis ter feito contigo): viajámos juntos, cozinhámos juntos, comentámos juntos o filme com o Leonardo Dicaprio e a Kate Winslet, fizemos amor juntos (não, não é incomum um casal fazer amor em separado!), juntos fumámos muitas vezes o último cigarro do Marlboro comprado só para as ocasiões especiais (porque, felizmente, nem eu nem tu fumávamos fora dessas ocasiões), juntos revimos a vida, refizemos promessas esboroadas, renascemos (com gel de banho Dove e quantidades massivas de uma ternura nova e desconhecida) debaixo do mesmo chuveiro!
No fim de contas isso!
Isso, a razão por que anda o mundo como anda (aos trambolhões, diga-se). Isso, o substrato filosófico de teses de vinte volumes. O epistema que pesa nos óculos descaídos do estudante de Física e o obriga a examinar pela milionésima vez ao microscópio ultrassofisticado. Isso, o que fervilha na testosterona e o que faz mexer as cotações da bolsa. Isso que é o suprassumo da coexistência social, ou (como diria o respeitadíssimo doutor Sigmund Freud), o dínamo da espécie! Isso! O amor, caramba!
No fim acabamos sempre a pesá-lo numa balança de braços! Sabes do que falo. Falo do amor, do rumo inexplicável das coisas, porque as coisas seguem sempre rumos inexplicáveis ‒ digamos que elas fogem ao nosso controlo ou que reagem ao nosso controlo! As coisas são como são e o amor é como o bom tempo ‒ um dia farta-se do sol! Foi assim que as peúgas sujas no tapete (sabes bem que eu ia arrumá-las se me desses tempo) formaram um cataclismo; foi assim que os teus berros se tornaram demasiado agudos, se tornaram agulhas insuportáveis (avisei várias vezes que não me falasses nesse tom); foi assim que a tua mãe ganhou ares de bruxa, sempre com palpites, sempre a resmungar, sempre a meter a colherada. E tu conheces-me, sabes que não sou homem de levar um estalo sem reagir com um murro (falo em sentido figurado, tu conheces-me, sabes que sou um figurão); foi assim que as coisas começaram a perder o sentido… Houve uma ocasião em que deitei fora um maço de tabaco, sem ter sido encetado sequer!
As coisas seguem sempre rumos inexplicáveis. E tu bem vês: o casamento é como um frango da guia. Sabe bem, mas quando se dá por ela a felicidade é um prato repleto de ossos. Podemos fazê-lo acompanhar de arroz e batatas em palito, mas o gozo acaba depressa! Quero dizer, acabámos nós um de cada lado, eu a dizer mal de ti, tu de mão dada com outro fulano… Primeiro cheguei a julgar que te matava. Depois que morria! Cheguei a julgar que fosse ciúme. Ou remorso. Ou apenas mau perder… Mas não! Aquilo era só a impressão de tempo perdido, de apatia, de descrença na humanidade. Aquilo era só o meu quero-lá-saber! Se tivesse a hipótese de apagar tudo, como se apaga as linhas de giz numa ardósia, tenho a certeza de que o fazia! Sem pestanejar, juro-to! Não por ressentimento. Apenas por comodidade. Só para evitar qualquer possibilidade de me misturar a ti quando estou a lambuzar-me um hambúrguer e te vejo a passear aos sábados, no Centro Comercial, com um tipo-cara-de-kokeshi. Apenas para impedir estas labaredas a estalar no estômago cada vez que me esfrego com Dove no duche e sinto a falta do teu corpo colado ao meu. Unicamente para não ter de ouvir a tua voz sempre que preciso de preparar uma mala de viagem e te imagino ainda a azucrinar-me. Somente para não ficar arrependido cada vez que faço uma pausa para café lá no escritório e não me apetece tomá-lo com nenhuma das miúdas novas e me ponho a espiar-te, de saia curta (cada vez mais subida), sorriso enorme, a tagarelar no bufete com o sobrinho do patrão, o snob amaricado com quem andas agora…
Juro que não é mau perder. Nem remorso. Nem ciúme!
De maneira que o lume de que falo me irrita. Irrita-me lembrar de novo as coisas que foram sólidas e um dia, sem mais nem quê, afundaram num aparato de transatlântico partido em dois, nos icebergues do Mar do Norte. Irritam-me todas as metáforas de fogo e de gelo em que pendulamos, em que cirandamos nisto do amor, como se fôssemos macacos pendurados nas grades de uma grande jaula e essa jaula fosse o destino! E tu sabes como detesto o destino! Ou a ideia de haver um destino!
Sempre imaginei o dia em que, velhos ambos, seguíssemos juntos por uma alameda de árvores em direção ao paraíso. Talvez me entendas (acredito que no fundo me entendes), sempre imaginei um jardim enorme, e nós os dois, de mão dada, amparando-nos um ao outro, como dois troncos velhos e inseparáveis. Sempre imaginei que, apesar de tudo, seríamos os dois no fim…
Mas afinal dou por mim a cismar nas chamas da lareira, tu agarrada a outro, eu a cocar o teto, tu a imaginar-te feliz, eu a escrever crónicas idiotas, tu a tomar conta de ti e a tomar conta dele… Já notaste a leviandade das chamas! Vê só como são umas ardilosas! Basta ver como fingem dormir num leito sossegado e dão, num instante, em explodir, em varrer tudo ao redor, em reduzir a um farrapo a felicidade eterna! Dou por mim a cismar nas chamas, a repetir baixinho versos de Garrett. O divórcio tem-me feito sentir uma dor esquisita. Uma pontada, uma dilaceração, um mal-estar que não sei o que é, mas que não é ciúme, nem remorso, nem (juro que não é) mau perder…
Dou por mim a cismar nas chamas, «Ai! não te amo, não; e só te quero / De um querer bruto e fero…», fogo roendo as entranhas, uma dor nova ‒ digo-te ‒, como encontrar em cima da mesa um prato cheio de ossos, e ter fome, muita fome, e não apetecer nada…
Ao entrar no aeroporto de Arlanda, de regresso a Paris, pude constatar uma vez mais o primoroso sistema de organização de transportes sueco. Em muita da sinalética espacial lê-se a palavra hub, que significa grosso modo coração de uma rede de comunicações, viárias, aéreas, marítimas, mas no caso também digitais, cibernéticas, por satélite. Os suecos, como todos os povos do norte da Europa, viajam muito, viajam depressa, viajam com conforto e dentro dos horários. Nada que me tivesse apanhado de surpresa. Mas sobretudo viajam discretamente, desatentos aos parceiros de banco ou de carruagem. Usam ostensivos e poderosos headphones que lhes concedem o dom do ensimesmamento ou, a meus olhos talvez, o terrível autismo que é a capacidade de ninguém trocar palavra com ninguém durante, digamos, uma viagem de duas horas…
Quando comentei com Ingrid esta caraterística tão luterana, espantou-se que ficasse muito admirado por “ser assim na Suécia”, porque julgava que era assim em todo o mundo civilizado. E não via nesse individualismo um sinal de frieza, antes de emancipação.
— Desde o período da fome, ou talvez mesmo antes, ninguém se mete na vida de ninguém. Não toleramos sequer a ideia de que alguém se intrometer na nossa vida, ou muito menos que nós nos intrometamos na vida de alguém…
— Mas, e se alguém, por exemplo, precisar de uma palavra amiga?
— Então, deve marcar uma consulta no médico… percebes?
Ocorreu-me que num país como Portugal esta convicção pudesse ser interpretada como um feroz sinal dos tempos modernos, muito distante daqueles dias em que era possível assistir a uma animada conversa entre vizinhas à varanda, ou a um ternurento oaristo junto a um carro de feno. Mas ocorreu-me também que em Lisboa, numa estação de metro, nada é diferente do que acabo de assistir neste país belo e frio.
— Ingrid, sou de uma região onde ainda é possível despoletar um colóquio animado com um perfeito desconhecido, a propósito do tempo que faz, sobre uma notícia lida em voz alta no jornal, ou por causa de um gato que sai disparado do interior de um talho com um pedaço de fiambre na boca…
Ingrid ri, ri com vontade do meu gato sorrateiro afiambrando a sua oportunidade, como um desses vadios que rondam os cais de todas as cidades de mar. Mas presume anacrónica, para não dizer improvável, uma vida urbana capaz de reunir ao mesmo tempo universidades, hospitais, bares, cinemas, teatros ou museus e gente que sem mais nem quê se volta na cadeira de café e pede ao senhor da mesa ao lado para tomar parte num coro de protesto contra o governo ou contra o árbitro de futebol tendencioso…
— Garanto-te que no Norte de Portugal não é nada estranho que duas pessoas, que nunca se viram em toda as suas vidas, nem se conhecem de lado nenhum, possam entabular uma saudável cavaqueira sobre o assunto mais inesperado e mais banal que possas imaginar. Chegarão por certo, e no andamento dessa conversa, a partilhar intimidades…
— Não posso acreditar!
E di-lo num inglês que traduzo mal, porque deveria antes verter num N Ã O P O S S O A C R E- D I T A R!
Explico o significado afetivo da palavra cavaqueira, intraduzível como tantas palavras que, retendo alguma semelhança com outras palavras, não significam exatamente o mesmo. E ao detalhá-lo com pormenor, com recurso ao folclore bairrista de uma cidade como Porto, Braga ou Guimarães, dou-me conta da espécie de criaturas proto-históricas com quem me imagina esta bela loira de olhos azuis convivendo diariamente, e que agora me ouve desfiar peripécias da minha terra como extraídas de um alfarrábio das Mil e Uma Noites…
— Compreendo que as coisas aqui tenham evoluído tremendamente. Basta ler os contos de Selma Lagerlöf ou Stig Dagerman, ambos nascidos na província, para percebermos o avanço da secularização na Suécia, da capital para a periferia…
— Secularização?
— Sim, secularização de uma sociedade, que era ainda há pouco mais de um século profundamente dependente da agricultura e das tradições… Olha, ainda não há muito li as memórias de Tomas Tranströmer e ele di-lo exatamente nesses termos…
— Bem, julgo que não teria esta conversa com o Lasse ou com muitas outras pessoas que conheça, João. Embora respeite a tua paixão pelo medievalismo, não creio que a Suécia se tenha propriamente esvaziado de espiritualidade… Ou de religião… Pelo contrário, somos um país cheio de múltiplas crenças em pacífica convivência…
Sim, sim, sim! Agrada-me discutir factos, apreender ideias, pôr à prova a verdade das minhas próprias convicções. Ingrid, uma jovem professora de Malmö em trânsito por várias cidades da Escandinávia, seduz-me profundamente com esse seu perfume de saber nórdico, que sempre se apõe e nunca se impõe, igual a um avô, ou a um amigo, que nos ralha sem jamais levantar a voz. Mas preocupa-me que esta geração de europeus, ofuscados pele denominador comum da americanização (outra forte palavra esgrimida entre nós), não seja capaz de albergar o antigo, o autêntico, o tradicional, nem esteja predisposta a preservá-lo das múltiplas invasões que o ameaçam…
— Falas dos chineses, dos islâmicos, dos indianos ou dos africanos?
— Ingrid, falo somente daquilo que não é capaz de dialogar connosco! Daquilo que invade a Europa e não a respeita!
— Dos chineses, dos islâmicos, dos indianos e dos africanos, portanto?
— Penso que entre eles haverá quem possa significar uma ameaça à Europa, sobretudo os extremistas, como se tem visto! Mas prefiro não designar grupos, porque sabemos que isso é uma questão complexa e provavelmente mal delimitada…
— João (e delicia-me o esforço de ditongar a palavra Joau), existe preconceito e é esse preconceito a verdadeira ameaça àquilo que chamas de “integridade europeia”. Se é que há uma “integridade europeia”.
— Corro o risco de ser mal compreendido…
— Porque o Breivik fez o que um dos teus terroristas não foi capaz, certo?
Sinto-me cansado… Viajamos para o Parque Nacional de Dalby, num Volvo de última geração, devidamente credenciado por uma entidade independente, a quem cabe a responsabilidade de zelar pelo bom funcionamento de um sistema que preconiza a segurança como prioridade absoluta. E, no entanto, sinto que é esta segurança que não deixa ver ameaças ideológicas e, decerto também económicas (que Diabo, como não falar delas, se vivo num país cheio de dívidas), espreitando já dos nichos dos bairros operários das maiores cidades de uma das melhores nações do mundo. Ou começo a duvidar de uma qualquer minha paranoia (e quando digo minha, digo nossa, do sul).
— Admito que precisamos de prestar algum cuidado em relação a grupos de estrangeiros muito específicos… Mas a alma deste país é a tolerância. E a tolerância é uma conquista que não se pode desperdiçar de qualquer maneira… Compreendes?
Compreendo, evidentemente. Mas eu não disse outra coisa, nem penso noutra coisa desde que iniciámos esta curta viagem para sul. Pelo que volto atrás para clarificar, para impedir males-entendidos.
— Sou profunda e sinceramente aberto à convivência com outras culturas, aliás muitas vezes desafiei a minha gente a respeitar a diferença e calar anedotas e comentários racistas… Mas não me sinto tranquilo neste momento, em que pessoas vindas de fora não respeitam as leis estabelecidas por séculos de luta e apuramento ideológico, por constituições soberanas e por sã convivência das suas comunidades.
— Falas, por exemplo, daqueles que obedecem somente à xaria?
— Sim, Ingrid. Esses, por exemplo!
A minha condutora fica pensativa, faz o volante deslizar suavemente ora para a esquerda ora para a direita, acompanhando as curvas e contracurvas de uma estrada decalcada de algum anúncio publicitário. A sensação de conforto contagia, a cada quilómetro percorrido faz-nos desejar pertencer a ela para sempre, como não tivéssemos nascido senão para obtê-la e fruí-la e defendê-la com unhas e dentes. Mas isso porque nasci em Portugal e não na província de Skåne… E ao pensá-lo, enquanto os olhos de Ingrid se concentram na condução, dou-me conta da terrível cortina que principia a remover-se diante os meus próprios olhos. Porque esse conforto que me embriaga, faz-me divisar por momentos a aspiração que, sem dúvida (e outra não podia ser), divide e sempre dividiu todos os povos que existem e existiram sobre a Terra.
— Penso que a posse do conforto demarca insanavelmente aqueles que toleram daqueles que se rebelam e extremam posições…
— Desculpa, amigo, não percebi!
— No fundo no fundo, o que distingue as civilizações é a posse do conforto ou a agonia de ter de lutar por ele. Os que sempre conheceram um conforto, igual por exemplo ao que sinto aqui dentro do teu carro, não precisam de lutar em nome de nada, nem de Deus, nem de uma qualquer ideologia. Porque o conforto é o máximo a que podem aspirar na sua existência humana. Já o encontraram. Ao passo que todos os outros, os que não podem aspirar a mais do que uma desforra divina, ou a uma desforra bélica, ou a uma desforra qualquer, esses nunca poderão transigir com os afortunados. É uma questão tão simples, Ingrid…
— Tão d a r w i n i a n a, queres tu dizer!
— Exatamente!
Suponho que obtive algum alívio, porque as argumentações improvisadas me deixam sempre prostrado, a meio caminho do que penso e do que gostaria de poder dizer. Mais ou menos como alguém que tivesse penetrado na escuridão de uma mina até meio do seu percurso e não sabe se deve regressar ao princípio, ou se pelo contrário deve avançar até ao fim…
Suponho, também, que no final de cada conversa me fica este desconforto. Um desconforto irritante, porventura análogo ao que sentiram os amantes da ciência após o descrédito das leis deterministas e o advento de Einstein ou Heisenberg. Falo do velho catecismo das minhas convicções, das velhas ideias feitas, que repetidas em voz alta se começam a parecer estúpidas, serôdias e incompreensíveis. E o desconforto é o resultado de duvidarmos agora de tudo.
— Achas-me uma pessoa provinciana, não é verdade, Ingrid?
— Não, amigo. Penso que és uma pessoa atenta. Talvez devêssemos estar mais atentos a tudo o que nos rodeia… seguir-te o exemplo!
— O exemplo?
— Sim. Imitar essa tua atitude inquiridora, ou inconformista!
Fico calado, observando ao largo o Atlântico, o mesmo Atlântico que conheço desde bebé, estranhando quiçá ver-me tão longe de casa. Além, as ruínas de um antigo forte, tão semelhante aos escombros que adornam a costa portuguesa, também ela permeável a milénios de itinerância e invasões. Acontece-me muitas vezes: preciso de tempo para digerir e aceitar o que é ainda provisório, rebelde e novo. Não tão novo que o não devesse ter pensado antes. Ter pensado, por exemplo, nos gloriosos séculos de escravatura infligidos por um império que nos encheu de vaidade e de igrejas. Porque tudo é relativo e cruel, quando visto e pensado à luz soberana de um ângulo diferente… E é como se prova haver entendimentos terrivelmente dissonantes nas nossas palavras.
Ingrid estaciona o carro. Sorri complacente a tudo o que em vinte minutos de caminho se disse e contradisse. Mas já as palavras voam para o limiar do esquecimento. Uma fila de visitantes aguarda a compra do ingresso, famílias inteiras câmaras a tiracolo, disfrutando do sol macio de um verão curto mas vívido e limpo. Penso nos poemas de Lindqvist, nas belas descrições que aqui, agora, se tornam carne na minha própria carne.
Agora, um mês depois, ao entrar no aeroporto de Arlanda, de regresso a Paris, pude constatar uma vez mais o primoroso contraste dos suecos com os outros povos. Seguros da sua segurança, respeitam-na em vez de a defenderem histericamente como os americanos, ou de a contestarem violentamente como os latinos, por exemplo. E tudo isso é uma impressão difícil de articular em pensamento, ou sequer em palavras.
Julgo que passamos a vida a influenciar-nos reciprocamente, sem podermos jamais encontrar o norte magnético de alguma verdade. Se fosse possível existir alguma.
Na penumbra do salão, o rosto procurado regressa do meio das sombras. Não tens mais de vinte anos, tempo de juventude destilado na minha própria alma desavinda. É por ti que venho, hoje, ontem, noutras noites. Rosto de quem sabe ainda sonhar, de quem pode existir a salvo das rodas dentadas do relógio maldito. Rosto belo, em cuja pele deslizo dedos de amor, rosto insubmisso de mulher dançarina, rosto de puro erotismo e perdição.
Em nenhuma outra boca me apetece tanto o travo de um cohiba, o sabor dividido de um scotch, a negra reminiscência do café ou a palavra quero. Contigo trouxeste o cálido sangue argentino, o tango maravilhoso, que ao mesmo tempo é linguagem e ausência de linguagem, inexatidão de movimentos e o perfeito instante em que dois corpos se batem num duelo de sedução.
Vieste no momento em que precisava de ti. Aconteceste quando não esperava que pudesse renascer dos meus ossos de cinza. Trouxeste o fulgor de uma existência não tocável pelas misérias de um tempo e de um espaço concretos. Mais longe, ou mais fundo do que todas as outras mulheres, tu soubeste tocar sem medo a pedra fria do meu coração. Comigo te cruzaste, algures, nesta redonda casa onde tudo a todos é dado a desejar e a perder: tu disseste que ficasse e eu fiquei.
Por isso, por ti, vim todas as noites, hoje, ontem, sempre. És bela e não apenas pela firmeza da cintura, pela doce comissura dos lábios, pelo alarde de perfume que te atravessa as formas ou pelo delicado rodar das unhas. Conheço-te a admiração pela música, pela poesia (de Borges, de Neruda, de Lorca, de Víctor Jara; não de Pessoa: Eso lo detesto yo, como a todos los eunucos!), pelo vinho francês, pelos charutos cubanos, pelos pastéis de Belém, pela absoluta liberdade de todos os sentimentos, em ti nascidos e por nascer.
Disseste:
No tengo nombre, ni edad! Tengo sueños! Tuya seré mientras mío seas tú!
Nunca verdadeiramente te possuí, nem jamais em rigor poderia exercer sobre ti a posse. Pertences a uma espécie de seres que nos marcam com ferros, como para sublinhar o privilégio ou a desgraça de um dia havermos merecido a sua paixão. Haverá, quando muito, uma em dez mil vidas oportunidade igual de ser-se personagem numa tal história.
Diante dos espelhos, sob o lustre gigante (que mais se imagina pertencer a um grande salão vienense), a dança incorpora-me nos subúrbios de um outro tempo: solitário, o bandónion cresce; rostos anónimos, incontáveis, observam-nos da sombra; a canção é de uma tristeza esmagadora, um sismo de Piazzolla; tu rastejas a meus pés, imploras atenção, num menear desolado de quadris; sou uma criatura distante, o elegantemente panamá descaído, a barba por fazer, o casaco pendurado ao ombro num disfarce de másculo desdém, fato escuro, numa silhueta rio-platense que te faz chorar (Tan guapo, mi amor! Tan lindo!), tudo numa absoluta ironia de papéis trocados.
Perguntei:
O que farei um dia quando, milímetro por milímetro, me consumir este incêndio de imprevistas labaredas, se deixar de merecer o teu amor?
Disseste:
Pues, pase lo que pase, jamás te olvidaré, cariño!
Na penumbra do quarto, onde somente dedos frágeis de luz fissuram a janela, contemplo uma vez mais o teu corpo vencido e vencedor…
Haverá na vida de um homem, quando muito, uma sorte destas em mil, em cem mil, num milhão.
Porém amar e ser-se amado por uma mulher tão bela não é felicidade, mas angústia; incerteza terrível quanto ao destino, quanto à volúvel benquerença dos deuses… E, por isso, amar-te e ser-se amado por ti enlouqueceu-me os olhos e a boca. E tu que me salvaste, és tu que aos poucos agora me perdes, sem que disso tenhas consciência… ou culpa!
Em silêncio, como cedendo ao meu próprio e voluntário abismo, ao tango que me ensinaste, como para garantir a minha memória na tua memória, deixo-te assim mesmo, dormindo; deixo-te assim mesma, como sempre acontece nas frágeis aparições da vida, refém dos teus sonhos incontáveis, sem idade ou nome…