Samwell Lodge

Mehmet A.
Fotografia de Mehmet A.

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Quando entrou na igreja do Sacré-Cœur, em Paris, na tarde de 21 de abril de 2011, Quinta-Feira Santa, Samwell Lodge, empresário norte-americano, oriundo de Orlando, sentiu um aperto no peito. Possuía de algum modo a certeza de ter vivido já aquele momento: sabia que o Cristo dourado, sob a abóboda azul, lhe roubaria todo o amor; sabia que o coro das freiras beneditinas, durante o ofício religioso, o transtornaria até ao fundo da alma; sabia que a cerimónia do lava-pés iria despertar em si uma vontade incomensurável de lavar-se de toda a sujidade.

Com efeito, a vida tornara-se-lhe insuportavelmente cansativa e vulgar. Todas as ambições, que alimentou durante a juventude, pareciam-lhe agora profundamente ridículas. Todas as conquistas, sobretudo as mais difíceis, pareciam subsumir-se num desastroso sentimento de tristeza e de banalidade. Disto se deu conta certa noite, quando ao regressar a casa ouviu na rádio Brian Ferry cantar My only love e lhe pareceram escritas para si as palavras da canção:

Does it seem so funny
For a fool to cry?
Do you know the
Meaning of goodbye?

Na primavera de 2011 viajou para a Europa, à procura talvez do que procura um fugitivo: de um antro, de uma qualquer espécie de abrigo, de um cisma, de um sinal, de um fim, de uma conversão…

Enquanto, nessa tarde de abril, assistia à missa, recordou as três mulheres de quem se divorciara, os filhos que o não amavam, dos pais anciãos com quem não falava havia quase um quarto de século. Pela cabeça passaram-lhe os detestados colegas de negócios, as falácias em que persistia ao cabo de tantos anos, os golpes de mestre e os de misericórdia. Tanta gente, tanto ódio, tanto tudo!

Tarde quente essa. Tinha a certeza de que passara já por aquele instante. Nesta ou noutra vida, definitivamente não era só um déjà-vu, nem um sonho coincidente com a realidade. Acicatava-o a dolorosa convicção de que toda a sua existência afunilava desde sempre para ali e para o que dali em diante se seguiria. Doía-lhe o coração. Lutou contra as lágrimas, mas o cheiro das velas acesas, milhares de flâmulas espalhadas pelo templo, fê-lo chorar. Avivou-se nalgum imo obscuro dentro de si a recordação do futuro, esse pressentimento impérvio, incógnito, difuso, de que ele ou alguém que ele reencarnava ali regressava. Como podia isso ser? Como podemos nós voltar a um lugar onde nunca estivemos?

Ao seu lado, no banco, um jovem casal sussurrava. Ambos de pele clara, olhos verdes e cabelos aloirados. Pareciam felizes, unidos por um laço de ingénua satisfação. Também eles miravam com fascínio (lia-se bem nos olhos) as rosáceas, o Cristo Ressuscitado, o altar de mármore travertino, o estranho rito quaresmal.

O cântico das monjas ecoava outra vez, feérico, pela nave ampla e luminosa. Depois, o padre repetiu cheio de veemência as palavras de João:

– Je vous donne un commandement nouveau : Aimez-vous les uns les autres ; comme je vous ai aimés, vous aussi, aimez-vous les uns les autres.

Um pouco antes do crepúsculo o americano saiu.

Do alto de Montmartre caía sobre os céus de Paris uma poalha luminosa, cor de fogo, trespassada apenas pela silhueta pontiaguda das grandes torres e dos prédios descomunais. Perscrutava-se uma paz imensa, um silêncio incomum, interrompido ao de leve pelo trissar das andorinhas, pelo murmúrio da cidade, pelo altear ocasional de uma voz em volta.

Samwell Lodge desceu devagar cada lanço da escadaria imensa, reparando em cada um dos artistas que nesse esconderijo pintam, cantam, escrevem e filmam. No funicular passava o jovem casal apaixonado. O americano sorriu.

Em muito tempo, nem ele saberia dizer quanto, era a primeira vez que o fazia.

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O fim do inverno

Fotografia de Almos Bechtold

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Esperou que a escrita voltasse.

Todas as manhãs, com o lápis afiado sobre o caderno, o escritor aguardava a primeira frase: alguém lha ditaria, algo lha faria lembrar, algures um relâmpago explodiria no cavername cerebral.

Mas a escrita não voltava.

O escritor preparara-se para essa crise. Sabia que em alturas críticas da vida a cabeça se desentende consigo mesma, que as dúvidas paralisam a imaginação, que o amor (ainda que profundo e sincero) nos esgota.

– Todos os poços secam umas quantas vezes. É assim em todo os lugares do mundo. É como uma lei matemática. – pensou.

O escritor era um homem paciente. Em cada nova manhã esperava o regresso das boas frases. Tinha o lápis aparado, o caderno pronto e macio, como um campo lavrado, a chávena de café bebida e nasalada em haustos febris. Sabia que as boas frases haveriam de regressar, de regressar como regressa a chuva, de regressar como regressou o velhaco Ulisses, de regressar como regressará inevitavelmente a fome e a peste. Era uma questão de tempo, é uma questão de tempo, sê-lo-á sempre.

Mas a escrita não voltava.

Encolerizado, o escritor pôs-se a empilhar certa noite, em começos de março, todos os seus papéis usados e por usar no pátio e regou-os com álcool. Depois deitou-lhes um fósforo.

Deflagrou, então, uma chama imensa, que bulia no ar como uma dançarina, dando estalos e mudando constantemente de cor. Vieram pessoas à varanda espreitar. Era uma visão extraordinária, as labaredas consumiam as trevas e nelas subiam em centelhas infinitas, que cantavam desde o braseiro e se confundiam com as estrelas tremeluzentes lá em cima.

O escritor, cheio de amargura, sorriu. Era uma bela fogueira.

Nessa madrugada compôs um poema. Um epitáfio. Falava da desaparição. Do muito que se nos pede às vezes por tão pouco. Da dignidade tardia das cinzas e do pó, quando o vento ou uma vassoura os empurram – e o antes dá lugar ao depois, e este a mais nada…

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Deus

Lars Nissen
Fotografia de Lars Nissen

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A pequena igreja enche-se com o ressoar dos tacões. O estampido cresce pela nave e sobe aos altares. Depois dele é o rumor das preces, uma longa murmuração gelada, um marulho de bocas dançantes repetindo-se.

O efeito destes dois ecos consecutivos distrai quem ali não encontrou ainda o seu canal para a Providência. O mais certo é ficar-se a mastigar à toa algumas palavras da comum ladainha.

Quando o padre pronuncia a fórmula trinitária, ouve-se o arrulhar contínuo de um bando de rolas. A espaços, no intervalo das réplicas da assembleia, o coro ornitológico torna-se mais efusivo.

Os distraídos veem apenas a movimentação teatral do sacerdote, o tom ensaiado dos acólitos durante as leituras. Mas quem busca Deus não pode ficar indiferente ao amor veemente destas avezinhas durante o cio. Há quem se escandalize com a animalesca alegria.

Mas Deus é um lugar insondável. A maior parte dos fiéis não sabe onde procurá-Lo. E se O encontra não sabe reconhecê-Lo.

Quando a eucaristia termina, os tacões voltam a ecoar nas lajes frias. Os sinos ocasionalmente repicam, mas o silêncio faz subsumir tudo outra vez.

Só as pequenas aves nalgum canto seu, sobre o telhado do templo, insistem no gemido doce. Dão entre si leves bicadas, dobram e encastoam com o vagar de ourives as palhas do ninho.

Se entendessem a nossa fala, se lhes falássemos do pecado, que belas risadas não dariam.

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Uma primavera

Kanenori
Fotografi de Kanenori

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Nesse ano a primavera manifestou-se muito cedo.

Em meados de dezembro, em vez do frio e da chuva, os aldeãos, veem as mimosas a amarelar e no mês seguinte já as magnólias vão despontando, tal como a flor das cerejeiras. Não chove e o sol atordoa as velhas, que se põem a namorar os pássaros debaixo das parreiras cobertas de glicínias.

– Isto é o fim do mundo! – repete aos saltos um doido sem eira nem beira.

Os anciãos benzem-se, os novos (se os houvesse) não se interessariam nem por estes, nem por aquele, tão pouco pelo cio precoce dos pardais que enchem os telhados. Em que pensam os novos nunca se saberá, sobretudo se os não há por perto.

Aqui tudo o que é longe não existe. Os benefícios da civilização pararam na eletricidade e na água que cai das torneiras. Antes era preciso andar de cântaro ao ombro e acender velas e candeeiros de petróleo. As modernas formas de escravidão ainda não chegaram aqui. Todos caminham de olhos levantados e falam diretamente pelo ar, de porta para porta, ou da rua para a janela, no meio dos campos, entre cancelos e taludes. Há somente um telefone, que toca uma ou duas vez por semana. Por ele mantém-se a aldeia informada das novidades de fora e os forasteiros inteirados da normalidade das coisas por cá.

Um pequeno arroio atravessa o amontoado de casas. Nos dias gélidos sobe por ele um vapor puríssimo formando uma cortina esbranquiçada, que durante a noite (acesa pela claridade da lua) se estende pela paisagem, penetrava as frinchas de xisto e se acerca das camas. Todos aqui estão acostumados a esta presença óssea.

– Isto é o fim do mundo! – repete, cheio de entusiasmo, o doido dos saltos.

Caminhando sem pressa, com a foicinha entalada na omoplata, um dos idosos transporta debaixo de um braço a erva para o gado. Outro põe carqueja sob a trempe para acender a lareira. Uma das senhoras, ainda com olhos jovens, tricota uma tira de lã grosseira (sabe Deus o que dali virá).

O silêncio envolve todas estas imagens. O silêncio é um manto poderoso. Se algum destes moradores geme, ou chora, ou fala em voz alta para que os ouvidos oiçam uma voz, não o escutam os outros. O silêncio esconde decerto o grande pensamento comum: este estranho fenómeno da primavera vinda tão fora de tempo.

Os perfumes do gelo e da lenha molhada (natalícios por direito próprio) não vieram. Em vezes deles, a paisagem cheira à tépida alegria de março, às mornas flores de abril.

– Isto é o fim do mundo! – há de repetir, ainda, o doido dos pulos.

Nós, que nada compreendemos de coisas raras e estranhas, diremos que o mundo está voltado do avesso. Nem o Paraíso escapa.

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Frau Welt

Jackson David
Fotografia de Jackson David

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A seguinte interrogativa ocorreu a Jürgen Altman, uberista, na manhã de vinte e quatro de fevereiro de dois mil e vinte e dois, quando se deslocava a Großbeeren, nos arredores de Berlim. No painel eletrónico do seu novíssimo Mercedes vermelhavam os números 11:53.

«O meu bisavó era nazi. O meu avó comunista. A minha mãe odiava ambos. Eu desprezo os três. Que raio se passa comigo?»

No interior do carro, de pernas cruzadas, deitando um certo olhar à paisagem, seguia uma mulher maravilhosamente bem feita. Altman, pelo retrovisor, colhia aos bocados elementos para posterior descrição: cabelos negros compridos, nariz pequeno, expressão lúbrica dos olhos rasgados, envergava uma saia de cabedal encurtada pela posição do corpo, botas de vinil vermelhas, com um longo fecho reluzente, unhas impecavelmente esculpidas e longas, da mesma cor.

Hipnotizado pelo perfume profundamente insinuante, o condutor não sabia discernir entre o corpo de uma atriz, de uma empresária, de uma influenciadora nas redes sociais, ou de uma acompanhante. Achava-a em todo o caso uma mulher extraordinária.

Na rádio insistia-se numa notícia: a Rússia invadira a Ucrânia.

Jürgen Altman pensava de si para si como todas as nações cedem um dia ao que nelas existe de mais tentador: o desejo que vampirizar as nações vizinhas.

«A Rússia foi uma velha camponesa até aos czares, uma operária insossa até à Perestroika, e agora, debaixo dos punhos de Putin, uma esposa demente, incapaz de se decidir a tomar os comprimidos todos ou a rejeitar os comprimidos todos.»

A mulher pagou. Vê-la de pé, com as pequenas maletas da Louis Vuitton enfiadas no braço sobressaltou Altman. Parara em frente a um condomínio de luxo, todo envidraçado, modernista, com belos jardins em socalcos, descendo de varanda em varanda até às piscinas. Ela afastou-se, com intencional bamboleio, caminhando como caminham todas as mulheres superiores. Altman pagaria para a ter consigo meia dúzia de minutos, pedisse ela o que pedisse.

Na viagem de regresso a Berlim, voltou a pensar na guerra, nos delírios de posse do ser humano, no parasitismo intrínseco à espécie.

Subitamente, acendeu-se-lhe um outro pensamento perturbador.

Parou o carro e pôs-se a verificar na Internet. Passava o dedo com rapidez no ecrã do seu iPhone, cada vez mais persuadido de que a familiaridade do rosto da sua última cliente se devia a algo visto recentemente, numa roda de amigos. Não demorou muito a encontrá-la numa página de encontros sexuais.

Sem margem para dúvidas era ela. Melhor, ela não era ela, mas ele. Ou por outra, ela ou ele ou ambos era uma pessoa transgénero. Apreciadíssima, aparentemente.

Altman principiou a imaginar o corpo destituído das suas marcas femininas, a longa cabeleira posta de parte, o batom apagado, as unhas falsas retiradas, as sombras da barba reaparecendo na pele lavada e natural, o sexo urinando de pé na sanita. Sentiu uma tontura.

Com furor pisou o pedal de aceleração.

Na Antenne Bayern, a sua estação de rádio favorita, continuavam a falar da Ucrânia, de Putin, do horror iminente, no meio de hits dos anos 80.

Na cabeça de Jürgen Altman instalou-se a ideia de que todos devíamos ser brutais, imitar o Putin, limpar como Hitler, arrasar esta gente híbrida, que é o asco da humanidade. O seu bisavó tinha sido nazi, o avó comunista, a mãe odiava ambos. Ele desprezava os três. De resto, nós desprezamos todos por isto ou por aquilo.

Que raio se passa connosco?

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Nós gostamos da neblina

Luigi Bondurri
Fotografia de Luigi Bondurri

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M. caminhava com pressa nessa manhã. Fazia-o por causa do frio, mas outrossim em virtude do hábito (no verão caminhava igualmente apressado; talvez, neste caso, por causa do calor). De todas as partes da cidade, por onde a água corresse, subia uma neblina espessa e álgida que engolia tudo: um olhar não demasiadamente perspicaz vê-la-ia erguer-se do rio, mas também das sarjetas, dos chafarizes, nos jardins públicos, e das bocas ofegantes dos transeuntes.

M. lembrou-se (ultimamente era uma memória assídua) da ponte de outros dias, no fim da primavera, quando aí costumava comprar a uma velhinha de lenço na cabeça cerejas magníficas, e se punha a observar a lentidão do caudal quase transparente, e os junquilhos lhe debruavam as margens, e uma mulher o esperava na outra banda, ao lado da igrejinha românica, cujos lábios carnudos confundia às vezes, no inferno de uma insónia, com a cor e a carne das próprias cerejas maceradas na sua boca.

M. suspirou. Teria vivido o que viveu? Chegava a duvidá-lo. Olhou o céu com um suspiro. O sol, um sol cor de prata, forrado pela neblina como por bocassim, ia e vinha por entre os prédios, aparecia e desaparecia no meio da cabeça ossuda das árvores. M. suspirou de novo. Era uma visão do passado e não tanto de um déjà vu o que lhe estava a acontecer nesse preciso instante, porque nalguma parte de si sabia há muito que iria viver esse momento, esses suspiros, essa pressa, essa nebulosa divagação por entre espaços e pelo âmago do tempo. Principiara a acreditar no eterno retorno. Convencera-se mesmo que, algures, na viagem da nossa vida, apesar de não vermos o antes ou o depois, repetíamo-lo.

Entrou na farmácia e pediu aspirina.

– Uma caixa, senhor?

– Três, por favor!

– Três?

– Três.

M. gostava de comprar tudo a triplicar. Detestava a sensação de ver esgotar-se algo de que precisava ou de que gostava. Casara três vezes, tantas quantas as que se divorciara. Começara três cursos na universidade, sem ter concluído, porém, por culpa de um tédio irreprimível, nenhum. Era assim. Se pudesse, teria nascido em três e falecido outras tantas ocasiões, para não lhe escapar qualquer pormenor e pelo prazer de regressar a um ponto exato da existência.

– Aqui tem. São treze euros e vinte cêntimos.

M. pagou e saiu. Doía-lhe a cabeça. Doía-lhe amiúde. Caminhava com pressa, em direção a qualquer parte que a neblina não deixava divisar bem. Ah, as cerejas túmidas, a velhinha simpática, a amante que o esperava com um sorriso tímido, num banquinho de madeira, à porta da antiga igreja. M. entrou na neblina como se entra num sonho.

Até agora não voltou a ser visto.

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Um pedreiro

Fernando Silveira
Fotografia de Fernando Silveira

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Era um pedreiro quase analfabeto, originário de uma das aldeias mais recônditas de França, daquelas que vemos poisadas como ninhos de grifos nos píncaros das montanhas. No entanto, as suas mãos cortavam, cinzelavam e ornavam os blocos de granito com a prodigiosa sabedoria com que os autores escrevem tratados.

A catedral precisava de obras, por isso, de mãos como as suas. Subiu a um lugar tão alto que nele não se podia caminhar sem o poderoso mal das vertigens. Ficava no campanário, acima do vigamento e dos sinos. Aí, mal disfarçada por teias de aranha, lia-se a seguinte inscrição:

LUCIUSC RECTOR FABRICAE
ANNUS DOMINI MCLXIII

Não compreendeu o que dificilmente podia ler. Também pouco diziam as duas linhas abertas com o escopro. Nelas apenas o nome daquele que no passado conduziu os trabalhos de construção do imponente e maravilhoso templo – outro montês e iletrado, a quem o tempo destruiu o rasto.

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