A SOLIDÃO

Willy Marthinussen
Fotografia de Willy Marthinussen

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A televisão ainda ligada não tem réplica. O som atravessa as paredes, evapora-se ou subsome-se, não sei, transforma-se em rumor, decompõe-se em nada ou alcança o tudo, não sei. Sobre o sofá o homem respira. O sofá é invólucro da mesma tristeza: ganhou as formas do corpo, prende-o, afunda-o, dita-lhe uma espécie de submissão. Agosto. As esplanadas vemo-las à pinha, animadas, repletas de um sentimento confuso de narcisismo e inquietação. Não longe da sua praia, do seu jardim, da sua discoteca da moda. Férias de verão. Gargalhadas e ditos prazenteiros fendem as ruas. As luzes aclaram os becos, tornam acessíveis a torre da catedral e as margens do rio, por onde barcos se remansam e namoram. Há lojas abertas até tarde. Os turistas pagam com gosto. A felicidade é mais barata aqui e agora. Em contrapartida, do outro lado destas palavras, o aparato de paredes sombrias, o rumor de uma televisão, o verão decaindo, entrincheirado.

O homem ergue-se a custo. Enverga uns velhos calções de malha, uma t-shirt desbotada, uns chinelos miseráveis, pensamentos, pensamentos, pensamentos. Etilizados. Desconexos. Aborrecidos. Absurdos, na maior parte. Decadentes. A cair na nuca, ao ritmo dos goles de cerveja e de vodka, às vezes. O homem, dizem, foi outro homem. Nunca se sabe bem o que torna um homem noutro homem. Escreve. Dizem que escreveu a tarde toda. Menos e pior do que se desejaria. Escreveu.

«A noite fecha-se sobre mim. Engole, prende-me ao chão. Tenho o corpo rente a outro corpo, respiração com respiração, suspenso. E é quando as palavras são mais silêncio que o peso delas mais pesa. Como pedras chocalhando na cabeça, magoando o coração, ensanguentando a boca, elas pesam. Tenho o corpo rente à terra, rente à respiração das suas veias, rente aos túneis que escavam em profundidade até ao nada. É a consciência. Escuto tudo: a terra, a respiração, a torpe moleza dos meus pensamentos: como fui capaz de tornar-me nisto? Isto 

«A noite é um saco plástico, asfixiando. Arde-me nos pulmões. Os anos que tenho acumulados ensinaram-me pouca coisa. Aprendi de menos. Talvez seja, ao fim e ao cabo, um imbecil! Na ponta dos dedos, sobressalta-me um resto de prurido. O corpo, preguiçosamente, responde com desânimo. Talvez não seja ainda tão tarde. Respiro na respiração do vazio. Nunca é assim tão tarde. A voz inaudível da terra repercute-se nas minhas veias. Não, nunca será assim tão tarde!» 

«A noite abre alçapões temíveis, memórias, corredores interditos, escadarias para o além. Solipsista? Talvez! Nosomaníaco? Li Cioran. Niilista, antes mesmo de o ler. Incapaz de compreender o mal de que padeço, se porventura de algum padeço! Os outros não valem sequer o esforço de os sopesar na minha língua. E, apesar disso, sei que me olham como a um borra-botas. Um roto. Um descalço. E talvez não mereça o chão que trago aos pés. E talvez caminhe só e tortuosamente, como um louco. E talvez o silêncio seja já a soma de todos os ruídos que não distingo! E talvez pergunte, como outrora num poema, EXISTO?» 

«A noite revolve as entranhas, o negrume, as falsas gavetas do tempo. Sinto tudo. O ar que perfura cada alvéolo e sai de supetão, num movimento de fuga pelo espaço. As paredes cardíacas, trepidantes, monstruosamente vivas sob a pele. Os pássaros necrófagos que vêm empoleirar-se diante dos olhos. Sinto tudo. O ser e não ser da matéria. O eco. A dor macia do coração abrindo e fechando. A paz que o sono traz, quando por fim me deixo vencer. Sinto tudo. Tudo!» 

«A noite corre e escorre. Escorraça. A noite é uma espécie de morte branda. E a morte é um belo pedestal. Imagino-me morto, desintegrado, limpo, esquecido. Imagino-me da mesma liberdade dos átomos rebeldes. Corpo reingressado no cosmos. Sem medo agora da malha das metáforas, das alegorias, das ideias. Sem medo de caminhar, perdido na eterna revolução das partículas.» 

«A noite fecha-se sobre mim. Engole-me. Em breve o sono virá. Nada temo!»

O homem ressona. Ao redor, um pasmo de objetos derrubados, conspurcados, inutilmente empilhados. Lixo. O homem sabe que em breve pertencerá à mesma casta das formas não-existentes ‒ da não-formiga, da não-estrela, da não-gota de água, da não-poeira. Dorme. A televisão, sempre ligada, emite sons ininteligíveis. Do lado de fora, nalguma praça principal, risos e falas contentes. Cães ladrando. Automóveis circulando devagar. Tilintar de copos. Portas abrindo e fechando e abrindo. Lâmpadas e candeeiros. Poderosos holofotes. Torres de telecomunicações. Um helicóptero. O trapézio da Ursa. Constelações. O espaço.

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