UMA MAÇÃ

S. J. Carter - Apple
Fotografia de S. J. Carter

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Houve um momento na minha vida em que as expressões «cirurgia», «recobro», «cuidados intensivos», «cateter», «convulsão», «estável» e outras afins foram estranhamente próximas. Estava desempregado, mas isso não era importante. A minha namorada quis acabar tudo: eu esqueci-lhe o nome num mês.

Lembro-me é do hospital. Das zonas húmidas. Dos cheiros seguindo-nos pelo corredor como fantasmas. Das janelas gradeadas abrindo para um jardim inculto, onde gatos tristes miavam para nós com infinita tristeza. Lembro-me dos botões do elevador, das dedadas no espelho, dos restos de fita-cola onde antes teria existido um AVISO da administração. Lembro-me finalmente dos maxilares, que me doíam ao aproximar-me do quarto onde o meu pai convalescia. Lembro-me do odor intenso a cremes gordurosos, a emplastros e compressas, a óleos e loções usados na enfermaria da secção de Cirurgia Plástica. Esses cheiros ainda hoje os sinto, como sonhos complexos transbordados dalgum depósito da minha memória.

As mais das vezes sentia-me só, desamparado, alvo desse cruzar de rostos que é como o entrechocar de pedras no espaço. Sentia-me só. Desamparado. As árvores lá fora continuavam árvores, os aviões os mesmos aviões riscando o céu, a cidade a mesma cidade. E, porém, eu sentia-me profundamente desamparado e tudo era diferente, como se as árvores fossem outras árvores, os aviões outros aviões, a cidade uma estranha paisagem insuflável, tremendo debaixo dos meus olhos.

Vivida na primeira pessoa, alimentada pelo nosso coração, uma história é realmente HISTÓRIA. E, tal como sucede a uma povoação dizimada por um terramoto, por uma tempestade, por um incêndio descomunal, a minha história era já uma vida nova a recomeçar, enxertada numa existência em ruínas.

Aconteceu-me ser surpreendido um par de vezes por circunstâncias ainda mais extraordinárias do que as que vivia já ‒ até no decurso de um cataclismo se pode alcançar uma certa normalidade. Aconteceu ser surpreendido pelo lugar vazio onde esperava ver um doente abatido e traumatizado. «Complicações» é o nome que se costuma dar a este tipo de surpresas. Nunca as visitas chegam a perceber bem as causas e os efeitos imediatos das ditas «complicações», nem o que nelas há de incúria e incompetência dos serviços hospitalares, que se defendem e escondem num emaranhado vocabular, repleto de tecnicismos e impessoalidade. As visitas compreendem apenas a gravidade das coisas com duas singelas, cruas, desumanizadas frases:

‒ Sinto muito! Houve uma complicação!

Habituei-me ao vagar das horas. Ao desfilar dos pijamas e dos adesivos em cruz. Ao ar zangado das batas brancas. Ao ar insosso dos tabuleiros com massa e ervilhas. Aos gatos tristes lambendo-se entre os arbustos feios. À luz fria das ambulâncias. Habituei-me à solidão das máquinas de café. Ao desamparo dos grandes relógios do corredor. Às viagens de cá para lá na autoestrada sombria.

Havia uma médica bonita. A única boa impressão daquele lugar naquele tempo era os olhos rasgados da médica anestesista. Havia um banco comprido, de madeira, anacrónico, no meio do corredor. Uma ou outra vez nos sentámos juntos para o «ponto de situação». Era uma médica metódica, incapaz de multiplicar palavras acessórias. Para exemplificar e ilustrar o que dizia socorria-se de um bloco de notas, onde desenhava órgãos e sistemas e metabolismos e crises, com setas e sinais de movimento, como se veem nos manuais de Medicina. Tratou-se sempre por «você», embora não existisse entre nós diferença de idade. Tratou-se sempre por «você», mesmo sem ter usado a palavra «você» uma única vez. Quando pretendia conversar comigo mais a sério pedia a uma enfermeira que chamassem «o filho». Abria a porta do seu gabinete com um sorriso formal, forçado, diplomático; fazia com a mão o sinal do «entre», do «sente-se», do «oiça-me, se faz favor». Começava sempre (começou sempre) por um «receio não ter boas notícias». Lembro-me que o desamparo era maior junto da médica bonita. Lembro-me de a minha cabeça vogar à toa, aturdida pelos prefixos e sufixos atarraxados a palavras dolorosas, meio enigmáticas, totalmente desconhecidas… Lembro-me de pesquisar, de ver dia após dia dissiparem-se os últimos farrapos de inocência. Vivida na primeira pessoa, alimentada pelo desespero, todas as histórias se tornam cicatrizes, cicatrizes indeléveis e imortais…

Certo dia, quando atirava a cabeça para dentro das mãos, como se atira uma bola de basquetebol, quando penava no mesmo banco anacrónico a meio do corredor, quando esperava que as lágrimas renunciassem ao ofício fácil de saírem da toca obscura, sentou-se na outra ponta um dos sujeitos de pijama e robe da ala norte. Olhei-o por entre os dedos, apanhado pelo desconforto da sua presença. Era um homem de meia-idade, como o meu pai. Um homem com um horroroso penso a meio da garganta, franzino, barba mal aparada, farripas desgovernadas e oleosas, olhar vazio, alma caída sobre uns chinelos comuns de quarto. Senti ímpetos opostos: levantar-me, ficar, cumprimentá-lo, esperar que fosse embora… Na verdade tinha uma vaga ideia do indivíduo. Alguém me dissera algo sobre ele não «bater bem da cabeça». Não pude confirmá-lo. O facto é que o nosso silêncio, o seu olhar vazio, o mútuo desconhecimento, o tê-lo na outra extremidade do mesmo banco curto e anacrónico tornava o instante demorado e embaraçoso. Inesperadamente ouvi estas palavras perfeitamente inesquecíveis:

‒ Não faz ideia das saudades que eu tenho de comer uma maçã!

Endireitei a cabeça. Julgo que o tronco também. Tenho a certeza que todo o meu ser (de alto a baixo) se endireitou. Considerei o homenzinho com surpresa, estupor, perplexidade. Considerei o curativo sobre a laringe, o olhar espetado contra a luz magra do outono, o robe de malha impregnado de todos os odores que faziam daquelas quatro paredes enormes um território devastador.

‒ Não pode comer maçãs?

‒ Pois não…

Seguiu-se um silêncio duplamente comovido. Infeliz.

‒ Pois não… Há dois meses e meio que não provo sólidos… tiraram-me um cancro… nem sequer fumava muito, sabe?… agora não posso comer coisas duras…

Licenciei-me em Línguas e Literaturas, venci prémios escolares e literários, fui aclamado em comícios políticos, assinei ensaios, fiz pós-graduações, dei aulas durante a centenas de alunos… Era ali, contudo, um osso lascado, um pedaço de tijolo, uma coisa inerte. Não pude erguer uma só palavra sábia, razoável, de conforto.

‒ Passo bem sem as outras coisas… mas das maçãs, não faz ideia! Sinto cá umas saudades de comer uma…

Nada pude dizer. Pela primeira vez na minha vida percebi na boca, na cabeça, nas entranhas, uma voragem de palavras e pensamentos. Incapaz de dizer, como hoje sou incapaz de calar: o homem, sempre com o mesmo olhar vazio, sempre com a mesma tristeza, leve como empalhado, levado pelo mesmo vento silencioso que o trouxe, foi-se afastando pelo corredor, passo lento, cada vez mais frágil, cada vez mais gravado na memória.

O meu pai regressou a casa após um mês e um dia de internamento. Do sujeito pouco pude apurar depois disto, sequer o nome, sequer o resultado da sua luta. Penso muitas vezes na maçã que lhe apetecia, na maçã que desprezamos dia após dia, enquanto nos distrai uma multidão de coisas inconfessavelmente estúpidas, superficiais, inúteis. E sei (há sempre uma lição, com sublinhado, no final das melhores histórias) que uma vida completamente nova irrompeu em mim, nascido em algum baldio da alma, vinda pela boca de algum anjo da guarda: quem sabe, quem sabe…

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SÓ PARA TE AGRADECER, VICENTE!

Serban Mestecaneau
Fotografia de Serban Mestecaneau

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Gosto da tua maneira simples de pensar. Simples, clara, objetiva. Entras-nos pela vida dentro como um canalizador, trajando fato-macaco, com a mala das ferramentas na mão, verificando o problema, passando os dedos pela comissura da boca e, antes mesmo de haver a possibilidade de uma queixa, atirando a resposta.

‒ O teu problema, Zé Carlos, é que te metes sempre com miúdas… Estás a precisar de uma gaja a sério…

Peço-te para falares mais baixo. Há gente a olhar. O que não se dá hoje em dia por uma boa novela ao vivo e a cores? Mas tu ignoras os decibéis apropriados a uma intervenção de fundo em áreas tão sensíveis. Tu és mais de descarregar a ferramenta toda, de te pores à volta dos canos martelando-os com uma chave de fendas, franzindo o sobrolho a cada pancada seca, fazendo aquela careta de quem está prestes a dar com a ratada), tu és daqueles que não engonham, dos que têm sempre uma imensa certeza profissional.

‒  Meu amigo, isto é assim: ou mandas tu, ou mandam elas! Mulheres e carros são iguais: as novas trazem mais eletrónica, mas deixam-nos ficar mal em qualquer barranco… Já as velhas, pá; as velhas aguentam tudo! Até levar no…

‒ Caramba, homem! Fala mais baixo…

Sei que no fundo tens razão. Sei que no fundo sou um fraco. Quando me divorciei da Dulce as coisas pareceram-me o fim do mundo. Mas tu, qual anjo do Apocalipse, apareceste carregando uma trombeta dourada.

‒ Olha-me só este marmanjo! Só te falta chorar e pedir que te limpem os moncos!

A princípio odiei-te. Odiei-te como se odeia um inimigo. Quis esmurrar-te a cara. Tive ganas de exigir respeito. De marcar território. Mas sou no fim de contas um fraco. E tu tens o diabo do calão e os trejeitos de um cómico a teu favor. Falas das coisas como se passasses descalço pelas brasas sem te queimares. Sabes fazer-nos a caricatura sem maldade, mas com malícia.

‒ Meu amigo, isto é assim: as gajas são como as caldeiras de aquecimento. Primeiro avaria-se o radiador, depois a bomba de circulação. Quando dás por ela fodeu-se a centralina, depois a sonda da temperatura, por fim o acumulador… Por muito que queiras consertar a coisa, aquilo já não aquece. Mais te vale comprar uma nova! Entendes-me?

Sei que no fundo tens razão. As coisas não podem marcar-nos para sempre. Um indivíduo precisa de levantar a cabeça, entender-se consigo mesmo, rebuscar o sopro das coisas passadas, encarar o futuro, vencer… Mas eu sou daqueles que preciso de um empurrão. Sou daqueles que só lá vai com um pontapé no traseiro. E quando te peço a opinião já a conheço. Adivinho sempre o que dirás, mas preciso de escutar tudo. Preciso que fales grosso, que me agarres pelos colarinhos, me insultes, me ponhas em sentido.

‒ Mas porque te enfias tu na cama com essas tipas mimadas, pá? Nunca ouviste dizer que quem se deita com miúdos…

‒ Acorda molhado…

‒ Mijado, Zé Carlos! Acorda todo mijadinho, pá!

Conto-te as coisas, explico o desta vez, defendo-me. A voz às vezes treme, some-se. Quero falar grave, mas um soluço vem espreitar como a cabeça de uma lagartixa. E tu, que és um tipo impecável (tolo, mas impecável), lá me confidencias coisas que talvez sejam mentira…

‒ Pá, a Dulce está um caco! Dá-se mal com o outro gajo… Vi-a há duas semanas… Está um caco, pá!

Os amendoins custam mais a engolir. A cerveja parece ferver. Porcaria de cerveja. Fazem-na cada vez pior… E tu dás a estocada final.

‒ Sempre te digo que tipos como tu merecem o melhor! As gajas gostam de bater com a cabeça, pá… Problemas delas… Tu mereces melhor!

Nunca te disse isto. Mas preciso de dizer que te admiro! Nunca to disse, mas hoje vou dizê-lo. Mereces que to diga isto como se diz uma mariquice, como uma golfada de água límpida e abundante, vinda lá das entranhas da terra.

‒ És um tipo impecável, Vicente!

‒ Ora, deixa-te lá de coisas!… Então, pá? Que é isso?…

Porque a vida nos faz viajar quilómetros. Porque a vida nos empurra devagar e ao mesmo tempo depressa, como se empurra uma manada, para o centro do seu próprio labirinto. E um indivíduo acorda às vezes com a sensação de já não conhecer o caminho de volta.

‒ És um amigalhaço Vicente!…

‒ Está bem, está bem… Deixa-te de coisas, pá…

Porque às vezes acordamos com aquela sensação de habitarmos um inferno. E o inferno é (ou tem-me parecido), a alienação, o esquecimento, a perda. E quando sabemos exatamente o que vale ao todo a nossa existência ficamos a olhar do alto de um abismo a pequenez que nos coube em sorte.

E por isso gosto da tua maneira simples de pensar. Simples, clara, objetiva. Entrando-nos pela vida dentro sem tardar e sem filosofias, como um canalizador com a mala das ferramentas, mastigando o palito, confiando o bigode, sabendo antes mesmo de ver de ver o problema a solução.

‒ Precisas de uma mulher a sério, Zé Carlos!

‒ Preciso, Vicente! Preciso, sim!

Porque às vezes acordamos com aquela sensação de habitarmos um inferno. E mal podemos imaginar o anjo da guarda que, miraculosamente, algo ou alguém guardou para nós. Mal podemos imaginar… mal podemos…

SEMPRE GOSTEI DAS SUÍTES DE BACH

Norbert Maier
Fotografia de Norbert Maier

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Venho passear neste parque quando os dias, como sacos de gelo, pesam estranhamente sobre o corpo e o paralisam. Venho para estar só. Para não ter de olhar para o visor do telemóvel. Para não precisar de ir ao Facebook. Venho para escutar os meus passos na terra molhada. Para ler devagar os meus pensamentos, com a precisão de uma quiromante a inspecionar-nos as linhas enviesadas da mão. Às vezes venho com o cão, mas muitas mais atrelado apenas à minha sombra. Ultimamente é de silêncio que preciso. E de verdade. Preciso de vir para poder continuar a acreditar nessa coisa ampla, desconcertante e bela que é a vida. 

O parque é enorme. O maior da cidade. As árvores são quase todas centenárias. O lago a meio, que no verão se enche de turistas e de gansos selvagens, é neste mês uma espécie de espelho petrificado. Nele, como na cabeça de um velho, há memórias prisioneiras. E eu sinto os vidros boiar, quebrados por funcionários diligentes, a quem cabe impedir que os peixes morram lá em baixo, asfixiados e sombrios. O parque é uma clareira brutal entre os arranha-céus. Uma das minhas personagens inquieta-se. 

‒ Devia haver gente a fazer o mesmo às pessoas. A impedir que tetos e paredes frias, transparentes e intransponíveis as afastem umas das outras. A impedir que uma solidão irremediável as faça morrer sozinhas. Não acha? 

Respondo que sim. Que devia haver funcionários capazes do milagre de impedir que tetos e paredes de gelo construam solidão. Capazes de tratar das pessoas como se trata dos peixes neste lago! Respondo que uma terrível maldição se abateu sobre a mais inteligente das formas animais, a ponto de a destruir por dentro. A ponto de lhe apodrecer o coração, que é o mais valioso que as pessoas têm dentro de si. Respondo que sim. Respondo que andamos todos a falar de afetos com ciência, mas sem afeto. Respondo que os parques são lugares onde talvez pudéssemos todos aprender um pouco com o silêncio. E com ele chegar à verdade. E com ela chegar à razão por que festejamos as datas e nos entregamos a uma espécie de euforia coletiva quando as datas chegam e nos comportamos como se soubéssemos o que as datas celebram, sem sermos capazes daquilo que celebramos! 

Sempre gostei das suítes de Bach. Sempre gostei de me entregar ao devaneio matemático dessa obra-prima do século XVIII. Sempre gostei da paz e do amor que nelas transborda do homem e o religa às estrelas e às coisas mínimas. E é por isso que hoje caminho pelo parque com os headphones postos; com o cachecol embrulhado no pescoço; com as personagens partilhando as minhas luvas de pele, olhando o mesmo que eu, questionando o que há muito se tornou em mim uma insaciável interrogativa. 

‒ O que significa acreditar? 

Por estes dias a cidade converteu-se, como seria de prever, numa insaciável feira de cifrões, luzes e reclames natalícios, vagas insinuações de hinos de amor e promessas de paz, alusões à fé e à esperança na humanidade, tudo muito entremeado por produtos de alta tecnologia, roupa interior e marcas de vinho. 

‒ O que significa acreditar? 

A cidade converteu-se em filas irascíveis nos mercados, insultos nos parques de estacionamento, azedas obrigações familiares que o cartão de crédito atenua. 

‒ O que significa acreditar? 

Como os antigos santos afasto-me, refugio-me nos possíveis lugares de eremitério. Por exemplo neste parque enevoado e vazio. Por exemplo na escrita. Por exemplo em cada um dos seis movimentos (prelúdio, allemande, courante, sarabanda, galanteria, giga) das seis maravilhosas suítes que Johann Sebastian Bach compôs para violoncelo. Com elas me aproximo dessas vozes que dentro de mim rodopiam e me interrogam, me fazem abrir portas e janelas sobre os domínios obscuros da razão. 

‒ O que significa acreditar? 

‒ Não sei, porra! 

Como posso saber o que significa acreditar quando me ensinaram o verbo, tanto a propósito do puto nascido numa qualquer gruta ancestral da Palestina, como dos cimos do poder, dinheiro, conforto, supremacia, a que a humanidade se propôs desde sempre? 

‒ Não sei, porra! 

Venho passear neste parque quando os dias, como insuportáveis alucinações, me desgostam e me tornam vítima da pele que herdei. Quando, como hoje, desacredito profundamente na humanidade, na hipócrita humanidade que me ensinou a hipocrisia! Venho para estar só. Para não ter de olhar para o visor do telemóvel. Para não precisar de ir ao Facebook. Venho para dizer Não sei, porra!, para escutar com emoção, com uma profunda paz interior as suítes de Bach, para escutar os meus passos na terra molhada, para compreender o peso deixado pelas minhas botas no tempo e no espaço!

‒ Não sei, porra!

Não sei o que significa acreditar. Se ao menos pudesse a humanidade valer-se a si mesma, cuidar dos seus próprios males, cumprir metade dos seus sonhos… Se ao menos meia humanidade gostasse das coisas que não têm preço, que não se compram, que não se oferecem embrulhadas… 

Venho para estar só. Venho passear neste parque quando os dias, como sacos de gelo, pesam estranhamente sobre o corpo e o paralisam. Ultimamente é de silêncio que preciso. E de verdade. Não sei o que significa acreditar. Sei tão-só que nalguma parte do universo, nalguma galáxia ou hipergaláxia, nalguma nesga física ou metafísica do espaço-tempo, algo ou alguém terá resposta para essa pincelada de ilusão que nos submerge, algo ou alguém capaz de abrir brechas na redoma de gelo que, como aos peixes de Hyde Park, nos ameaça asfixiar nesta manhã fria de dezembro…

CRÓNICA DO DEPOIS

Mirjam Delrue
Fotorafia de Mirjam Delrue

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No fim acabamos sempre nisto, fogo roendo as entranhas, labaredas encarquilhando a alma, combustão pulverizando o silêncio… Tu sabes como é fácil um incêndio deflagrar, contaminar tudo, espalhar-se… Basta ver como dançam as chamas, ver como são levianas, enganadoras… E não falo das chamas-chamas, físicas, químicas, comburentes. Falo de amor. Falo da desilusão! Tu sabes, do amor! Labaredas roendo as entranhas, chamuscando, devastando, consumindo, ardendo mais alto, reduzindo tudo a pó!

Durante anos olhei para nós sem suspeita. Fomos felizes, casados, comprometidos! Partilhámos corredores na mesma empresa, cafés, conversas, confidências… Depois dividimos piropos, promessas, alianças. Trocámos tudo pela mesma casa, pela mesma cama, pelo mesmo sonho. Tudo muito sincero (nada na minha vida foi tão sincero como as coisas que fiz e quis ter feito contigo): viajámos juntos, cozinhámos juntos, comentámos juntos o filme com o Leonardo Dicaprio e a Kate Winslet, fizemos amor juntos (não, não é incomum um casal fazer amor em separado!), juntos fumámos muitas vezes o último cigarro do Marlboro comprado só para as ocasiões especiais (porque, felizmente, nem eu nem tu fumávamos fora dessas ocasiões), juntos revimos a vida, refizemos promessas esboroadas, renascemos (com gel de banho Dove e quantidades massivas de uma ternura nova e desconhecida) debaixo do mesmo chuveiro!

No fim de contas isso!

Isso, a razão por que anda o mundo como anda (aos trambolhões, diga-se). Isso, o substrato filosófico de teses de vinte volumes. O epistema que pesa nos óculos descaídos do estudante de Física e o obriga a examinar pela milionésima vez ao microscópio ultrassofisticado. Isso, o que fervilha na testosterona e o que faz mexer as cotações da bolsa. Isso que é o suprassumo da coexistência social, ou (como diria o respeitadíssimo doutor Sigmund Freud), o dínamo da espécie! Isso! O amor, caramba!

No fim acabamos sempre a pesá-lo numa balança de braços! Sabes do que falo. Falo do amor, do rumo inexplicável das coisas, porque as coisas seguem sempre rumos inexplicáveis ‒ digamos que elas fogem ao nosso controlo ou que reagem ao nosso controlo! As coisas são como são e o amor é como o bom tempo ‒ um dia farta-se do sol! Foi assim que as peúgas sujas no tapete (sabes bem que eu ia arrumá-las se me desses tempo) formaram um cataclismo; foi assim que os teus berros se tornaram demasiado agudos, se tornaram agulhas insuportáveis (avisei várias vezes que não me falasses nesse tom); foi assim que a tua mãe ganhou ares de bruxa, sempre com palpites, sempre a resmungar, sempre a meter a colherada. E tu conheces-me, sabes que não sou homem de levar um estalo sem reagir com um murro (falo em sentido figurado, tu conheces-me, sabes que sou um figurão); foi assim que as coisas começaram a perder o sentido… Houve uma ocasião em que deitei fora um maço de tabaco, sem ter sido encetado sequer!

As coisas seguem sempre rumos inexplicáveis. E tu bem vês: o casamento é como um frango da guia. Sabe bem, mas quando se dá por ela a felicidade é um prato repleto de ossos. Podemos fazê-lo acompanhar de arroz e batatas em palito, mas o gozo acaba depressa! Quero dizer, acabámos nós um de cada lado, eu a dizer mal de ti, tu de mão dada com outro fulano… Primeiro cheguei a julgar que te matava. Depois que morria! Cheguei a julgar que fosse ciúme. Ou remorso. Ou apenas mau perder… Mas não! Aquilo era só a impressão de tempo perdido, de apatia, de descrença na humanidade. Aquilo era só o meu quero-lá-saber! Se tivesse a hipótese de apagar tudo, como se apaga as linhas de giz numa ardósia, tenho a certeza de que o fazia! Sem pestanejar, juro-to! Não por ressentimento. Apenas por comodidade. Só para evitar qualquer possibilidade de me misturar a ti quando estou a lambuzar-me um hambúrguer e te vejo a passear aos sábados, no Centro Comercial, com um tipo-cara-de-kokeshi. Apenas para impedir estas labaredas a estalar no estômago cada vez que me esfrego com Dove no duche e sinto a falta do teu corpo colado ao meu. Unicamente para não ter de ouvir a tua voz sempre que preciso de preparar uma mala de viagem e te imagino ainda a azucrinar-me. Somente para não ficar arrependido cada vez que faço uma pausa para café lá no escritório e não me apetece tomá-lo com nenhuma das miúdas novas e me ponho a espiar-te, de saia curta (cada vez mais subida), sorriso enorme, a tagarelar no bufete com o sobrinho do patrão, o snob amaricado com quem andas agora…

Juro que não é mau perder. Nem remorso. Nem ciúme!

De maneira que o lume de que falo me irrita. Irrita-me lembrar de novo as coisas que foram sólidas e um dia, sem mais nem quê, afundaram num aparato de transatlântico partido em dois, nos icebergues do Mar do Norte. Irritam-me todas as metáforas de fogo e de gelo em que pendulamos, em que cirandamos nisto do amor, como se fôssemos macacos pendurados nas grades de uma grande jaula e essa jaula fosse o destino! E tu sabes como detesto o destino! Ou a ideia de haver um destino!

Sempre imaginei o dia em que, velhos ambos, seguíssemos juntos por uma alameda de árvores em direção ao paraíso. Talvez me entendas (acredito que no fundo me entendes), sempre imaginei um jardim enorme, e nós os dois, de mão dada, amparando-nos um ao outro, como dois troncos velhos e inseparáveis. Sempre imaginei que, apesar de tudo, seríamos os dois no fim…

Mas afinal dou por mim a cismar nas chamas da lareira, tu agarrada a outro, eu a cocar o teto, tu a imaginar-te feliz, eu a escrever crónicas idiotas, tu a tomar conta de ti e a tomar conta dele… Já notaste a leviandade das chamas! Vê só como são umas ardilosas! Basta ver como fingem dormir num leito sossegado e dão, num instante, em explodir, em varrer tudo ao redor, em reduzir a um farrapo a felicidade eterna! Dou por mim a cismar nas chamas, a repetir baixinho versos de Garrett. O divórcio tem-me feito sentir uma dor esquisita. Uma pontada, uma dilaceração, um mal-estar que não sei o que é, mas que não é ciúme, nem remorso, nem (juro que não é) mau perder…

Dou por mim a cismar nas chamas, «Ai! não te amo, não; e só te quero / De um querer bruto e fero…», fogo roendo as entranhas, uma dor nova ‒ digo-te ‒, como encontrar em cima da mesa um prato cheio de ossos, e ter fome, muita fome, e não apetecer nada…

PESSIMISMOS E HAPPY-ENDS: UM GUIÃO, O FILME

Sven Fennema
Fotografia de Sven Fennema

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Acordei esta manhã encavalitado num ponto de interrogação: porque somos todos tão pessimistas? Todos, sim! Ou quase todos! A esmagadora maioria dos espécimes da espécie! Pessimistas, avessos à ideia de sorte, descrentes de que o happy-end ainda se vende nos mercearias antigas e nas lojas gourmet, aziagos, autorrebaixadores, soturnos… Porquê?

Eu sou um dos tais…

A vida deu-me sempre com o rolo da massa e é caso para dizer que me habituei a caçar o meu quinhão de felicidade e a fugir através de buracos impossíveis na parede. Sou dos que acham que isto não vai passar, que isso não tem remédio, que aquilo não se resolve num passe de mágica. Sou dos que pedem por favor que não me massajem as costas com meia dúzia de palmadas amigas e o ego com duas frases exclamativas. Sou dos que pensam que a minha equipa ainda vai sofrer um golo nos cinco minutos derradeiros do jogo e que desaba num pranto se a minha tem só meia hora para empatar a porcaria do jogo… porque é-me inato descrer na possibilidade de um golo salvador a meia hora do fim!

Eu sou dos tais, dos derrotistas, desse partido principal de homens e mulheres calejados…

E, contudo, acordei esta manhã a meditar em factos inegáveis e objetivos históricos… Escapei com menos de dois anos aos ataques da bronquite e da asma… Escapei a um atropelamento aos doze… Mais tarde a um aparatoso acidente de viação… Escapei a uma peritonite apendicular aos vinte e um… Escapei, aliás, a quase todas as ites que vêm certificadas na legislação (otites, gengivites, gastroenterites, a uma parotidite infeciosa). Escapei intacto a todas as turmas de todas as escolas por onde passei, como professor, formador, estagiário ou simples assessor pedagógico (muitos afundaram nestas selvas não cartografadas)! Escapei a manobras partidárias e a habilidades políticas. Escapei aos desgostos, às perdas, às renúncias e aos vexames… Escapei até ao tribunal terrível do espelho e aos castigos da consciência, algures no alçapão da alma (ou do córtex cerebral)! Ainda não morri neste país demente e corrupto!

Pessimista até dizer chega…

E, porém, esta manhã acordei rodeado por um silêncio de pássaros cantando (peço encarecidamente que saiam e batam a porta, se se põem para aí, do outro lado da parede branca, a assinalar-me paradoxos, oxímoros e nonsenses). Acordei desempregado, mas saudável! Abatido pela fadiga, mas depois de uma noite intensa de escrita! Triste, mas feliz! Porque acordei! Porque aqui estou, diante vós, confessando-me pessimista em greve, derrotista em crise, se calhar (afinal) talvez um pouco, um pouco mais, se calhar bastante otimista, vencedor até agora nos palcos em que vida e morte debateram posições e se convenceram de que o seu jogo de xadrez deve continuar.

Acordei agarrado à bengala de uma profunda meditação.

Porque nos acontece (não raro) desatarmos a questionar tudo. E quando digo tudo, quero dizer tudo! Mais ou menos como quando decidimos arrumar umas coisas na garagem e damos por nós a remodelar a casa, a pintar paredes, a trocar de carro! E eu acordei assim, triste, feliz, falando em voz alta para mim mesmo em silêncio, perguntando, respondendo, questionando.

Que raio! Porque não levantar o traseiro e fazer alguma das coisas que sempre quisemos ter feito? Porque não meter na cabeça de uma vez por todas que somos tipos fantásticos, com humor, charme, inteligência? Porque arrastar, como uma sombra, como o peso de uma maldição, a crença de que acabaremos mal, enxotados, sarnentos, lambendo as feridas? Porque não preferir a luz limpa de uma narrativa boa, com final memorável? Se os amigos não faltam? Se a cabeça (mesmo muitas vezes no meio das nuvens) continua acesa e a fervilhar de ideias? Se o coração cicatrizou de todas as punhaladas e ainda bate?

Talvez tenhamos nascidos gauches, como o outro… Mas não nascemos avessos à simpatia, nem à confiança, nem à certeza de que quem iniciou este filme (com um argumento de tal qualidade) o pode terminar melhor ainda. Deus, os deuses, as leis da Física Quântica, todas as leis do universo, parecem ter sabido sempre acomodar as coisas. Admitamo-lo: a própria existência é um acidente feliz.

Bebo, por isso, o meu café matinal com aquela sensação de que algo em mim aconteceu, de que qualquer coisa transmudou, como quando uma areiazinha saiu finalmente de debaixo da peúga atormentada (isto é uma forma de falar). De resto, o mais extraordinário dos epílogos, como num filme de mestre, é aquele de que nada sabemos, de que pouco suspeitamos, em que nos resta esperar. E este (o da vida), não duvidemos, pá: é película para limpar os Óscares todos! Oh, se é…

UM POVO QUE NÃO AMA A POESIA É UM POVO ESTÚPIDO: PONTO!

Victor More
Fotografia de Victor More

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Aceitemos o facto: nós, os portugueses, estamo-nos positivamente marimbando para a poesia. Acrescentemos essa a outras famigeradas sinas: nós, os portugueses, damos o litro a escrever poesia, mas estamo-nos nas tintas para a poesia dos outros. Nós, os portugueses, como os demais povos que já foram um dia burgueses, que tiveram já na sua História a fase do ócio, da novela e dos sonhos cor-de-rosa, gostamos é da Carochinha. Matemática, ópera e poesia é que não! Que horror! São abstrações que dão trabalho (levam séculos a aprender) e tempo é coisa de que nós, os portugueses, não possuímos. Em regra, depois das séries da TVI, do futebol e das tricas políticas, nós, os portugueses, mal conseguimos olhar para a filharada, para as contas nos envelopes por abrir ou para o aviso do condomínio. 

Não custa nada aceitar. Basta aceitar! O facto é este: na terra de Fernando Pessoa, o tuga gosta é do Tony Carreira. Camões é fixe, mas desde que deixou o Benfica é só uma glória enfeitada na praça com merda de pombo. Antero de Quental, Camilo Pessanha, Jorge de Sena, Sophia, Torga são uns chatos que às vezes aparecem mesmo à frente dos nossos olhinhos, escritos nas placas toponímicas. Devem ter sido bons atores de algum Big Brother primitivo. Mas esta rapaziada, este mulherio bronzeado da TVI, este luxo de mamas de silicone e cabelo à moicano depressa faz esquecer os cotas do passado. É a lei do tempo. É tudo sempre a correr. Que o digam os portugueses, que mal começam a ler uma extensa reportagem de dois parágrafos no jornal do metro têm de se interromper, visto a saída ser na estação a seguir. O facto é esse. Aceitemo-lo. Nós, os portugueses, estamo-nos a cagar para a literatura, especialmente para a poesia. 

Pela parte que me toca, contento-me com a meia dúzia de amigos que põem gosto nas minhas publicações do Facebook. Está lá a foto. Está lá a hiperligação. Está lá a citação de qualquer coisa (lidimamente poética) que publiquei no blogue. Tudo muito limpo, muito virtual, muito apelativo. Contento-me em publicar digitalmente, porque entretanto (reza-se por aí) a crise chegou às editoras, que gostam muito dos novos, lhes admiram a coragem, lhes vaticinam prosperidade, mas que entretanto lhes fecham as portas. Menos aos novos já consagrados. Esses são vinho de outra pipa. Esses sempre vendem alguma coisita que dá para cima de quatro dígitos. Desde que escrevam de vez em quando (pode até ser; muitas vezes é) um mau romance. Só para acertar as contas, equilibrar números, projetar a imagem… 

Claro que um poeta pode ter sucesso. Imenso, aliás. Nem precisa de se esforçar por aí além. Pode atirar-se às rimas. Poder aguçar a redondilha. Pode treinar primeiro com quadras de S. João. Ganhar um prémio ajuda. Depois é só pedir um patrocínio à Junta de Freguesia, ou à Câmara, ou ao primo que tem um negócio de fazendas. E lá sai uma «Seara de Versos», umas «Folhas Avulsas», um «Parnaso Popular». Depois é vê-lo faturar! Basta impingir um exemplar a cada cliente, no fim de lhes engraxar os sapatos e limpar as mãos aos desperdícios. Basta estar à porta da igreja, no final da missa. Basta pô-lo no Talho da Dona Rosalina, ao lado dos chouriços e do salpicão! 

Também eu comi o pão que o diabo amassou para chegar às livrarias. Consegui-o a custo, engolindo sapos, entretendo-me com vigaristas, perdendo o tempo a fazer de conta que acreditava nas explicações. De toda a poesia que fiz sair em livro não lucrei até hoje um cêntimo. Exceto, claro, o que ganhei nos prémios. O país não tem como pagar a abundância de génio e de candidatos ao Dicionário da Literatura do Professor Álvaro Manuel Machado. De resto, «direitos de autor» é uma daquelas expressões que provocam asma. Tosse-se muito quando se pronunciam as três palavras. Um tipo com vinte e poucos anos imagina-se a dar autógrafos, a responder às entrevistas, a ser conhecido na rua. Só a calvície faz compreender (mais vale agora do que depois) o sujo pragmatismo do dinheiro. Faz-se perguntas à mesa do café. Volta-se a tossir muito. A conversa, como a viagem daquele agrimensor de Kafka, não leva a lado nenhum… 

Um tipo, por maior poeta e boa pessoa que seja, farta-se. Um dia diz «Puta que pariu esta merda!». Um dia chega mesmo a ameaçar «Meu grande filho da puta, quando pagas o que me deves?». Diz outras coisas afins (limito-me a citar), mas acaba por desistir. Os poetas são seres instáveis, cansam-se depressa, não sabem senão pensar em metafísica. Prova a história (e a fonologia também) que decência não rima com editor. E um poeta, ainda que vibre fundo o desespero, acaba por encontrar outra solução. 

Estamos na época da edição de autor. Estamos a voltar ao começo, ao tempo em que Camões, com Os Lusíadas manuscritos debaixo do braço, ia mendigar esmola para pagar a tipografia. Saibam os portugueses que o caché no tempo de Camões era ridículo. Não, portugueses, era tanga aquilo há pouco: Camões não foi jogador do Benfica. Não, Camões, não era o tipo do Conta-me como foi! Quer dizer, também havia um Camões no Conta-me como foi. Mas estamos a falar doutro Camões, portugueses. Este Camões era poeta: um desgraçado; passou pessimamente. Para compensar deram-lhe um feriado. Sim, portugueses: o 10 de junho! Não, portugueses: tenho a certeza de que Camões não jogou no Benfica! 

Mas os feriados são caros — não queiramos ouvi-lo da boca do Primeiro-Ministro! Não conto, portanto, que me deem um. Nem que me fique o nome gravado numa tabuleta, depois de uma rotunda, ou à entrada para um beco sem saída. Nem que me leiam (com voz rouca, pose melodramática, lágrimas nos olhos) nos saraus semanais da associação cultural e recreativa, sita na rua-de-não-sei-que-antigo-ministro-do-ultramar. 

Contento-me com a minha meia dúzia de leitores. Com a perspetiva de que melhores dias surjam no horizonte e com eles uma geração inteligente, capaz de saborear um poema como se saboreia um pitéu; capaz de ler um poema como se lê a bula da Aspirina, com inteligência e sobriedade; capaz de ensinar aos filhos um poema como se ensina um conto popular ou uma adivinha… E não digo um poema recolhido do Jornal de Notícias. Digo um poema de Luiza Neto Jorge, um poema de Nuno Júdice ou um poema de Herberto Helder. 

Estou a exagerar? Não, nós, os portugueses, é que estamos demasiado acostumados ao pouco. E a pouquidão (a palavra existe e assenta-nos que nem uma luva) não nos tem levado senão a preservar nos genes, com o passar dos séculos, contra o ardor da História (como num frigorífico) a mesquinhez, a futilidade e a inveja. Por contraponto, um povo capaz de vibrar com um bom poema será (é) um povo inteligente, sensível e evoluído. 

Não peço glória. Peço um povo em condições. Foda-se, portugueses! Isso é pedir muito?

DUPLO! SEM GELO, SE FAZ FAVOR!

Whiskey
Fotografia de English

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Improvavelmente tornámo-nos amigos. Não perguntámos o nome. Aceitámos partilhar o balcão e uma garrafa de uísque. Tem um certo gosto por frases elaboradas. Com o mate melhora. Às vezes cai para o teatral. Mas não me importo: tornámo-nos amigos, aceitamo-nos com as impurezas. Prefiro que caia para o teatral do que para o lamechas: um homem bêbado fica a isto (a isto, olhai bem para o minúsculo hiato entre os meus dedos) de se lançar ao choro. Deus nos guarde de um bêbado chorão. Gosta de inventar o meu amigo. Agora, por exemplo, puxa um guardanapo, destapa a caneta, embebe-a com um minúsculo ponto de tinta preta.

«Veja você: a minha vida é isto. Um mundo rodeado de vazio. Vê este branco todo ao redor do pontinho? É a minha vida. Eu sou um ponto final no meio do nada. Não termino nenhuma frase, não anuncio nenhum futuro. Sou apenas um borrãozinho no meio do nada. Inútil e desamparado como isto!»

Acho piada ao meu amigo. Tem um ar de tipo importante. Cheira-me que por detrás desta máscara, deste gentleman esfarrapado, há muito coração lá dentro. E dinheiro também. É ele que paga a conta. Quando tentei pagar da primeira vez quis bater-me. Paga sempre com notas grandes o meu amigo. Suspeito que paga o bocado de companhia. Homens há que preferem as putas. Outros carros de luxo. Outros fugir para o Tibete. Este quer-me a mim (passe a expressão) para se emborrachar coloquialmente.

«Sabe qual é o dia que mais detesto na semana, sabe, meu amigo?»

«Aposto que o domingo!»

«Errado!»

«Eu cá odeio o domingo!»

«Nã!…»

Tropeça um pouco, ameaça rodopiar sobre si mesmo, mas detém-se. Um copo de ótimo scotch é uma âncora na mão de um homem, não sei quem o disse já. O tipo aguenta-se. Faz com a boca o esgar de quem vai contar um segredo.

«A sexta.»

«A sexta?»

«Iá.»

«Então porquê?»

«Porque a seguir vem o fim de semana… Conhece você por acaso pior desculpa do que o fim de semana?».

Mostro-me surpreso.

«Sabe, você, qual é a diferença entre a minha mulher e um velório»?

«Pois… não faço a mínima ideia.»

«Veja lá, somos dois!»

E solta uma gargalhada que lhe faz mancar as cordas vocais.

O meu amigo tem gargalhadas cómicas, daquelas que provocam o riso dos parceiros de ofício. «Boa, boa!» aplaudem do lado. Não, esta apanhou-me. O meu amigo dava um comediante dos bons, está visto!

Mas depois, mudando de registo, resguardando-se na filosofia, empurrando-me para uma espécie de confissão, mano a mano, reflete, explica, aclara:

«Um tipo engana a mulher uma e outra e outra vez… Acaba, mais dia menos dia, por chegar ao seu perdão! Mas quando à sexta-feira à noite esse mesmo tipo vai para casa, como se fosse para o seu próprio funeral, será que algum dia se irá perdoar?»

Se calhar este malandro é daqueles que têm sempre um trocadilho na ponta da língua. O Jack Daniels torna-nos maus juízes do quilate dos trocadilhos. Sente-se o ar espesso do bar, a vontade de sair. Mas o tipo já regressou à comédia. Todos aqui adoramos o fulano que nos paga mais uma rodada, enquanto nevoeirento, arrefecido, o Tejo lá ao fundo se esvai, se esgueira para o Atlântico, feliz por deixar esta terra de pacóvios. Julgo mesmo tê-lo escutado desabafar, uma ou outra vez, quando me aliviava contra a parede dalgum contentor no cais: «Safa! Aqui nunca mais me apanham!»

Exagero.

Exagero sempre que me ponho a narrar as minhas coisas de boémio. No fundo, sou tão estúpido que ainda não consigo olhar de frente o desastre. Prefiro olhá-lo nos olhos do meu amigo misterioso. O tipo é do caraças. Até usa gabardina no inverno. Tem as suas semelhanças com o Bogart. Quando o conheci reparei no modo como fumava. Um ator, sim senhor. Chegou ao balcão e pediu sem se engasgar:

«Tire lá uma garrafa de Macallan. 12 anos, faz favor!»

Não havia.

«Então, Talisker. 10 anos».

Também não.

Contentou-se com Jack Daniels. E rapidamente nos convocou a todos para o seu círculo. Bom tipo. Tipo tristíssimo. Amigo do seu amigo. Mal o conheço. Podia jurar que somos amigos.

No fundo, sou tão estúpido que ainda não consigo olhar-me de frente. Um velório, diz ele. Como se não houvesse outros modos de ter conhecido a morte. Como se o amor não fosse a maior sacanice, a maior vigarice que inventou a espécie.

«Sim, aceito outro. Duplo! Sem gelo, se faz favor!…»

SEMPRE FUI UM GÂNGSTER

Christophe Verdier
Fotografia de Christophe Verdier

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Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Batoteiro, apaixonado, zaragateiro, intempestivo, amante da tarefa acabada. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos — sejam poemas, sejam acertos de contas — porque um bom filho da mãe não deixa nada a meio; um bom filho da mãe gosta de morder o cigarro enquanto conduz à noite e faz grandes reflexões, com Coltrane, Chet Baker ou os Morphine (se for mais da minha onda) em fundo; um bom filho da mãe distingue as boas das más ações, mas assume-as a todas sem medo, sem hipocrisia e sem moralismos. Um bom filho da mãe tem um orgulho verdadeiramente gangsteriano naquilo que faz e, arrisco dizer também, em recusar aquilo que não faz!

E o que não faz um gângster? Por exemplo?

Por exemplo lamber botas! Por exemplo pôr-se com merdas quando tem que encarar um tipo desprezível (e há tipos desprezíveis, meros rebentos de infâmia e dejeção, a quem não pode ser concedido sequer, na pior aceção — a que lhe confere o topo da escala social — o título de gângster) e explicar-lhe sem rodeios que são uns merdas! Por exemplo declinar a oportunidade de dar uma bofetada a um palerma que fala em direitos e esquece as obrigações. Por exemplo perdoar um tiro a outro filho da mãe que anda há muito a pedi-las e sabe que anda. Por exemplo aceitar palmadinhas nas costas de tipos que usam fato às riscas, botões de punho, sapatos de verniz e perfume a 500 euros o frasco de 100 mililitros.

(Faço um parêntesis para emendar o raciocínio e impedir conclusões apriorísticas: nunca dei um tiro a ninguém! Por manifesta falta de formação específica na área, circunstância que aliás muito penaliza o meu perfil mafioso. Mas não o lamento! Sou um mafioso bom, devo insistir!)

Sempre tive, assim como assim, uma queda para o bandido. Porque a cabeça de um indivíduo pode esconder um laboratório de malfeitorias. Vilezas puras, como roubar a Shakespeare meia dúzia de versos e tomar de assalto um coração puritano. Patifarias como mandar às urtigas um curso superior e ir à procura da felicidade onde ela se encontra, nas montanhas do Tibete ou dos Andes, nos fiordes da Noruega ou entre as cow-girls do Texas. E quem diz o curso superior diz outras coisas superiores como a herança, o casamento ou os amigos no clube social. Um biltre que faz uma maldade destas, que se mete à estrada com a viola às costas e sem mais vontade que a de pensar em si (cantando «And a new day will dawn for those who stand long,/ And the forests will echo with laughter») merece, senhores e senhoras, um enorme aplauso… É um infame, que deixa para trás os estudos, uma família furiosa, uma ex-mulher vingada na justiça, um grupo de snobes. Mas que merece, senhores e senhoras, um aplauso do tamanho do mundo! Um aplauso do tamanho do futuro! Os gângsters fazem coisas destas…

Eu fiz! Rejeitei noites de prémios onde me queriam bem vestido, barbeado, perfumado. Matrimónios que me impunham a máscara de manso, do amestrado, do maridão. Compromissos políticos onde me desejavam seguidista, cacique, acéfalo. Universidades que me pediam teses bem escritas, ortodoxas, balofas. Editoras onde me exigiam paciência, más contas, conformismo. Amigos que me brindaram sempre com esquecimento, silêncio, por-favores! Um pulha faz coisas destas, faz coisas muito piores, fá-las sem pestanejar!

(Faço outro parêntesis para explicar que estas ditas outras coisas muito piores me não são estranhas. Uma vez rejeitei um cargo assaz cobiçado numa dada prestigiante instituição, porque gostando do cargo e da instituição depressa compreendi que me usavam em modo de arma de arremesso, ou como castigo político para quem até aí o exercia. E eu disse que muito obrigado, mas não!)

Eu faço coisas destas. Sempre fui um pouco gângster. Até usei barba, boina, charuto. Até li os pensamentos anarquistas de Rousseau e os de Godwin. Li todos os romances de Mario Puzo e em tempos devorei uma biografia do Al Capone. Até usei toda a poesia de todos os tempos para ser poeta a tempo inteiro (mesmo quando assalariado). Usei-a para chantagear intelectual, moral, civicamente. Máfia pura! Até me servi de uma t-shirt do Che Guevara (uma que dizia «Yo no sé porque me pongo una camiseta del Che») para conquistar os favores de uma guevarista de olhos verdes no sul de Espanha.

Sempre fui um pouco gângster. Um aldrabãozeco! Um facinorazinha com dever de consciência, desta mesma consciência de que me sirvo agora e muitas vezes para renunciar às tentações, enganações, seduções, opressões e obsessões de Satanás. Multipliquei adversários e inimigos. Tanto na literatura, como na rua. Gosto de me recordar deles, enquanto afio as facas e limpo o fuzil dos meus pensamentos (admito ser também um adorável fazedor de metáforas parvas). Gosto de me recordar também de torpezas quando ando depressivo e não encontro o isqueiro ou um café aberto à noite. Uma boa luta, uma pirraça das melhores, um cagaço dos grandes mantêm-nos vivos, já o repetia o Zé do Telhado.

Pela minha parte limito-me a ser discreto, entrando de mansinho na cena, com os Morphine em fundo, janela aberta, o fumo do cigarro misturando-se à neblina, o carro levando-me ao hotel combinado, o dedo em riste, a alma limpa, a noite prometendo — amor, companhia, uma boa história…

Sempre fui um pouco gângster. Um gângster bom, arrisco dizer. Não me pesa demasiado afirmá-lo. Como todo o gângster em condições gosto de serviços limpos. Eficientes. Na hora. Senhores e senhoras, por aqui me esgueiro: boa noite!

O QUE É UM GRANDE POETA?

Poeta, poema, rua
Fotografia de Gerard Sexton

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O que é um grande poeta? Sim, um poeta, digamos, da dimensão de Homero? De Safo? De Petrarca? De Shakespeare? De Baudelaire? De Breton? De Celan? De Herberto Helder? O que é preciso em rigor para se ser um?

Um professor de literatura garantia há não muitos anos que a comparação de grandezas, fosse entre poetas, impérios ou galáxias, depende muito mais do nível de satisfação sexual dos observadores do que da massa, densidade, tamanho ou longevidade dos observados. A frase chocou. Uma vez, duas, três vezes, sempre. Porque este professor de literatura parecia não levar nada a sério, mesmo quando publicava artigos capazes de rivalizar em erudição e hermetismo com Husserl, Russell, ou Georges Steiner. «A grandeza ou a pequenez é, antes de mais, coisa para se averiguar na casa de banho [sic], com a ajuda de uma vulgar régua de desenho…» Extravagâncias…

Não que não existisse por ali uma pontinha de génio, como anotaria Eça de Queirós. Não que não houvesse mesmo um fundo de verdade, uma frincha para a luz, digamos, porque havia. Havia até uma resposta para essa malsinada pergunta que me ocupa o título da crónica e a cabeça, não agora, mas desde os vinte anos. Porque alguma coisa subsiste de inútil na comparação de factos, de factos que só seriam efetivamente comparáveis num universo regular e coerente. E o nosso é tudo menos regular e coerente. Menos ainda eterno. Um dia destes as estrelas apagam-se, as galáxias esgarçam-se, o Big Bang perde a sua imensurável força, encolhe (ou será que explode? Ou que implode?) e cá se acabam as comparações…

Mas, mas (e insisto no mas), um leitor de poesia sabe distinguir o poema que agrada do poema que faz tremer as mãos. Sabe diferenciar o poeta bom, que se saiu (afinal) bem com a aguardente de medronho, do poeta que nos leva às lágrimas. Não falo dessas lágrimas sujas de rímel e pó de arroz, mas daquelas que verteu Mecenas e Otávio César Augusto: lágrimas de espanto. De incrédulo reconhecimento da perfeição. De agradecimento!

O leitor de poesia sabe comover-se com a Ilíada. Uma epopeia, uma batalha que decorreu (se é que alguma vez teve realmente lugar) algures na costa turca, onde os gregos (ou os seus antepassados) semeavam uma zona de influência. Homens matam, homens morrem, uns heroica, outros covardemente. Outros sobrevivem. Um, o mais singular de todos, volta as costas à querela, furioso com o chefe da sua hoste, o pastor dos homens, que o maltratou… O leitor de poesia vê que os deuses conspiram, (uns por despeito, outros por amor), vê que as mulheres e filhos dos troianos se assustam com o fragor das sucessivas batalhas. Que esse terror é ainda o nosso terror, que essas mães e essas crianças são ainda as nossas e foram as de sempre, em toda a história ensopada de sangue, que é a nossa!

Em contrapartida, o leitor cansa-se com a interminável subida das almas ao Purgatório de Dante. Sente-se torturado pelos maneirismos de Gôngora, nos floridos de Boileau, com as exasperações românticas de Byron. E coça a cabeça (por não saber muito bem o que achar deles) ao ler alguns poemas do Pessoa ortónimo, que são muito alarido inteletual, muito enfatuamento estilístico, um não-ir-a-lado-nenhum, como um cachorro em círculos, abocanhando a cauda…

Porque a mesma infinita embriaguez que nos faz delirar lendo em voz alta ou em silêncio, as grandes odes de Walt Whitman, Álvaro de Campos ou André Breton, a mesma corrente elétrica que percorre os textos megalómanos de Ruy Belo, a mesma satisfação que se sente no final dos inteligentes poemas de Wisława Szymborska ou Tomas Tranströmer, a mesma finura e delicadeza que entrelaça os versos de Elaine Feinstein, a mesma densa metáfora de Salah Stétié, a mesma musicalidade de Fiama Hasse Pais Brandão – particularmente na última fase –, é a que nos faz amadurecer a razão para a grande poesia de Píndaro, Anacreonte ou Alceu, para o poder de concisão (e precisão) da poesia japonesa, para o gosto pela luz crepuscular (primeva versão da nossa saudade) da poesia árabe, para a vastidão filosófica da poesia persa, para a metáfora metapoética da poesia chinesa (a que primeiro denotou um amor narcísico pelo desenho gráfico), para a violência dos elementos da poesia escandinava, etc…

A questão mexe por dentro, como um pinto dentro do ovo: o que é um grande poeta? O que distingue um fundador de um imitador? Um poeta capaz de atingir a essência de um poetastro que a circunda eternamente? Um Homero de um Horácio? (Porque Horácio nunca me seduziu, nem mesmo na famigerada Epístola aos Pisões) O que separa a água consoladora de um poema de Lorca, Auden ou Jabès da água tonta, inquinada, ácida de tantos e tantas que se dedicam a multiplicar títulos, a elogiar perversões, a gastar ideias, a alimentar mediocridade, a repetir, repetir, repetir…

O que é, em suma, um grande poeta? Um poeta do clube restrito de Omar Khayyām, JalāladDīn Rūmī, Pierre de Ronsard, Arthur Rimbaud, Rainer Maria Rilke, T. S. Eliot ou Sylvia Plath? Um que não desmerecesse a companhia de Kavafis, Pessoa ou Miłosz?

«Uma bizantinice, uma questão de lana caprina!» garantia o reputado professor de literatura…

Mesmo assim, quem deixa de o perguntar?

Não será um grande poeta, aquele que ocupa a estante principal da nossa biblioteca? Aquele a quem conhecemos composições inteiras de cor, a quem citamos o vulnerável equilíbrio de uma verdade incrustada nas suas palavras? Não será um grande poeta, aquele que, por (in)voluntário incitamento, por seu exemplo, por sua inspiração, por contagiante mestria, gera outros grandes poetas? Não será aquele que, pretendendo-o ou não, acaba por produzir palavras, textos, ideias que nos servem de referência – como de referência são os Evangelhos e o Corão, a bondade universal, a palavra ahimsa e o nirvana, o amor de uma mãe, a limpidez da água numa nascente, ou a fraternidade entre todas as criaturas no nosso mundo?

Um grande poeta é uma resposta, provavelmente individual, provavelmente consensual, ao espaço mais fundo que a consciência, a fé, a memória e o sonho demoraram a construir em conjunto no nosso espírito! Um grande poeta ocupa o lugar vazio que a vida sublimemente cava com o passar dos anos. E só ele pode ocupá-lo, como só ele pode desocupá-lo.

Quando lemos no Canto VI da Ilíada o desespero de Andrómaca, o susto de Astíanax, a réplica enternecedora de Heitor, é precisamente esse vazio o que nos permite absorver cada pedaço da cena e amar cada uma das belas palavras com que Homero nos solda ao sofrimento das personagens: («Homem maravilhoso, é a tua coragem que te matará! / Nem te compadeces desta criança pequena nem de mim, / desafortunada, que depressa serei a tua viúva.»; («Todas essas coisas, mulher, me preocupam; mas muito eu me / envergonharia dos Troianos de longos vestidos, / se tal como um covarde me mantivesse longe da guerra.»

Quando se lê ao longo dos vinte e quatro maravilhosos cantos deste poema símiles, sentenças, imagens, metáforas semelhantes a «palavras apetrechadas de asas», «a morte chega a quem nada faz e muito alcança», «a escuridão cobriu os olhos», «Por toda a terra espalhava a Aurora o seu manto de açafrão», «Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens.», é ainda a sublime poesia a que nos imprime a mais viva emoção de um encontro: o que une a gramática à prosódia, a sabedoria e a transfiguração estética.

Colecionei com os anos incontáveis volumes de poesia de todos os tempos e lugares. Com eles forro o meu escritório e o meu quarto, procurando resposta a essa que julgo ser uma questão fundamental. Porque saber o que é um grande poeta é ser capaz de reconhecer o que é a poesia na sua dimensão mais pura. Leio-a todos os dias. Leio-a desde sempre. E, com Simone Weil, creio bem que nenhum poema se superiorizou, ainda, ao canto homérico, particularmente ao de Ílion.

Assim sendo, um grande poeta será sempre o mais parecido que houver de ser de Homero. O mais parecido que houver de ser da espantosa vivacidade da Ilíada, da coexistência de carnificina e amor, sublime poético e calão, arcaísmos e uma notável intemporalidade na leitura da condição humana…

Porque é a intemporalidade a que arbitra a questão. E é essa intemporalidade de Homero (seja ele um único homem, ou vários) a mais espantosa resistência e a melhor prova de o primeiro amor é o melhor amor de todos!

CRÓNICA DO VELHO ADOLESCENTE

Ivan Slosar
Fotografia de Ivan Slosar

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«O melhor lugar do mundo é onde nos apetece ancorar a alma.» Não sei quem afirmou isto, se o devo atribuir a algum dos meus livros, ou se na verdade o pensei e escrevi eu próprio. A frase ginga na cabeça e é bela, apetece apanhá-la a caminho de um parágrafo. Sinto-me tão bem aqui, a tomar conta dela. Aqui, à beira-mar, a ler um dos poucos jornais portugueses que se aproveitam. A ler-lhe mais precisamente o suplemento de viagens que sai uma vez por semana. Sinto-me tão bem aqui, a cismar na eterna questão da casa que sonho construir. E a desejar construí-la em geografias que a sugestão onírica me faz desejar, geografias tão remotas como o Japão ou a Islândia, uma ilha mediterrânica ou o Brasil…

Vem-me à memória também a outra frase — «A nossa casa encontramo-la onde encontramos a nossa felicidade.» — provavelmente outra daquelas sentenças engenhosas, sem autor, que nasceram com a humanidade; provavelmente outra frase tão vadia quanto a própria humanidade que a engendrou; provavelmente na cabeça de alguém em trânsito pelo mundo, em busca de casa e felicidade… Provavelmente!

Entretenho-me a passar os olhos pela revista e a cogitar na vida («Cogito ergo sum», reza Descartes). Os últimos tempos, não falando sequer de outras mercês, têm-me proporcionado mãos cheias de leitura e de reflexão: a revista a explicar-me que o maior glaciar da Islândia se chama Vatnajökull, como devo e quando devo ir à Islândia, onde posso dormir e comer na Islândia, e eu a considerar que os vulcões da Islândia e os lagos de água quente da Islândia e os nutridos rebanhos da Islândia podiam bem ser um caminho para mim. Entre ascetas, seria mais um!

Mas depois, alguém entorna um copo. O feitiço quebra-se com o olhar de uma mãe, que se pasma para a faceirice da sua bebé, ao colo. Logo me acode que, entre neves eternas e centrais geotérmicas, me desfariam as saudades da Salomé.

A revista passa então a propor-me a Borgonha dos bons vinhos. Nunca deixei de acalentar a ideia de me retirar para uma dessas vilinhas francesas, com o seu castelo medieval e com as suas colinas recortadas de vinha. Aprenderia a linguagem das uvas, entranhando-me na terra e nos taninos, imitando esses leigos que chegam do EUA e da Austrália para se entregarem à missão última das suas existências — comprar meia dúzia de hectares de terra, deitar abaixo velhas culturas monacais e plantar castas das melhores Pinot Noir, esperando que ao cabo de anos, ou mesmo de décadas de pura obstinação, emergisse por tentativa-erro, como nas histórias dos cientistas, o prodígio de um vinho divino.

Porém, eu sou pouco versado em fermentação de uvas. Não posso declarar-me discípulo de Rudolf Steiner, nem de Nicolas Joly. O que me levaria a habitar os escuros e húmidos domínios dos lagares e das caves, onde o precioso néctar se conserva como se conserva um segredo? Provavelmente falta-me o sentido dessa alquimia, que dos gregos se transmitiu aos romanos e dos romanos aos mosteiros de toda a Europa… Sou um enólogo incapaz, para quem uma garrafa do melhor maduro de Borba contenta tanto quanto a pior zurrapa de Alenquer. Falta-me língua!

É um bom suplemento de jornal, este, o que seguro nas mãos. Não se impacienta com as minhas recusas. Apresenta-me devaneios tão variados, tão irrecusáveis, que num momento me faz subir a Victoria Peak, em Hong-Kong, e noutro descer as formidáveis Cataratas do Niágara. Leva a interessar-me tanto pela casta Moulay-Idriss, como pela babilónica Bangkok. A não menos me seduzir pela Buenos Aires de Borges do que pela Estocolmo de Tranströmer. O devaneio é cosmopolita! De resto, ler e pensar são a parede de vidro de dentro e de fora do eu. Por instinto, por gosto pessoal, por formação e hábito, gosto de me exercitar em ambas. Gosto da escrita que banha na distância. Gosto deste suplemento!

«O melhor lugar do mundo é onde nos apetece ancorar a alma.» Não sei se o velho adolescente que sonhava atravessar, como Rimbaud ou Indiana Jones, desertos e desfiladeiros, selvas e mares adversos, já morreu. Nem se os seus motivos ainda permanecem na mesma cabeça e no mesmo coração que os acalentou: ir de comboio ou de barco, de camelo ou a pé pelos lugares onde a poesia se recita ainda nas pedras vermelhas e no horizonte dourado das palmeiras… não deixar que a fortuna ultrapasse a mochila com a máquina fotográfica e os cadernos de viagem!

«A nossa casa encontramo-la onde encontramos a nossa felicidade.» repito a mim mesmo. Sinto agora esse abandono que nos chega sem querer pela mão invisível do vento.

Abandono, essa bela palavra que significa tanto hoje como nos dias de Bashô. Abandonar uma crença, um estilo de vida, pessoas, a casa primitiva, tudo! Tudo o que for preciso por causa do melhor lugar do mundo. Seremos ainda capazes? Serei?

Não, não quero escrever sobre a escrita. Não mais. Os últimos tempos têm-me mostrado o inevitável vazio da escrita em efeito de espelho: a imagem que se reflete a si mesma é um corredor oco, povoado de espetros descarnando-se até ao infinito. Retomo, por isso, as duas frases que se enlaçam, que principiam a torturar-me, que de súbito dão em conspirar contra a minha consciência, contra o muito que perdi nas últimas duas décadas. Retomo-as porque nos últimos tempos essa casa, essa missão, essa felicidade, me parecem tão improváveis como dolorosamente inúteis. «Estou como doente, como incapaz de procurar» diz uma das personagens de Thomas Mann.

E porque estou sentado numa esplanada, e porque leio o jornal, porque me ponho a cismar nas grandes questões que ocupam o nervo ciático da humanidade, fico tão absorto, tão estúpido, tão longínquo que não vejo, por exemplo, a minúscula metáfora enorme de um formigueiro fluindo debaixo da minha cadeira: uma lenta procissão, acumulando imperturbável (aqui sobre o empedrado como na mais recôndita floresta da Amazónia) as migalhas da vida.

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Abandono, essa bela palavra que significa tanto hoje como nos dias do poeta-soldado Bashô. Abandonar o conforto e as certezas, abandonar essa prisão do medo que nos impede de viver. Abandonar velhos amores pela possibilidade do amor…

Eis porque fecho o jornal e, triste talvez ainda, provavelmente ainda infeliz, ainda insatisfeito não o duvido, me consolo com a bela luz de maio — esta que me traz de volta a mim mesmo, essa que como infinitas migalhas de esperança me faz erguer, caminhar com pressa, com urgência, de regresso ao carro, à vida, ao tempo perdido!