Saltar para o conteúdo

João Ricardo Lopes

  • Início
  • Biografia
  • Livros
    • Em Nome da Luz
    • Eutrapelia
    • O Moscardo e Outras Histórias
    • Reflexões à Boca de Cena / Onstage Reflections
    • Dos Maus e Bons Pecados
    • Dias Desiguais
    • Contra o Esquecimento das Mãos
    • Além do Dia Hoje
    • A Pedra Que Chora Como Palavras
  • Crítica
  • Rede
Posted on 01.09.201517.11.2025 por João Ricardo Lopes

Quando foi a última vez que assististe a um nascer do sol?

Fotografia de Hide Obara

.

«Quando foi a última vez que assististe a um nascer do sol?» perguntaste. Sabias que responderia com uma negativa. «Não me lembro», «Não faço a mínima ideia», «Meu caro, não sei dizer». Adquiriste, sem que isso me penalizasse por aí além, a expressão triunfante de um retor. «Mas, como podes tu escrever sobre coisas que não vives?», «Que eventualmente não conheces?», «Que desperdiças?».

E dando um jeito ao corpo, corrigindo os joelhos contra o balcão, escorropichando a aguardente, começaste a explicar.

«O nascer do sol. Não é o que pensas. Não é só a luz que vem. Não, meu amigo, o nascer do sol é muito mais do que um show-off da poesia e dos romances cor-de-rosa. Não é só a luz que acende o firmamento. Nem a hora em que os amantes se despedem. Nem a promessa do amor eterno. Nem o instante de quase silêncio em que as palavras se limpam com o ácido do remorso.»

Nada tinhas contra os poetas, fizeste saber. Eles falam da alba, do dilúculo, da aurora dos dedos rosados. «Isso é muito bonito, lá isso é».

«O nascer do sol é um milagre a que me habituei. Levantar cedo para cuidar de uma pequena quinta, como a minha, é mais do que suficiente para aprender os segredos desse armistício entre o dia e a noite. Tudo paira numa espécie de transe. Como quando nos é dada a inesperada chance de começarmos tudo de novo.»

Repliquei que isso era poesia. Talvez a excelente última frase de um romance cor-de-rosa. Juntaste os lábios. Como se me quisesses mandar às favas. O que quer que pensasses vinha cada vez de mais longe.

«O cheiro da terra, por exemplo, é maravilhoso… Um sem-número de ervas e de árvores espreguiçando-se até no lusco-fusco até ao cosmos. Nunca as plantas cheiram tão bem como à noitinha ou de manhãzinha… De um momento para o outro, é a passarada numa algazarra louca sobre os telhados e os jardins… Diz-me tu se conheces alegria mais genuína do que a dos pássaros… O nascer do sol é muito mais do que se pensa… Muito mais do que o lento despertar de cada coisa… De cada roda que volta a chiar na rua, de cada janela que se abre, de cada cabeça entorpecida que espreita por ela… É como se em cada em cada objeto, em cada animal, em cada pessoa, houvesse subitamente um riscar de fósforo… Como se todos e tudo tomássemos parte na convulsão do tempo e do espaço… Não sei explicar bem, pá!…»

Bebias o terceiro ou o quarto copo. Bebias demais. E, no entanto, ao contrário de mim, as palavras pareciam soltar-se-te e com elas os pensamentos. Devia estar tão sério que me deste uma cotovelada.

«O teu mal é andares distraído». Devo ter feito uma careta. Julgo tê-la desenhado.  Fi-la de certeza. Prosseguiste.

«Estou convencido que, tal como os lugares se transfiguram e deixam de pertencer-nos, também os nossos gestos precisam de ser reaprendidos… No que me diz respeito, sou agora incapaz de escrever uma frase. Perco-me no meio das palavras. Isto apesar de admirar o efeito que têm sobre nós. A minha vénia, a quem o tem, o talento de as vergar…»

E sorriste.

«Volto ao princípio… Tu escreves… Mas, e desculpe lá a observação, viverás o suficiente para escrever?»

Não era má a aguardente de medronho. Dei um gole mais. Acabei o segundo copo. Reparei que a taberna estava a encher-se de clientes. Pescadores. Lavradores. Operários das fábricas ao redor. Senti fome. Cansaço. Irritação. Não respondi.

«A vida, essa coisa que nos passa por dentro das veias e ao mesmo tempo sobre a pele, num leve torpor de energia, dor, prazer, sei lá…, a vida exige-nos esse ritual…»

O bom cheiro do mar, como a vaga memória de um tempo a que não fui capaz de aceder, tornou-se veemente. Vinha pela porta um aroma de salsugem, limos, sargaço, de iodo, de rocha e areia húmida, de pó, de combustível varreram-me. Estava frio.

«Faz-me o favor de prometer que vais passar a assistir ao nascer do sol… Ao menos uma vez por mês… Ao menos uma vez em cada estação… Verás como todas as coisas passarão a fazer sentido…»

Saí. Estuguei o passo. O cais ficava ali perto. Nuvens de um cinzento azul, ou púrpura, talvez alaranjadas, de um leve rosado, cintavam o horizonte. O sol, como o combinado, não tardaria.

.

Redes sociais

  • Partilhar
  • Clique para partilhar no WhatsApp (Abre numa nova janela) WhatsApp
  • Clique para partilhar no LinkedIn (Abre numa nova janela) LinkedIn
  • Clique para partilhar no Facebook (Abre numa nova janela) Facebook
  • Click to share on X (Abre numa nova janela) X
  • Carregue aqui para enviar por email a um amigo (Abre numa nova janela) E-mail
  • Carregue aqui para imprimir (Abre numa nova janela) Imprimir

Relacionado

CategoriasCrónicas, Escritor João Ricardo Lopes, Escritor Português, literatura portuguesa Etiquetascheiro do mar, colóquio, Crónica de João Ricardo Lopes, diálogo, espírito, luz, mar, mindfulness, nascer do dia, nascer do sol, natureza, Novas crónicas da literatura portuguesa, paz, silêncio, solidão, sossego, tranquilidade, zen

Navegação de artigos

Artigo anteriorAnterior Do velho hábito de cuidar dos velhos
Artigo seguinteAvançar Pobrezinhos velhinhos

Traduzir

Seja solidário. Assine esta petição, por favor!

Publicações mais acessadas

  • Um mendigo
    Um mendigo
  • Torben Bjørnsen
    Torben Bjørnsen
  • Dedicado a um avô
    Dedicado a um avô
  • As mãos
    As mãos
  • Cacos
    Cacos
  • No velório de Michael Mahon
    No velório de Michael Mahon
  • Algo aconteceu
    Algo aconteceu

Arquivos

web
analytics
  • WordPress
  • YouTube
  • Vimeo
  • SoundCloud
  • WordPress
Follow João Ricardo Lopes on WordPress.com

web
analytics
  • Início
  • Biografia
  • Livros
  • Crítica
  • Rede
Create a website or blog at WordPress.com
  • Subscrever Subscrito
    • João Ricardo Lopes
    • Junte-se a 68 outros subscritores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • João Ricardo Lopes
    • Subscrever Subscrito
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Copy shortlink
    • Denunciar este conteúdo
    • View post in Reader
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...