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Depois da guerra, regressou a casa. A História conta-nos muito acerca dos maus regressos, desses que a literatura (desde Agamémnon) sabe escorripichar e que a psiquiatria aproveita cada vez melhor. Regressou sem um tostão, sem uma cicatriz visível, sem uma memória acolhedora, sabendo já – no momento em que desceu o derradeiro passo do portaló maldito – que a namorada o havia substituído.
Gusmán era bom rapaz, com a sorte dos bons rapazes: passaram meses até que assentasse, anos até que descobrisse uma vocação, décadas até ser capaz de pronunciar o nome da grande puta. Quando o fez, a fama de acordeonista rivalizava com a de ladrãozeco e ambas com a de bêbedo.
Como conseguia ele equilibrar-se nos três apodos era coisa que não espantava.
Talvez fazendo intervalos. Talvez caindo nas três desgraças como se cai por umas escadas com gosto, masoquistamente. Talvez segurando a alma nas artes de tocar, furtar e beber como se segura num tripé uma panela de ferro, sem amor, e apenas por necessidade absoluta de manter-se de pé de alguma forma.
Uma noite, no botequim onde o encontravam invariavelmente a guarda, as amantes e os guapos de Buenos Aires ouviram-no tocar maravilhosa, impecável, imaculadamente entre outras o Oblivion e o Adiós Toniño. Dir-se-ia que o próprio Astor Piazzolla teclava ali os botões e agitava os foles, a música saía bela e visceral do salão, cheia de um sentimento que o lustre e os vidros e os cristais fazer repercutir, como se todos, os rostos, objetos, as lâminas embainhadas esperassem ainda um pouco mais e depois mais nada.
Encontraram-no morto a meio da manhã, apunhalado, com um sorriso subtil nascido no jogo de contorção dos lábios.
Também isso não era coisa de espantar.