CRÓNICA DO VELHO ADOLESCENTE

Ivan Slosar
Foto: Ivan Slosar

«O melhor lugar do mundo é onde nos apetece ancorar a alma.» Não sei quem afirmou isto, se o devo atribuir a algum dos meus livros, ou se na verdade o pensei e escrevi eu próprio. A frase ginga na cabeça e é bela, apetece apanhá-la a caminho de um parágrafo. Sinto-me tão bem aqui, a tomar conta dela. Aqui, à beira-mar, a ler um dos poucos jornais portugueses que se aproveitam. A ler-lhe mais precisamente o suplemento de viagens que sai uma vez por semana. Sinto-me tão bem aqui, a cismar na eterna questão da casa que sonho construir. E a desejar construí-la em geografias que a sugestão onírica me faz desejar, geografias tão remotas como o Japão ou a Islândia, uma ilha mediterrânica ou o Brasil…

Vem-me à memória também a outra frase — «A nossa casa encontramo-la onde encontramos a nossa felicidade.» — provavelmente outra daquelas sentenças engenhosas, sem autor, que nasceram com a humanidade; provavelmente outra frase tão vadia quanto a própria humanidade que a engendrou; provavelmente na cabeça de alguém em trânsito pelo mundo, em busca de casa e felicidade… Provavelmente!

Entretenho-me a passar os olhos pela revista e a cogitar na vida («Cogito ergo sum», reza Descartes). Os últimos tempos, não falando sequer de outras mercês, têm-me proporcionado mãos cheias de leitura e de reflexão: a revista a explicar-me que o maior glaciar da Islândia se chama Vatnajökull, como devo e quando devo ir à Islândia, onde posso dormir e comer na Islândia, e eu a considerar que os vulcões da Islândia e os lagos de água quente da Islândia e os nutridos rebanhos da Islândia podiam bem ser um caminho para mim. Entre ascetas, seria mais um!

Mas depois, alguém entorna um copo. O feitiço quebra-se com o olhar de uma mãe, que se pasma para a faceirice da sua bebé, ao colo. Logo me acode que, entre neves eternas e centrais geotérmicas, me desfariam as saudades da Salomé.

A revista passa então a propor-me a Borgonha dos bons vinhos. Nunca deixei de acalentar a ideia de me retirar para uma dessas vilinhas francesas, com o seu castelo medieval e com as suas colinas recortadas de vinha. Aprenderia a linguagem das uvas, entranhando-me na terra e nos taninos, imitando esses leigos que chegam do EUA e da Austrália para se entregarem à missão última das suas existências — comprar meia dúzia de hectares de terra, deitar abaixo velhas culturas monacais e plantar castas das melhores Pinot Noir, esperando que ao cabo de anos, ou mesmo de décadas de pura obstinação, emergisse por tentativa-erro, como nas histórias dos cientistas, o prodígio de um vinho divino.

Porém, eu sou pouco versado em fermentação de uvas. Não posso declarar-me discípulo de Rudolf Steiner, nem de Nicolas Joly. O que me levaria a habitar os escuros e húmidos domínios dos lagares e das caves, onde o precioso néctar se conserva como se conserva um segredo? Provavelmente falta-me o sentido dessa alquimia, que dos gregos se transmitiu aos romanos e dos romanos aos mosteiros de toda a Europa… Sou um enólogo incapaz, para quem uma garrafa do melhor maduro de Borba contenta tanto quanto a pior zurrapa de Alenquer. Falta-me língua!

É um bom suplemento de jornal, este, o que seguro nas mãos. Não se impacienta com as minhas recusas. Apresenta-me devaneios tão variados, tão irrecusáveis, que num momento me faz subir a Victoria Peak, em Hong-Kong, e noutro descer as formidáveis Cataratas do Niágara. Leva a interessar-me tanto pela casta Moulay-Idriss, como pela babilónica Bangkok. A não menos me seduzir pela Buenos Aires de Borges do que pela Estocolmo de Tranströmer. O devaneio é cosmopolita! De resto, ler e pensar são a parede de vidro de dentro e de fora do eu. Por instinto, por gosto pessoal, por formação e hábito, gosto de me exercitar em ambas. Gosto da escrita que banha na distância. Gosto deste suplemento!

«O melhor lugar do mundo é onde nos apetece ancorar a alma.» Não sei se o velho adolescente que sonhava atravessar, como Rimbaud ou Indiana Jones, desertos e desfiladeiros, selvas e mares adversos, já morreu. Nem se os seus motivos ainda permanecem na mesma cabeça e no mesmo coração que os acalentou: ir de comboio ou de barco, de camelo ou a pé pelos lugares onde a poesia se recita ainda nas pedras vermelhas e no horizonte dourado das palmeiras… não deixar que a fortuna ultrapasse a mochila com a máquina fotográfica e os cadernos de viagem!

«A nossa casa encontramo-la onde encontramos a nossa felicidade.» repito a mim mesmo. Sinto agora esse abandono que nos chega sem querer pela mão invisível do vento.

Abandono, essa bela palavra que significa tanto hoje como nos dias de Bashô. Abandonar uma crença, um estilo de vida, pessoas, a casa primitiva, tudo! Tudo o que for preciso por causa do melhor lugar do mundo. Seremos ainda capazes? Serei?

Não, não quero escrever sobre a escrita. Não mais. Os últimos tempos têm-me mostrado o inevitável vazio da escrita em efeito de espelho: a imagem que se reflete a si mesma é um corredor oco, povoado de espetros descarnando-se até ao infinito. Retomo, por isso, as duas frases que se enlaçam, que principiam a torturar-me, que de súbito dão em conspirar contra a minha consciência, contra o muito que perdi nas últimas duas décadas. Retomo-as porque nos últimos tempos essa casa, essa missão, essa felicidade, me parecem tão improváveis como dolorosamente inúteis. «Estou como doente, como incapaz de procurar» diz uma das personagens de Thomas Mann.

E porque estou sentado numa esplanada, e porque leio o jornal, porque me ponho a cismar nas grandes questões que ocupam o nervo ciático da humanidade, fico tão absorto, tão estúpido, tão longínquo que não vejo, por exemplo, a minúscula metáfora enorme de um formigueiro fluindo debaixo da minha cadeira: uma lenta procissão, acumulando imperturbável (aqui sobre o empedrado como na mais recôndita floresta da Amazónia) as migalhas da vida.

 *

Abandono, essa bela palavra que significa tanto hoje como nos dias do poeta-soldado Bashô. Abandonar o conforto e as certezas, abandonar essa prisão do medo que nos impede de viver. Abandonar velhos amores pela possibilidade do amor…

Eis porque fecho o jornal e, triste talvez ainda, provavelmente ainda infeliz, ainda insatisfeito não o duvido, me consolo com a bela luz de maio — esta que me traz de volta a mim mesmo, essa que como infinitas migalhas de esperança me faz erguer, caminhar com pressa, com urgência, de regresso ao carro, à vida, ao tempo perdido!

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CAFÉ

Marcus Claesson
Foto: Marcus Claesson

Logo pela manhãzinha o cheiro do café espalha-se pela casa, intenso e delicado como os pés de uma criança. Minha mãe sempre acordou cedo. Foi ela a primeira pessoa no mundo a quem admirei o vício. Fá-lo fresco, de borra, todas as manhãs, na velhinha cafeteira de alumínio: a água ferve, depois são duas colheres e meia (das de sopa) bem medidas com a preciosa farinha escura lá dentro; a mexedura produz o característico som de castanholas e também uma pasta em espiral, girando firmemente como as primeiras galáxias, isto até a borra assentar. Quando na superfície se acumula uma película semelhante a uma nata vulcânica, a mesma colher levanta-a e deixa respirar o café que pode, finalmente, ser vertido numa chávena (das grandes). Minha mãe gosta de esmigalhar a broa, juntar-lhe o açúcar, submergir tudo e comer a mistura como se come o melhor dos acepipes. Isto é feito numa tigela (ou malga) das do caldo. É um pequeno-almoço minhoto, generoso, excelente para a diabete e para a azia… Eis um original retrato da infância.

O vício, como a cor dos olhos, uma fortuna ou determinadas doenças, herda-se. Eu sou herdeiro do vício de café! Herdeiro da malga com broa e dos rituais do preparo da borra. Herdeiro do vício que não admite censura ao vício: que mal pode haver em gostar-se assim de café? Herdeiro da vontade de conversar sob o protetorado da chávena! Entretanto fui introduzindo rituais novos à conta das máquinas: no tempo da saudosa de cápsulas, fazia-me abastecer delas como o poeta Teixeira de Pascoes se abastecia de onças de tabaco (“Dá para aguentar uma guerra!”, explicava ele); agora, neste tempo de máquina de cachimbo, encho a despensa de sacos de cinco quilos de sólido, granulado, aromático café torrado, normal ou seleto, da Colômbia ou africano, em cujo interior gosto de mergulhar a volúpia dos dedos, como se o fizesse de facto num alforge de ouro. Eis um retrato decalcado da infância.

Entre o primeiro e o segundo retratos há toda uma longa caminhada. Estou certo que em algum momento desta história pessoalíssima do café me seduziu um terceiro retrato: o de Fernando Pessoa, composto por Almada Negreiros, em 1954. Nele vemos a pose imortalizante do poeta, que anda há seis décadas a inspirar a pose dos inspirados da literatura: a mão direita do autor de Mensagem poisando sobre uma folha manuscrita, a esquerda segurando um cigarro aceso, uma caneta atravessando horizontalmente o papel, o número dois da revista Orpheu e sobretudo o recipiente do açúcar e a chávena de café! Nesse retrato vemos o homem de génio emoldurado por uma profusão de linhas direitas, quadrados e losangos em geométrica e estudada correção, numa referência limpa ao êxtase do conhecimento. Pessoa, o frio e empedernido Pessoa, assim nos ficou morando na memória fotográfica, como o poeta das finas arquiteturas mentais, o príncipe da intelectualidade! Mas felizmente, do poeta sobra também nesse retrato o fumo do seu cigarro e a chávena do seu café! Suporto-lhe menos bem a excelente poesia do que esse gesto raro, prosaico, humano, de apego ao vício!

Ora, começando nos anos da faculdade, e sem pretender imitar a personagem de Almada Negreiros, também eu me venho surpreendendo não poucas vezes de caneta e caderno, cigarro e chávena de café em cima da mesma mesa de madeira, em incontáveis cafés do país e do estrangeiro. É uma vinheta clássica. Na história da humanidade, sucedeu à efígie do poeta de cabeça adornada de louros a estampa do poeta entranhado numa penumbra de salão, pensativo, dessacralizado e ruinoso, bebendo (entre outros preciosos estimulantes) o néctar dos trópicos. Pelo menos desde Baudelaire essa é a figura de moeda que andamos todos perseguindo, de norte a sul do universo… Vejo-me nas esplanadas do Porto, no fim (ou mesmo durante o período) das aulas, a garatujar reflexões de densíssima atividade cerebral. Imagino o olhar circunspeto dos vizinhos de mesa, a curiosidade do turista ocasional, a admiração da menina que me serve. Aí estou eu, senhores e senhoras, munido de caneta de aparo, caderno de capa dura impecavelmente branco, uma cabeça aturdida pela tropelia de André Breton, escrevendo compenetrado, fluente, ruidoso, escrevendo material que tive o decoro de destruir atempadamente, antes mesmo do enxovalho dos amigos e da crítica. Julgo que à aura ajudava a barba crescida, a boina e o sobretudo pretos de fazenda. Suponho que a postura vaga, o semblante alienado, os maços de Marlboro completavam o figurão. Estamos em 1997 ou 98. Atingia o paroxismo do pedantismo. Perdi muito por isso! Mas o café, o café, senhoras e senhores, era já então o mais honesto que tinha no ofício não oficial de escritor! Hélas! Foi ele que me levou a conhecer tascos, botequins e casas de chá, onde encontrei alguns “deuses mundanos”, alguns dos mais notáveis habitantes do “Parnaso terreal”, para me servir de José Craveirinha, mas sobretudo onde encontrei pela primeira vez o trilho solitário do homem abençoado, ou amaldiçoado (nunca saberei destrinçar), pela sina da palavra, pela emulação ao retrato de Pessoa.

Depois vieram as viagens. Do Café Gijon, em Madrid (onde Ruy Belo entreteceu palavrosamente alguns dos seus melhores poemas), ao magnífico Lobkowicz, em Praga; do Majestic, no Porto, aos soberbos terraços mediterrânicos, protegidos ao mesmo tempo por panos e lonas listradas e pela literatura de Camus, Naguib Mahfouz, e Amin Maalouf, anda o meu coração vagueando de novo. O café, não especialmente o tabaco, foi sempre o meu melhor companheiro de jornada intelectual. Ele e o poema serviram-se amplamente de mútuo pretexto ao longo dos anos; são já como independentes de mim; são já como duas almas livres que combinam encontrar-se de quando em vez, usando para o efeito o meu corpo, como se usa um bufete de hotel em dias de secreto oaristo! São como dois entes, “ligados ou desligados por nós obscuros” (como creio que Salah Stétié disse), que continuamente me encantam e escravizam!

Nos últimos tempos tenho-me ocupado com o silêncio. Gosto de contemplar. Descobri com o admirável historiador José Mattoso o dom e as vantagens da contemplação! Todo o imenso chinfrim das palavras impressas, lá chega a manhã em que o descobrimos, incomoda! Todo o imenso alarido das nossas palavras torna-se, por contraste com a pureza do silêncio, uma vileza, um desperdício, uma tontaria. Estou na biblioteca vazia da minha Vila. Vazia de gente, não de bons livros. É um espaço pequeno, contíguo ao bar. Pelas frinchas, por baixo da porta, chega o aroma subtil e contínuo do café: considero, com a certeza de um teorema testado muitas vezes, que jamais hei de livrar-me disto. Apetecem-me de imediato, como extensões mecânicas da minha pessoa, a chávena e a caneta… Esforço-me sobre-humana, desesperadamente, por vencer ambas. A contemplação exige distância, exige a semiobscuridade da cela monacal! Exige abstinência, sacrifício!

Mas como na chávena de Pessoa, como na malga de broa de minha mãe, como facilmente depreenderá o leitor, acabo esta crónica sorvendo até ao último suspiro de uma dádiva, o café, o bom, demoníaco, maravilhoso café que me trouxe a estas palavras de elogio e, perdoe-se-me a blasfémia, de veneração! E então, sim, “algures, as coisas calam-se / Leves de tão duras”, notou-o ainda Stétié.

À MANEIRA ANTIGA

Ingrid Nilsson
Foto: Ingrid Nilsson

Volto à maneira antiga. Limpo a máquina de escrever, atiro-lho o peso para cima da mesa, trago papel, uma resma dele, escolho um dicionário (nunca se sabe), vou ao frigorífico à cata de uma Super Bock. Acabo por regressar com uma lata de Coca-Cola. Depois introduzo uma folha, enrolo-a, acerto os cantos no carreto e começo.

«Ultimamente sinto-me nostálgico. Rebusco nas gavetas objetos de uso passado. Por exemplo, uma caneta de aparo em prata. Por exemplo, um isqueiro dos tempos da universidade. Por exemplo, um rosário dos dias de quando sabia rezar. Por exemplo, um moleskine com os restos de bilhete de avião e uma fotografia de Ingrid. Sinto-me nostálgico, como se sente às vezes o coração mais acelerado, ou o sono mais invencível depois do jantar. As gavetas guardam coisas estranhas. Por exemplo, chaves a que esqueci as concomitantes portas. Por exemplo, números de telefone que deixaram de ter nome. Por exemplo, relógios que há muito calaram os ponteiros. Por exemplo, pequenos cartões prometendo o amor feroz das amantes do Burlador de Sevilla

O velho tear tipográfico sacode a mesa, prensando cada letra de cada palavra com o amor de uma cansada ponderação. O vagar do processo é a sua beleza mais sublime. Sofre-se com o percutir das teclas, com o tilintar da campainha no final de cada linha, com o ruído seco do manípulo à esquerda empurrado para cada linha seguinte. Escrever assim é um jogo desamparado, como o trapezista que se liberta da rede e arrisca competir consigo mesmo.

«Sempre fui um nostálgico. Já a nostalgia tomava conta de mim quando nasci. A vida é nostálgica. Toda a criação é um ato de saudade das origens. De resto, gosto de brincar com as datas, de relacionar acontecimentos que aparentemente nada possuem em comum. Nasci no dia em que Elvis deu o último concerto da sua carreira, em Los Angeles. Nunca gostei das canções de Elvis, até conhecer-te em 16 de agosto, em latitudes inusuais. Tu, uma fã de Elvis, na data em que passavam precisamente 35 anos da morte do velho ídolo americano.

Elvis nasceu a 8 de janeiro de 1935. Gosto de brincar com as datas. Nunca gostei das canções de Elvis. Mas para ti cantei You’re always on my mind».

Não posso estimar a quantidade de textos escritos aqui. A fita bicolor conserva ainda o cheiro húmido, sóbrio, dessa tinta que outrora, nos tempos do Liceu, fizeram nascer sonetos e odes e os primeiros escritos em prosa. Escrevia muito já então. Fiz bem não deixar rasto dessa literatura. O tempo, com exceção para Jean-Nicolas Arthur, não tolera os rasgos de inspiração juvenil. Nem de qualquer outro tipo de inspiração não inspirada. Podemos passar toda uma existência ao lado dessa imensa felicidade. Ou podemos, como no caso de Rimbaud, encontrá-la antes dos vinte anos!

«You’re always on my mind é uma canção que conhecia aos Pet Shop Boys. Sou da década do pop, perdoarás. Cantei-a para ti num desses bares de karaoque, que povoam a Kungsgatan. Ultimamente tenho-a cantado mais vezes. Ando nostálgico. Sou um nostálgico, perdoarás. Tu replicaste The Wonder of you. Será possível que me haja entretanto apaixonado por essa canção? A nostalgia é uma relação complicada com a matéria que nos gera os sonhos e nos conduz a visão. Será possível que nos tivéssemos realmente apaixonado?»

Esta máquina de escrever esteve parada muitos anos. Guardada no escritório, dentro de um armário, dentro de uma caixa. Os anos deveriam tê-la estragado. Observo com comiseração a tecla com o símbolo §. Pressionava-a no final dos meus escritos de dezasseis anos, a separar as entradas de um diário. Com ela construía uma divisória a vermelho, cuja memória fotográfica me faz lembrar também as aulas de Práticas Administrativas e a bela professora ruiva do 8º ano. Chama-se Ludovina. Porquê Ludovina perguntava-me…

«Será possível que ainda nos possamos realmente apaixonar? Digo, neste tempo de falsas imagens e armadilhas? Será possível que, ao cabo de tantos anos de escrita e devaneios, tenha possivelmente encontrado em ti uma alma concêntrica?»

Mas os anos, que tudo corroem, preservam miraculosamente fragmentos fundamentais da nossa existência. Abro a janela para libertar o fumo do cigarro. Ultimamente tenho fumado. Pouco, mas regularmente. O cigarro ajuda-me a situar o horizonte. Tenho lido Hemingway e Malraux. A culpa é deles! Tem-me apetecido novamente ter nascido noutro tempo, algures num país inteligente. Sou um nostálgico. Abro e fecho gavetas, deito ao caixote do lixo cartões e porta-chaves, despeço-me dos adereços do fracasso…

«Tu escreves poesia, também. Escreve-la numa magnífica Corona, herdada, explicaste, da tua avó Ebba; que também escrevia, explicaste, que conviveu com Artur Lundkvist e a mulher, Maria Wine.»

Sou um nostálgico. Um nostálgico progressista, talvez. Ou progredido! Depois de tantos anos, não pude resistir ao apelo da saudade. Tenho-me aqui, preso ao teclado humilde, dividido entre uma lata de gasosa e a música de Elvis, entre a saudade das viagens que não vivi nas verdes colinas de África e as viagens que talvez não repita nos brancos cumes da Suécia.

«E tu escreves poesia, também. Porque te recusas a ser igual a todos os que deixaram de acreditar na humanidade, explicaste. Escreve-la porque és herdeira da tua avó que foi uma mãe para ti, porque a poesia é um vínculo com o além, explicaste».

Volto ao passado. Volto ao cru martelar das palavras, escrevendo-as para talvez as destruir, talvez para me deslumbrar com a vaga semelhança entre mim e os mestres. Não me importo. Não me desilude a certeza do fim. Vivi o suficiente, vivo o bastante em cada cigarro que subtraio e acrescento à noite. As palavras saem limpas, gravadas num vaivém delirante de hastes metálicas e sons anacrónicos. Tudo perfeitamente saído de um filme, ou da memória.

«Será possível ainda o amor, Ingrid? O amor que é o contrário da morte, segundo a etimologia e os mais versados entendidos da latinidade? Digo, neste tempo de armadilhas e falsas esperanças? Será?»

A máquina sacode a mesa. Fá-la trepidar madrugada fora como um tear tipográfico, como um coração pulsando mecanicamente, como um adolescente feliz da sua própria estrada sideral, ordenando e desordenando as frases, à maneira antiga. Escrevo.

«Volto à maneira antiga. Limpo a máquina de escrever, atiro-lho o peso para cima da mesa, trago papel, uma resma dele, escolho um dicionário (nunca se sabe), vou ao frigorífico à cata de uma Super Bock. Acabo por regressar com uma lata de Coca-Cola. Depois introduzo uma folha, enrolo-a, acerto os cantos no carreto e começo.»

SEMPRE UMA QUESTÃO DE TEMPO!

Foto - Casablanca, Warner Bros
Foto: Warner Bros (a partir do filme «Casablanca»)

Começo esta crónica com o piano de Ryuichi Sakamoto em fundo. É uma balada tão calma, tão pungente, que um leitor mais sensível se entregaria de imediato ao devaneio por entre jardins e lagos do Japão, junto a uma casa de chá, debaixo de frondosas tílias, segurando a luva delicada de uma mulher cujo nome convém não dizer… É uma dessas baladas que levam às lágrimas o leitor mais sensível, quando em lugar de tudo o que acabo de descrever, só as memórias ocupam o seu pensamento… Talvez ocorra a alguém que um tal som de piano em fundo se usava no tempo de certos filmes a preto e branco, porventura dalgum dos clássicos que revemos nas noites solitárias de inverno, ou nos ásperos dias de alguma separação recente. Pela minha parte, ocorre-me o imortal Casablanca, a lendária dupla que Humphrey Bogart e a maravilhosa Ingrid Bergman protagonizaram, o Sam que Dooley Wilson encarnou, tocando para todo o sempre As Time Goes By

Começo com a lareira acesa, com meia garrafa de Zambujeiro em cima da mesa, com um livro de Manuel Hermínio Monteiro nas mãos. Porque a verdade é só uma: escrevo por causa deste Urzes, compilação de pequenos textos que o saudoso editor deixou dispersos em jornais e revistas ao longo da sua incomparável existência física.

Podia ter começado, aliás, com uma citação sua, algo como “Em Portugal, o escritor vive na solidão que nem a pompa fúnebre que os poderes montam para a sua morte consegue disfarçar.”

Podia prolongar a citação, deixar que penetrasse fundo o sentido da crítica, que magoasse a sua mágoa, permitir que ficasse escrito também “Mal se extingue o bramido das carpideiras, o escritor fica duplamente soterrado. A sua obra, ou fica à mercê dos herdeiros que, salvo honrosas e conhecidas exceções, nada têm a ver com a obra nem com a vida de quem biologicamente lhes tocou, ou fica dispersa e esquecida como uma cidade imperial soterrada.” Porque a verdade é só uma: escrevo por simpatia, por desejo de replicar algo que leio e que me consola profundamente. Manuel Hermínio Monteiro é um ser fascinante, uma das poucas pessoas que lamento nunca ter conhecido pessoalmente.

Começo esta crónica com o suave ondular das notas musicais, com um piano que me faz esquecer a intensa mediocridade do meio, que me faz perdoar as traições do meio, que me faz iludir o desprezo pelo meio literário. E quando digo meio digo-o em sentido abrangente, inscrevendo, circunscrevendo nele escritores, editores, leitores, críticos, professores, premiadores de mérito, castigadores de reputações… Porque nem todos no meio são tão puros, generosos ou competentes quanto o foi em vida (e mesmo depois da sua morte) o Manuel Hermínio Monteiro. Porque muitos são meras aflorações rasteiras da grande árvore da literatura, gente escarninha, vil, ególatra, mas acima de tudo desprovida de talento! Porque o nosso meio tresanda hoje, como tresandava no tempo de Camões, a compadrio, lisonja e hipocrisia. Porque, escreveu-o ainda o antigo diretor da Assírio & Alvim, “O escritor dispõe da grande força do poder criador, mas perante o socioeconómico, com as suas leis de mercado, as estratégias editoriais, o gosto dominante, etc., o seu poder é reduzido.” Isso explica o profundo esquecimento de homens e mulheres do meio como Ângelo de Lima, Fialho de Almeida, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Ruy Cinatti, Alberto de Lacerda ou Fiama Hasse Pais Brandão. Isso explica o desconhecimento quase generalizado (fora dos muros universitários) da obra primorosa de autores vivos como Fernando Echevarría, José Agostinho Baptista ou António Franco Alexandre. Ou o ostracismo a que foi votado Altino do Tojal!

E quando o meio é francamente viciado, o país responde-lhe com desdém. Repego nas palavras ironicamente certeiras de Manuel Hermínio Monteiro: “o país tem é que criar centros culturais megalómanos. Criar comissões comemorativas. Organizar projectos de repercussão internacional, campeonatos mundiais de futebol.”

Mas talvez não seja um problema apenas ou fundamentalmente português. Gerrit Komrij fugiu à Holanda natal para se refugiar em Trás-os-Montes. José Rentes de Carvalho abandona ainda Portugal durante largas temporadas para se refugiar em Amesterdão! E não abjurou Thomas Bernhard da sua Áustria arrogante? Não se está positivamente nas tintas um Herberto Helder, que queriam Nobel da Literatura? O meio faz as suas vítimas em toda a parte! Ou então destemidos opositores. Isso faz-me pensar…

De maneira que a cabeça pesa, com o piano de Ryuichi Sakamoto em fundo (mais poderosa do que o gosto dominante, mais aguda do que o elogio académico, mais duradoura do que cem cordas encordoadas de interesses comuns e políticas livreiras). De maneira que amo mais profundamente o copo de maduro que tenho à minha, ou as labaredas da lareira reacesa por causa do frio, ou o devaneio por entre jardins nipónicos, de mão dada com belas mulheres loiras de filmes imortais…

Um escritor pode ser solitário. Ou pode ser que nunca seja só. O sono vence-me a resistência dos ossos e do orgulho. Remato com uma última citação do homem a quem, deliciado, leio a crónica «Elogio do Escritor»:

“Ele é dos poucos a quem a luz do Sol entrega sonhos. É assim que Deus lhe paga. E este é o mais belo plano de todo o filme.” Podia ter começado por aqui. Teria dado uma belíssima crónica!

SER MÃE

Tatyana Tomsickova2
Foto: Tatyana Tomsickova

Durante a viagem que me levou no passado verão do Algarve ao norte da Europa reli as muitas páginas de Cem Anos de Solidão esbarrando, porventura involuntariamente, a propósito sem dúvida da centenária Úrsula Iguarán, noutro significado para a palavra mãe: porque na palavra mãe cabem significados tão vastos e tão diversos como os que desfilam no caleidoscópio de acontecimentos, nomes, geografias, gerações, metamorfoses, nascimentos e mortes do texto de Gabriel García Márquez. Essa mulher (sucessivamente mãe, avó, bisavó, trisavó e tetravó) representa no colapso de toda a solidão, e para me servir de uma legenda de Salvador Dalí, a persistência da memória.

Longe, nas planícies escandinavas, com o mesmo Atlântico em fundo, senti saudades da minha mãe. Eu, homem de trinta e cinco anos, senti saudades da mulher ainda não velha que me trouxe ao mundo, da mulher que inumeráveis vezes me amamentou, agasalhou, velou em noites febris, me narrou histórias da Branca Flor e do João Sem Medo, me ensinou as primeiras orações e os provérbios mais subtis, me fez acreditar numa ética (hoje provavelmente anacrónica) que abjura do poder e do dinheiro, me fez amar a simplicidade e a poesia silenciosa das pequenas formas de existência, me levou às letras e humanidades. Longe, nos cumes da Suécia, compreendi pela primeira vez a asfixia do ser exposto a uma solidão desamparada. Pela primeira vez na minha vida senti a possibilidade de ter cavado no lugar da minha alma um buraco, uma estrada sem retorno. Pela primeira vez compreendi porque clamam pela mãe todos os soldados moribundos, em todas as guerras do mundo.

Os anos trouxeram-me o decoro e a prudência. Reconheço que a vida é um fenómeno precioso, muito acima das palavras e das formas de consciência. Reconheço que há vínculos sagrados sobre os quais é redutor falar. Porque ser mãe é uma ciência complexíssima, como tão bem o demonstram o sofrimento de uma tia minha enlouquecida pela perda do filho (como nas tragédias de Sófocles), ou mais eloquentemente ainda o nascimento da Salomé, criança que trouxe à minha mãe em particular (à avó Alice), a suprema alegria de o ser duas vezes. Mãe é a terrível condição de pretender tudo, de abdicar de tudo, de concentrar tudo, tudo no triunfo incalculável de gerar uma vida e de nela deixar inscrito o poema maior possível: o amor de felizes lágrimas infelizes!

Nunca poderei ser mãe (invejo-o possessiva e veementemente às mulheres), mas pude pressenti-lo uma ou outra vez. Explico: em 1998 fui submetido a uma operação cirúrgica, que me obrigou a um internamento de oito dias. À data a minha irmã Catarina contava apenas três anos, tendo eu suposto que as suas visitas ao hospital não lhe ficariam registadas. Explico também que havendo entre nós um intervalo exato de dezoito anos sempre cuidei dela como de uma filha, cabendo-me, entre outras tarefas ao longo da sua infância, a de a aconchegar na cama. Numa dessas noites de leitura dos contos de Grimm, de algumas cócegas e depois da luz apagada, quando a imaginava adormecida já, quando passava eu próprio pelas brasas, sussurrou-me a garotinha qualquer coisa como isto: «Sabes? Quando  eu era pequenina e tu estavas no hospital, chorei muito porque tinha pena de ti e a mãe ficou tristinha!» Confesso lágrimas abundantes e silenciosas, de uma felicidade infeliz, de uma sinceridade que transborda e não tem definição. Ser mãe é isso, imagino que seja isso: chorar muitas vezes, sinceramente, em silêncio!

Anos mais tarde, numa fatídica noite de maio, quando o aparato das sirenes e o pirilampo das ambulâncias anunciava aqui na Vila o atropelamento simultâneo de várias mulheres no regresso da igreja, quando ninguém sabia dizer ao certo quem eram as desafortunadas, quando ninguém podia negar que houvesse vítimas mortais (havendo, pelo contrário, quem asseverasse que haveria muitas), quando ninguém podia acercar-se do ponto do sinistro por causa da barreira policial, quando se sabia unicamente que eram mulheres vindas do serviço religioso em honra de Nossa Senhora (e a minha mãe contava-se entre elas), entrei em pânicoPorque não estava preparado para o pior dos cenários. Porque aquele podia (e não foi, felizmente) o pior dos cenários. Porque no caderno de encargos de uma mãe consta obrigatoriamente o de preparar um filho para a sua desaparição – e talvez nunca estejamos preparados: eu não estava! Porque ser mãe é o empenho nobilíssimo para o conseguir, para antecipar-nos o sofrimento administrando-o aos poucos. Porque ser mãe é procurar criar em nós uma espécie de imunidade, de resistência ao colapso, de amor e memória que a prolongue e nos prolongue no tempo.

Herberto Helder, em versos de superior condensação, resume o que podem ser todas as mães, todas as Úrsulas Iguarán, todas as mães ensandecidas pela perda, todas as mães que um dia nos criaram e rejubilam com uma neta nos braços: «As mães são as mais altas coisas/ que os filhos criam, porque se colocam/ na combustão dos filhos, porque/ os filhos estão como invasores dentes-de-leão/ nos terrenos das mães.» Abençoadas sejam, pois, todas, todas as mães a que não sabemos, a que não soubemos tantas, tão incontáveis e ignominiosas vezes, dizer sequer obrigado! Porque ser mãe, por último, será não desamar a quem lhe devota a ingratidão e o silêncio. Abençoadas sejam por tantas, tão incontáveis e prodigiosas horas de perdão!

OUTRA SOBRE LIVROS

Xelo Moya 03
Foto: Xelo Moya

No momento em que escrevo estas palavras estou tomado por uma fúria descontrolada, que entre outros perversos efeitos psicomotores me faz escrever cada palavra como se tivesse nascido malaio, russo ou etíope, de modo que a fúria de fúria se alimenta e às tantas estou a martelar no teclado e a fazer dramáticas caretas para o ecrã branco à minha frente, parede de luz e de silêncio que me ignora, aliás, as graves razões por detrás e o significado de cada esgar de louco que lhe lanço. Não, não é um ótimo começo de crónica. É só um começo. De resto, imagino que quem me lê (dois ou três amigos que não atiraram ainda a toalha ao chão, para me servir de uma metáfora da moda) se pergunte quais serão, enfim, os motivos de uma tal perturbação, ou se questione (não o duvido) se o autor destas palavras não estará apenas a ganhar tempo para encontrar alguma coisa que valha a pena ser dita, andando daqui para ali e dali para acolá, às voltas e às voltas, a espalhar a fúria, como se espalha cinza, ou uma punhado de sal no gelo. Não, definitivamente o juízo não me acompanha!

Adianto a explicação: andando eu, esta tarde, em verificação de certos cartapácios e obras menos procuradas, descobri que uma infiltração de água cá em casa, uma dessas malditas entradas da chuva, quando há chuva (e este inverno tem havido muita, Deus seja louvado), veio descendo uma e outra e outra vez, sempre em segredo, sobre uma das mais altas estantes da minha biblioteca, e, assim mesmo, sem avisar, fez-me apodrecer (não é exagero, é apodrecimento sem tirar nem pôr) mais de metade da minha extensa e preciosa coleção de pintura da Taschen, levando consigo seis romances de Milan Kundera, um de Gabriel García Márquez (tudo Publicações Dom Quixote), umas quantas recolhas de contos (entre eles três dos sete volumes de contos de Anton Tchékhov, edição da Relógio d’Água), entre outros títulos que nem vale a pena aqui chamar à récita. Vi tudo com incredulidade. Vi o empastamento das folhas, vi o encarquilhamento da humidade, os círculos monstruosos, cancerosos, do bolor. Toquei na ferida. A polpa dos dedos levantou sem dificuldade páginas inteiras da minha religião principal, e pedaços, nesgas de papel, ângulos de prosa e pinturas imortais, que (a salvo de semelhantes infiltrações) jazem felizmente enxutas nas salas dos museus mais diversos do mundo…

Se não for inconveniente, nem excessivamente efeminado, permita-me o leitor (uso o singular, mesmo convencido de que serão afinal dois ou três) que chore. Permita-me que sofra o desgosto outra vez, que o reviva devagar com o secador do cabelo em riste, que faça ainda um derradeiro esforço para salvar o insalvável, e que gema, que grite, que berre, que barafuste, que bata com o punho, que ameace a frincha maldita por onde desceu esta gangrena, que ameace com dinamite e depois com cal e tinta o maldito lugar por onde o mal veio ao mundo. Ao meu escritório pelo menos!

E chegado a este ponto, ainda sem ter conseguido iniciar a crónica, devo explicar o seguinte: há uns dois meses, quando alinhava os poemas do meu último livro; quando precisei de qualquer coisa que sabia o que era mas não de quem; quando percebi que era uma citação de Mário de Cesariny de Vasconcelos, descobri o que não se deve descobrir. Que emprestei o Manual de Prestidigitação e não mo devolveram. E como um mal leva a outro, como uma falha nos aviva a memória de falhas anteriores, dei-me conta de ter emprestado também Horto de Incêndio de Al Berto e de não o ter em casa. E um tomo das crónicas de Fernão Lopes (dedicado a el-Rei D. Pedro). E também um romance de Isabel Allende (quem o tiver em sua posse, faça bom proveito). E era justamente para conhecer a real dimensão do problema que me propus fazer uma vistoria. Pelo que me propunha escrever uma crónica, a começar assim:

«Por causa de um prospeto conheci a poesia de Al Berto, por causa de um flyer conheci a de Mário Cesariny de Vasconcelos. Dois superpoetas do século XX (que viram a esquina do milénio), dois inconformados, dois rebeldes que (cada um à sua maneira) ganharam fama de malditos, ou, pelo menos, de mal-amados.

Se Horto de Incêndio me abriu a porta para o poeta de O Medo, foi o extraordinário «Discurso ao príncipe de Epaminondas, mancebo de grande futuro» que me deu a conhecer Manual de Prestidigitação e, depois dele, Nobilíssima Visão, Pena Capital, A Cidade Queimada, Titânia e, já no mestrado, Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (que afinal já conhecia, na versão mais curta de Nobilíssima Visão) e O Virgem Negra. Sigo a ordem por que os li e não a que seguiu o autor ao escrevê-los ao longo de meio século de paciência, polémicas e amor incondicional à arte de Homero.

Só esta tarde, aquando de uma arrumação que aqui não importa esmiuçar, é que me lembrei de o ter emprestado e não o ter recebido de volta. E porque o emprestei a alguém que agora se encontra em parte incerta, só esta tarde me inteirei da perda. Estou consternado! Os livros não são emprestáveis, especialmente os de poesia: eu já o devia ter percebido, eu que somo até hoje reveses consideráveis em relação a Mário de Sá-Carneiro, Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner Andresen e Wisława Szymborska (neste caso derradeiro com a sorte de haver, entretanto, podido comprar um novo exemplar do volume “desaparecido”) e, por alguma razão os citei de início, também Al Berto e Cesariny.

Moral da história: venho por este meio, fria, solene e publicamente declarar a minha absoluta, voluntária e inegociável indisponibilidade para ceder doravante por empréstimo, ou outro igual expediente, qualquer livro de poesia, podendo nos restantes casos, desde que não seja a minha porção de teatro (grego, de Goldoni, Ibsen, Lorca, Brecht e Beckett), de ensaios (com Lourenço e Steiner à cabeça), ou de ficção (portuguesa, europeia, universal), considerar a hipótese de. Repito: os livros não são emprestáveis, nem riscáveis, nem dobráveis, nem sujáveis com impressões digitais, nem são bons lugares para guardar os números do Euromilhões e números de telemóvel. Pela parte que me toca, sou fundamentalista do livro limpo, do livro impecável, do livro inteiro e intacto, como o tipógrafo o pôs no mundo. E, dito isto, calo-me, porque o que tinha a dizer disse!»

Isto era a minha proposta. Mas compreendi que uma tal crónica, além de breve, além de estranha (seria realmente aquilo uma crónica), além de provocadora, não seria bastante para conter a expressão de miséria humana que revoluteia dentro do meu sangue a estas horas, tendo tomado eu conhecimento do desastre a que aludi inicialmente e que continua a empurrar-me as omoplatas para baixo, como uma carga de cimento sobre os ombros. Tonto, triste, totalmente desolado. Alitero em para sublinhar musicalmente o elegíaco tom em que me vou esta noite deitar, já não tomado pela fúria, mas tão só pela mágoa e frustração, de quem ama os livros (certos livros mais do que os outros) e os perdeu à força de os querer guardar no lugar mais extremo da sua caverna. Moral da história: antes os tivesse emprestado!

BIBLIOTECAS

Biblioteca do Mosteiro de Strahov
Foto: Jan Gravekamp

Entre as mais poderosas imagens que o meu cérebro construiu do mundo, conta-se a do lugar imenso, insondável, sagrado, das bibliotecas. Um tal território não é apenas espaço, nem apenas depósito, nem apenas silêncio de livros. Mas verbo, verbo incontido e multiplicado, verbo prestes a conjugar-se, prestes a parir, prestes a replasmar o próprio verbo divino que é, desde S. João, o começo e a duração dos tempos. Um tal território é sede do fascínio e do abismo, do poema e do pó, da palavra e do vazio. Porque as bibliotecas são, muito para lá da metáfora do labirinto em que Borges as refundou, a metáfora da luz em que sonho eu!

A primeira que amei era escassa, mal iluminada, nos fundos de uma escola velha e obsoleta. Administrava-a uma funcionária carrancuda, sempre sentada e com o aquecedor aos pés, para quem a maçada de ter alunos a pedir-lhe que abrisse os armários (sábia e prudentemente fechados a cadeado) só competia com a maçada de ter de levantar-se de duas em duas horas para ir à casa de banho. Ainda assim, foi dentro das suas paredes que me repastei com aventuras do Superpato, ou com os vinte e um volumes do quinteto inesquecível de Enid Blynton, ou com as histórias e Pica-Pico e da Gaivota Laila de Friedrich Wolf. Benditos seis metros quadrados e repletos de mofo, onde me inteirei do bruxedo da Galinha Verde que Ricardo Alberty generosamente partilhou.

Ganhar coragem para entrar e desafiar os óculos em armação de osso da matrona, que uma vez retirados significavam cólera ou impaciência pelo menos, foi o primeiro sinal de que nascera para aquilo. E aquilo, que era muito diferente quando o professor Miguel Monteiro lá estava, deu-me a primeira noção do saber, do saber incalculado e incalculável que está à mão de semear e que, ao mesmo tempo, nos foge da mão.

Preciso de homenagear este homem. Professor de Língua Portuguesa (como eu me haveria de tornar), ele foi o poeta do giz, aquele que nos lia em voz alta fábulas de Esopo e contos de Hans Christian Andersen, excertos das fantasias de Júlio Verne e contos russos, quadras de António Aleixo ou de Fernando Pessoa, aquele que nos falava dos mitos e do teatro grego, que nos ensinou que texto quer dizer tecido, ou que as palavras mais não são do que roldanas que nos ajudam a puxar pesos enormes e que por isso devemos mantê-las bem oleadas, próximas e disponíveis. Não tive outro professor assim. Nenhum que haja conseguido de forma igual penetrar a carapaça (quase sempre oca) da burocracia e nos tenha feito ler, falar, ouvir e escrever com paixão, com amor e com sentido estético no que, dentro de uma língua, há de passional, amoroso ou literário.

Foi ainda o professor Miguel Monteiro quem nos desafiou a inscrever-nos como sócios na Biblioteca Municipal. O precioso cartão plastificado, com o nome e o número escritos à mão, foi mais do que a possibilidade de conhecer a Casa da Cultura, requisitar livros e levá-los para casa. Foi o passaporte para um mundo solene, cujas estantes e móveis austeros se deixavam antecipar pelo aroma da cera e da madeira, cujas amplas janelas (banhadas ora pela luz do sol ora pela chuva) se mantinham tão longe e tão perto da rua quanto o desejável. Havia com efeito um mundo para lá e outro para cá das vidraças, ambos tão deliciosos quanto imiscíveis pelo olhar, o que me faz, desde então, e num assomo de nostalgia, espreitar o céu aberto e o bulício sem som (como num filme mudo) a partir de dentro, e os lustres e pesadas lombadas, os leitores dobrados e silenciosos, a partir da rua. Em mim subsiste muito do antigo adolescente; primeiro com Altino do Tojal e Dumas; depois com os dicionários de latim e de grego, com enciclopédias, atlas e histórias universais, com Carl Sagan e Herbert Reeves, com as Memórias do Cárcere de Camilo debaixo do braço. Alcunhavam-me de Crânio e eu de néscios. As duas batalharam durante anos, na pior das guerras de difamação.

Quando nasceu a minha irmã Catarina, quando ingressei na Faculdade de Letras, o intelectual estava feito. Feito, mas com impurezas graves e falhas maiores. Não conhecia dezenas de autores portugueses (não me atrevo a cifrar a quantidade de estrangeiros), não dominava bem o inglês, não viajara, não dispunha de conhecimentos categóricos no que concerne à vida noturna, vivia recluso de ideias humanistas do tempo do senhor Damião de Góis, pese não o seguir no exemplo da erudição. Para os meus colegas de curso, apresentava o aspeto de um monge tardio e mais ou menos provinciano. E por essa razão me abastardei. Não apenas com a leitura compulsiva dos franceses, dos americanos, dos italianos, dos ingleses, dos alemães, dos russos (preferi quase sempre os que não integravam o currículo), como sobretudo com as surtidas para o jornal académico (onde frequentei tertúlias e publiquei uma ou duas crónicas de ocasião), ou com as bebedeiras na Ribeira, na Foz e na Boavista. Quase perdi o terceiro ano.

Ainda assim, e porque os amigos eram bons e muitos nesses anos venturosos, lá me endireitei e acabei a tempo. E porque precisava de silêncio e de solidão, o lugar onde me resgatei ao precipício foi a majestosa biblioteca sobre o Rio Douro, na ainda chamada «Vista Panorâmica». Poiso dos marrões, dos grupinhos de estudantes idiotas e das beldades de Filosofia, ela era o refúgio dos três ou quatro poetas que então já se afirmavam, com Daniel Faria à cabeça. E era o meu refúgio também. Como no filme de Wim Wenders, Der Himmel Über Berlin, que a saudosa professora Vera Lúcia Vouga exibia sempre às suas turmas, em Introdução aos Estudos Literários, eu imaginava-me uma dessas vozes interiores que declamavam de si para si Homero, Kierkegaard ou Noam Chomsky.

Vem-me muitas vezes à memória o profundo contraste de luz e sombra nesse espaço, uma torre com meia dúzia de pisos, onde li Dante, Petrarca, Gôngora, António Vieira, Poe, Machado de Assis, Baudelaire ou Breton. Não poucas vezes me exigiram silêncio, porque me distraio facilmente. Não poucas vezes me perdi a cismar nos rabelos e embarcações de carga que transpunham o horizonte, acompanhados pelo grito das gaivotas e pelos meus olhos fartos de Linguística, de Literatura ou de Metodologia. Lamentavelmente, não me assiste o dom da paciência que transforma homens comuns em excecionais. Fui sempre um leitor fantasista e um pouco tolo.

Em 2011 estive em Praga. Aí visitei a biblioteca do Mosteiro de Strahov, um exemplar da sua espécie que me comoveu até às lágrimas. Não é muito diferente da biblioteca do Convento de Mafra, por exemplo, mas, como muitas vezes sucede com as civilizações a norte, é mais despojada, mais pura, mais livros, mais saber, mais biblioteca! Sempre quis folhear um desses códices medievais, com iluminuras e letras em estilo gótico. Quis o destino que esse privilégio me pudesse ter sido dado em terras eslavas, nas mesmas salas e corredores por onde circularam Tycho Brahe e Johannes Kepler. E por tê-lo conseguido aí, sempre Praga morará no meu coração, como morará sempre a pequena biblioteca do Ciclo Preparatório ou a do meu quarto, onde guardo apenas os livros de poesia inquestionáveis!

Perguntaram-me há tempos se conhecia a nova biblioteca de Alexandria. Não conheço, infelizmente. Mas também esta moderna não me seduz como seduziria a outra, a histórica, aquela que desde os relatos de Heródoto e Tucídides me incendeiam a imaginação. Aliás, como as bibliotecas de Jorge Luis Borges ou a dos copistas d’O Nome da Rosa de Umberto Eco. Porque um ingrediente transforma um depósito de livros numa biblioteca, ou, na sua ausência, uma biblioteca num simples depósito de livros: a vontade de ficar, de permanecer, de regressar.

E é, por isso, que me orgulho de ter criado na Vila de Arões, onde vivo (no edifício da sua Junta de Freguesia), uma biblioteca. Pequena, mas funcional. Escassa, mas disponível. Incompleta, mas preparada para crescer. E é, por isso, também, que não poderia deixar de homenagear aqueles que trabalham todos os dias nas bibliotecas escolares, e que as convertem num espaço de acolhimento, de aprendizagem e de prazer. Não conheci nenhuma mais ativa, nem mais humana, nem mais bem-sucedida do que a da Escola E. B. 2, 3 do Viso, no Porto, sob o cuidado da Emília Pinho e da sua equipa. E, por isso, também ela me ficou. No coração, claro está!

ARRUMAÇÕES

Foto: Taliah Phoenix
Foto: Taliah Phoenix

Arrumações

Acontece-nos muito. Passamos meses ou até anos sem nos recordarmos de uma palavra, de um rosto, de uma cidade ou de uma história. Depois, de um momento para o outro, passamos a tropeçar neles vezes a toda a hora, a propósito e sem ser de propósito, por causa disto, disso e daquilo, como se uma conspiração (ou mais até uma incompreensível coincidência) nos fizesse convergir para esse pequeno retalho da memória.

Explico:

Ando em arrumações. Primeiro no computador, a organizar tudo muito direitinho em pastas e subpastas e subsubpastas; a libertar o disco rígido do peso de incontáveis ficheiros e programas que o tempo rapidamente tornou obsoletos; a fazer back-ups no disco externo. Depois no escritório, a desfazer-me de papelada, apontamentos, coisas da escola, velhos cadernos de viagem, bilhetes de avião, ingressos em museus… Por fim, nas gavetas do quarto, da cómoda, da escrivaninha, da mesinha de cabeceira. E isto porque (penso ser legítimo afirmá-lo) se impõe ao impulso protetor um outro impulso, o de apagar, silenciar, reduzir o nosso espaço outra vez à metáfora da folha em branco.

É um exercício temerário! Talvez até um pouco insano.

Conservamos um objeto, guardamo-lo por amor ou comodidade durante tanto tempo que não somos capazes de dizer quanto tempo, e depois (subitamente) decretamos a sua condenação.

Foi o que fiz. É o que tenho feito. Duas ou três vezes por ano, ensaco tudo, reordeno tudo, limpo tudo. É uma tarefa de gabinete, na qual me concentro até meio da madrugada, sem que o sono ou o cansaço possam disputar-me à avidez da missão acabada. Devo sentir o mesmo que sentiu a Bruxa na história da Branca de Neve, quando se fechou para fabricar a ambígua maçã. Porque o que sobra ao cabo de todas essas horas de afã é um paradoxo: mexer no passado para o destruir é reacordá-lo!

Acontece muito. Esbarrar com a fibra calosa dessas memórias pode sufocar-nos. Passamos meses ou até anos sem nos recordarmos de uma palavra, de um rosto, de uma cidade ou de uma história. Mas de um momento para o outro somos engolidos pelo turbilhão de afetos mal adormecidos, mal poisados, mal esquecidos…

«Delubro», por exemplo. Usei essa palavra quase num sussurro, num poema algures, quando de pés descalços e deitados na relva dos jardins das Tulherias nos entregávamos a uma sesta. E tu sonolenta perguntaste o que é «delubro». E eu já de olhos fechados respondi «La Madeleine é um delubro». Porque certas palavras encaixam como uma luva em imagens que não dispunham de uma que as descrevesse na perfeição. E depois dela, não há senão essa palavra…

Lendo Borges, «delubro» regressou num poema, e com ele regressou Paris, com todas as suas ruas e ricas lojas de esquina, com todos os seus cafés e livrarias, com o seu cheiro de algas e castanheiros-da-índia, com todos os seus edifícios altos e antigos, com todos os seus pores-do-sol e deambulações entre Notre-Dame e os Champs-Élysées nas tardes quentes do verão. Porque Borges descreve a cidade como eu a descrevo, como se o tivesse lido antes de conhecer Paris.

Pura magia intuitiva…

Conservamos um objeto, uma recordação, um farrapo de magia. Guardamo-lo por amor ou comodidade durante tanto tempo que não somos capazes de dizer porque o fazemos, mesmo quando o bolor e a amarelidão tornam moles a sua estrutura e baça a sua luz. Porque o amor (como a memória, como a maçã que a Bruxa entregou a Branca de Neve) é um estranho fenómeno de dupla face, que ora nos mata, ora nos suplica que o matemos nós.

No fundo, somos apenas animais esquisitos.

E é por essa razão, e não por qualquer outra, que precisamos de arrumar sempre tudo o que acumulamos (e acumulamos sempre demasiado). E é por essa razão, e por nenhuma outra, que nos sabe sempre melhor um duche com água a ferver no fim das arrumações, mesmo que ao raiar do sol, mesmo que finalmente vencidos pela fadiga, por uma palavra, por um rosto, por uma cidade, por uma história que acabámos de apagar.

DELÍRIOS

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Paula Rego, «A Sereiazinha», 2003

           

Na cabeça enviesada de um doente passam-se coisas inexplicáveis, coisas como decerto as que descreve o senhor Brás Cubas nas suas Memórias Póstumas, labirínticas coisas que são o eco da batalha entre o devaneio e a razão, que é como quem diz entre a febre e doses cavalares de ben-u-ron.

Por qualquer motivo da minha compleição física, sou achacado a delírios, tão mais indescritíveis quanto fascinantes: sou amiúde um pássaro sobrevoando a minha casa e o meu bairro, vendo ao pormenor os vizinhos a assar pimentos e sardinhas nos respetivos fogareiros e a fazer-me sinais ameaçadores lá de baixo, como se fosse intenção minha roubar-lhes o petisco. Outras vezes, sou outra vez criança e fujo da escola, porque a minha professora tem uns horríveis lábios vermelhos e quer-me por força beijar. Não é raro ser abordado por personagens históricas, que sobem da tumba para me fazerem interrogatórios ou pedir conselhos. Já houve um que me veio pedir a devolução de dinheiro que alegadamente me emprestara… De todos o mais espantoso foi o velho Marquês de Pombal, que insistia roubar-me o telemóvel e ameaçava despir-me em público se não lho entregasse…

Recuperado destes episódios de bullying psicótico, pude rir ou ficar seriamente convencido de ser semilouco. Mas a loucura é uma caso muito mais complexo do que se pensa; quem assim o afirma é Emil Kraepelin, que diz também «alto lá e para o baile»: nem todos os fenómenos de perturbação mental são propriamente um caso de psicose, demência, neurastenia, histeria ou esquizofrenia. A febre não faz do seu portador um louco, como o livro de filosofia debaixo do braço de um estudante não o torna propriamente um filósofo.

Assim sendo, incapaz de decidir-me quanto ao que me cabe de manifestamente louco, ou ao que é exclusivamente do domínio da febre, comecei a anotar algumas dessas fabulosas aventuras, convencido de poder servir-me delas como delas se serviram nos seus livros Baudelaire ou Borges, embora num caso o absinto, no outro a cegueira tivessem dado uma ajuda preciosa no aprofundamento e correção das ideias. Simplesmente, não pude divisar até hoje como me seria útil descrever num poema o quanto fugi do sinistro Popeye (que me aterrorizou a infância e não só por causa dos espinafres odiosos), ou como dar seguimento numa novela às façanhas conjuntas com Zorro, o meu maior herói masculino até ter-se abandalhado com Antonio Banderas…

A verdade é que os meus delírios possuem pouca literatura: é lá coisa que se aproveite Dom Sebastião ser apanhado a fumar e a faltar à lição de piano? E que dizer de Afonso Henriques a levar dois estalos por faltar ao respeito à catequista? «Aqui quem manda sou eu, meu menino» — e di-lo com uma faca em riste. Não poderia explicar numa história da minha lavra porque leva o primeiro rei de Portugal um par de bofetadas da catequista, ou porque lhe chama essa terrível figura de avental «meu menino», ou porque recita ela a catequese empunhando uma faca de degolar galinhas…

Paula Rego, acostumada a visões deste calibre, dir-me-ia existir qualquer coisa de freudiano nos meus textos. E eu haveria de escutá-la com comedimento, com pundonor, com excitação. Porque me convenceria de habitar em mim, afinal, algum ADN de artista. Mas era preciso que eu soubesse multiplicar literatura a partir desses achados piréticos. Infelizmente, a única coisa que consigo é esgotar a paciência àqueles que me trazem chá e panos molhados à cama, me trocam os lençóis e me obrigam a mudar de pijama.

Pela minha parte, recupero de um fim de semana em que me fui tomado por um mistura de constipação e de gastroenterite (infundado o receio de gripe A). Na minha cabeça, como no areal repleto de despojos de A Sereiazinha, que Rego pintou em 2003, jazem incontáveis e incongruentes fantasmas de episódios mentais, que em breve serão recolhidos pelas vigorosas mãos dos meus enfermeiros domésticos.

Porque definitivamente há circunstâncias com que lido mal e de que tiro escasso partido. Invejo quem o faz, ou fez, como o grande Machado de Assis, por exemplo, que levou longe o talento de fazer render a contrariedade da doença. Mas os grandes são grandes, e com a devida vénia me retiro… para a sopa de arroz.

DAS BRINCADEIRAS E DOS BRINQUEDOS QUE NOS FICAM

Pascual Nuñez
Foto: Pascual Nuñez

Se algum lugar mítico se conserva em casa dos meus pais, esse lugar é o sótão. Aí, mesmo debaixo das telhas, sob as traves de madeira, onde a luz elétrica nunca chegou e onde aranhas solitárias cortinam o silêncio, sobrejaz uma multidão de caixas com candeeiros, tapetes e livros de costura (pesados tomos de capa dura sem qualquer préstimo), faianças e um antigo aparelho de radiofonia. Mas aí, no meio da escuridão, onde os anos fizeram queimar cotos de vela e fósforos, resistem, também, sobretudo, as coleções! Calendários, porta-chaves, discos de vinil, pósteres (do Benfica e da Seleção, dos Pink Floyd e dos Pearl Jam), revistas das Seleções do Reader’s Digest e do Tio Patinhas. Aí, aonde sobe a luz da lanterna, como Cousteau descia com ela ao fundo dos oceanos, o tesouro principal são as lendárias malas dos brinquedos, as que guardam os espécimes adorados da infância e, agarradas a eles, as melhores memórias!

Tudo passou depressa daí em diante: cresceu-se; foi-se para a universidade; estudou-se Trubetzkoy e Martinet; discutiu-se Sartre e Camus entre imperiais e pires de tremoços; obteve-se o canudo; passou-se a cirandar pelo país, ensinando a putos malcriados aquela mesma disciplina que em miúdo se detestava; passou-se a dizer mal do Governo; escreveu-se um ou uns quantos livros; plantou-se uma árvore ou um bosque delas; viajou-se pelo estrangeiro; amou-se, sofreu-se e voltou-se a amar; de repente há uma criança magnífica em casa e alguém pergunta «O que é feito dos teus brinquedos?». E é então que a escada de tesoura regressa.

Durante anos, a entrada para o sótão (pela dispensa) foi-me vedada. De maneira que quando à sorrelfa penetrei pela primeira vez esse ambiente, onde o depósito da água e respetivas tubagens tomavam o aspeto de uma máquina cardíaca, fiquei atordoado com o recheio dos misteriosos caixotes. Era apenas um garoto surpreendido com o lugar menos visitado da casa. Mas esta tarde, ao encavalitar-me no estreito suporte que me levou de novo ao alto, senti o que sente o arqueólogo, quando ao escavar obstinadas camadas de saibro e de areia se vê confrontado com objetos que compõem toda a história do tempo. Senti o que se sente algures numa cave ou numa arrecadação, quando se reconhece e recupera em simultâneo pedaços da pessoa que fomos aos cinco, aos dez ou aos vinte anos. Senti a forte comoção que enche decerto de mágoa e de felicidade a palavra saudade, mas que é mais intensa do que ela, porque é o abalo de um reencontro – com (o toque, com o cheiro, com a textura de) objetos misteriosamente subtraídos à nossa convivência e de chofre, agora, caoticamente, resgatados da penumbra e do pó. Ocorreu-me que, ao cabo de tanto tempo e de tamanha distância, a vida paradoxalmente talvez nunca tenha existido fora do mesmo instante e do mesmo lugar onde desfilam cubos de rubik, ursos de peluche, automóveis de corrida, pistas de comboio, puzzles e conjuntos de legos

Cada uma dessas miniaturas da fórmula 1, cada camião, caterpílar ou carro dos bombeiros, cada jogo de tabuleiro (do Monopólio do Topo Giggio), cada jogo de cubos (em especial, o da Branca de Neve e dos Sete Anões), cada avião e cada paraquedista, cada soldado de chumbo e cada replicazinha em pvc do Dartação e respetivos colegas Moscãoteiros, cada tambor ou viola de plástico, cada ferramentazinha de metal e madeira construída pelo meu pai (sobremaneira invejadas pelos outros fedelhos da rua, por não haver quem tivesse joguetes iguais), cada um destes maravilhosos objetos transporta com extraordinária precisão os dias passados, os amigos, as conversas, as fantasias, os recantos onde em tardes pachorrentas, depois das aulas ou no verão, nos juntávamos para brincar. Cada um desses objetos foi personagem das fantasias que púnhamos em marcha na terra batida, na areia ou nos jardins da vizinhança, de onde se elevava o aroma da relva cortada e que para sempre me obrigou a associá-lo ao insuperável fascínio dos anos 80, quando as férias grandes iam de junho aos começos de outubro, e quando havia a extravagante liberdade de andarmos na rua até a noite cair ou os berros da mãe de um e de outro nos chamarem para o jantar. No verão, ao crepúsculo, a rua era disputada por grupos de meninas que riscavam os quadrados do jogo da macaca, e pelos rapazes que a riscavam com o formato de um campo de futebol. Não poucas vezes, a insuficiência de jogadores de um lado ou do outro motivou curiosas misturas, como sucedia com as canções de roda (em especial, com a «Fitinha Azul» ou com «A Borboleta Branca»).

Empolgavam-me a cabra-cega ou o jogo dos cowboys, o jogo da caça ou o esconde-esconde. Quando éramos poucos, entretínhamo-nos com um humílimo o jogo do galo ou com os berlindes. Não me recordo naturalmente de todos os jogos em que participei ou do nome que lhes dávamos. Mas recordo-me da miudagem algazarrando rua abaixo, rua acima, ocupando as casas em construção, encontrando esconderijos nos sítios e lugares mais bizarros, dessa miudagem que se procurava sem medo, rancor ou manias, que partilhava com a mesma alegria um carro telecomandado (recebido de um tio de França) ou um simples carrinho de linhas, daqueles de madeira, que as mães gastavam no tempo em que as mães ainda sabiam usar a agulha e o dedal…

Tristemente estes jogos, essa miudagem, aqueles dias encantadores desapareceram. Primeiro devagar, depois tão depressa que mal pude compreender como se desmoronava o melhor dos mundos.

Ao descer as terríveis escadas em V perguntam-me risonhos se sempre encontrei os meus brinquedos. Uma estranha perturbação impede-me de responder, de compreender sequer o que seja encontrar um tal tesouro. Se pudesse; se houvesse um tal primeiro prémio de lotaria; se me fosse dada a oportunidade de trocar tudo o que conquistei por um regresso, ainda que breve, a tais dias distantes… «Sim, sim, sim… os brinquedos estão bem guardados. Melhor é que assim continuem, onde e como estão»!