Sempre em frente

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Fotografia de Tookapic

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Ao inverter a marcha, os pneus desenham no saibro desolado a imagem, o som inesquecível de uma despedida. A noite é gélida e oca, inútil como a casca de um fruto seco. O que soa por dentro agora é um chocalhar de palavras soltas, cascalho, memórias de uma ferocidade extrema. A imagem e o som de uma despedida. Os pneus chiam levemente sobre o alcatrão. A cabeça é um deserto. Curvas, solavancos, travagens repentinas. Frases desconjuntadas e assassinas, como pedras pontiagudas. Depois, outra vez a marcha. E a cabeça distante, como naqueles dias em que atiramos seixos ao rio. Como naqueles dias em que fazemos círculos à toa no caderno. Como naqueles dias em que acendemos fósforos por acender e nos hipnotizamos com a chama mortiça de uma recordação. A noite é um ventre. Uma prisão. Sufocamos.

– Um dia perceberás o que te quis dizer…

– Um dia perceberás o que acabas de perder…

Subitamente, cega-nos o clarão de um pensamento. Holofote doloroso, o remorso. Depois, subitamente, a raiva. O acelerar do carro. O cheiro da embraiagem, da borracha queimada no asfalto. O incêndio da razão.

– És um merdas… Sempre foste um falhado…

– Merdas és tu… Não te admito, ouviste…

A melancolia é uma peçonha. Voltamos a ouvir o velho álbum dos Röyksopp. Voltamos a pensar nas coisas por fazer (o atraso é agora desastroso, incomensurável, irreparável). Voltamos a desejar nunca ter saído da cabeça adolescente. As viagens. Os livros. As memórias límpidas. Os cadernos perfumados pelas longínquas especiarias.

– Porra…

A melancolia é um poço. Cismamos. Todo o nosso ser é, de alto a baixo, um pilar em queda. Um império prestes a desmoronar-se. As antigas dúvidas são as novíssimas dúvidas. Os velhos dilemas pesam agora como o próprio ar que se bebe em travos arfantes. Vetustas cicatrizes abrem e sangram. Quem somos nós, porra?

– És um merdas… Bem que me tinham avisado…

– Ouve… Tem lá cuidadinho com que o dizes… Não te admito…

Havia, outrora, outro caminho. Havia neste corpo outra pessoa. Os pensamentos correm como chispas alucinadas. As imagens sobrepõem-se, atropelam-se, obnubilam. Há em nós um azedume de fiasco. De prejuízo. De tempo perdido. O carro resfolega.

– Porra…

Bem gostaríamos de acreditar naquela frase do Eugénio. O nosso destino somos nós. Então, por que carga de água, queremos estas mágoas a repetir-se. Esta vileza de nos esmagarmos contra o nosso próprio sonho. Porquê?

– Um dia perceberás o que te quis dizer…

Não, definitivamente estamos fartos. Saturados. Incapazes de tolerar, transigir, perdoar. Basta. Curvas, solavancos, travagens repentinas. O maldito semáforo. Esta covardia de respeitar o vermelho. Não seria mais fácil irmos sempre em frente, sem filtros, arrependimentos, considerações metafísicas? O que quer que sejamos é agora um peso, uma ninharia, um farrapo (sabemos sempre manusear tão sabiamente as metáforas aniquiladoras). Somos um bocejo. Uma esquírola. Uma vergôntea feia. Uma secreção. Somos ridículos. O carro quase adormece…

– Um dia perceberás o que acabas de perder…

Apostamos que do outro lado alguém se ri desta balofa, incompreensível, miserável frase de recurso. Talvez a maldita sorte ande a mofar de nós. A noite engole-nos. A noite cresce. A noite devora estes e todos os outros argumentos vãos. O clarão dos holofotes cega-nos. As lágrimas podem agora, finalmente, tropeçar nos escombros. Como autómatos, os pneus conduzem-nos. Estamos a caminho de algum lado. Estaremos sempre em caminho. A maldita cabeça repete, como o eco através da garganta, «Não colecciones dejectos o teu destino és tu.» As feridas doem. Nunca presumi que não devessem doer. Bem gostaríamos de acreditar naquela frase do Eugénio. Voltamos a desejar nunca ter saído da cabeça adolescente. As viagens. Os livros. As memórias límpidas. Os cadernos perfumados pelas longínquas especiarias. A estrada é em frente. Apenas em frente. Sempre em frente.

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Isto

Micha Rainer Pali
Fotografia de Micha Rainer Pali

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Ultimamente rasuro muito. Rasuro folhas de papel reciclado e rasuro pensamentos. Rasuro conversas e silêncios. Rasuro convites para almoçar e idas ao cinema. Rasuro velhas preferências e a possibilidade de encontrar para elas um remédio, um remendo, um refrigério. Rasuro planos e sonhos e antigos devaneios de adolescente. Rasuro intenções, recordações, ilusões. Rasuro até a música, até Mozart, Bach, Ravel, Debussy. Rasuro. Quero dizer, rasuro imenso, sem contemplações, sem piedade, sem meios termos, sem pensar duas vezes, sem me importar com os destroços, sem imaginar a incomensurável tristeza da nossa pessoa em cinzas, sem meditar devidamente na dor incontida do tempo escoado à toa, desperdiçado, imprestável, empeçonhado, desvivido…

Por vezes acontece-nos isto.

Precisarmos de recomeçar tudo. Precisarmos de recomeçar tudo do zero. De recomeçar abaixo de zero. De recomeçar do lugar maldito onde nos encalhou a alma.

Por vezes é assim.

Precisamos dos ossos estatelados, quebrados, macerados, precisamos de fazer com eles um tripé, um bordão, uma escada. Precisamos de sair do poço. De seguir em frente. De sentir a dor e vencer a dor e sentir que é nossa outra vez a vida que sempre foi nossa.

Por vezes não há outra forma.

É quando estamos fartos. Quando desconfiamos que fizemos tudo mal. Quando descobrimos que fomos desonestos com a consciência. Quando esgotamos o repertório de truques, malabarismos, fantasias e nos vemos olhos nos olhos.

– Chiça, que merda é esta?

Quando percebemos que levámos os olhos à pior das miopias. E nos damos conta de que nada nos liga já à infância. E se tornou evidente que a vida que temos pela frente é a partir de agora uma questão de tudo ou nada. Quando não suportamos a misericórdia das promessas. E sabemos que há outro modo de ouvir Mozart, Bach, Ravel e Debussy. Outro modo de tocar as palavras. Outra forma de enlaçar os pensamentos. De preferir. De querer. De aceitar. De partilhar. De recordar. De planear. De pertencer. De resistir.

Porque às vezes há outra forma.

Os domingos deixam de ser tão horríveis. As noites deixam de ser tão implacáveis. As doenças deixam de ser tão definitivas. Os ataques de rabugice deixam de ser tão veementes, dementes, consequentes.

Porque às vezes é assim.

Precisamos de dar pontapés, murros, cabeçadas à nossa teimosa misantropia. Precisamos de reaprender a respirar. Precisamos de ouvir sobre a nossa falta. Quero dizer, da falta que fazemos. Precisamos que nos lembrem que há um chão onde nos esperam de pé. Precisamos de encontrar uma boa resposta para todas as grandes perguntas.

Porque às vezes é assim.

Aprende-se a somar e a subtrair o mau humor, os narcisismos, egoísmos e snobismos, os arroubos infantis, os arroubos antissociais, os arroubos de toda a espécie, os vícios, as más finanças, a profissão detestável, as teimosias, as hipocrisias…

– Chiça, que merda é esta?

Um tipo rasura, rasura, rasura. Vê-se diante do espelho, considera, cisma, reflete, encontra a prova de que é humano e sempre foi. Um tipo sente em si a verdade, sente-a circular num jorro de catarse ao longo da alma, entre as pregas do cérebro, nos ossos, do posponto da pele às secreções. Um tipo limpa-se. Um tipo lava-se. Um tipo reconhece-se. Um tipo queima a pele velha. Um tipo entrega-se a uma cura sem tempo certo. Rasura o caderno, rasura os pensamentos, rasura as conversas, rasura o silêncio, rasura os convites para almoçar, as idas ao cinema, rasura os planos e os sonhos, os devaneios de adolescente, rasura intenções, recordações, ilusões, rasura até a música, Mozart, Bach, Ravel, Debussy, rasura tudo, tudo, tudo! Porque às vezes não há outra forma e há esta forma. Porque a solução é um milagre pessoal e não há certezas. Porque não há somente isto. Isto. Quero dizer, isto!

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Uma promessa que te faço

Fotografia de George Vintila

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Todas as pessoas prestam. Mais que não seja para nos ensinarem a preciosa lição de que não podemos confiar nelas.

Que saudades, avô!

Massajo a cabeça com o champô, sinto o frio rodear-me o corpo por todos os lados, a chuva a cair do outro lado da parede, o sono a puxar-me de longe (da infância), os minutos a passar lentos, velocíssimos, o jato de água quente deslizar de novo, por mim abaixo.

As pessoas são como as árvores!

Como as árvores, avô?

Como as árvores. Uma vezes são da terra, outras vezes são do céu, outras vezes são de debaixo, de muito debaixo, do último pedaço de raiz, tão escondidas como o Diabo.

Enxaguo-me. Já tão exausto, como se estivesse a preparar-me para a cama. Já tão distante, como se pertencesse a outro tempo. O felpo a lembrar-me a ferida na orelha, o desalento da manhã ocupadíssima, a viagem, o mau tempo, o pequeno-almoço devorado a correr, os sons da campainha, os cheiros desagradáveis, o tom de voz crispado, os pixéis fundidos dos computadores, as faltas, as falhas, as frustrações.

Um dia hás de perceber tudo isto, meu filho!

O quê, avô? O que hei de eu perceber? Que as pessoas gravitam em torno de nós como corpos aleatórios, desejados, indesejados, esperançosos, malditos? Que as melhores pessoas nos morrem e são como os primeiros cadernos de escola, onde escrevemos as mais puras manhãs? Que o destino é um matadouro de sonhos? Que nos magoa horrivelmente amar e ser amado? Que amar é só o primeiro sinal de decadência? Que um animal nos mora na alma e nos morará sempre, igual aos primeiros vírus?

Porque tu és reguila! Tu vais desenrascar-te bem, não vais?

E de um momento para o outro, apoiando-te na bengala, sem olhar para trás, sem te despedir, caminhando curvado (sempre que penso em ti, sempre que me recordo, mais curvado me pareces), caminhando paulatino, caminhando na mesma direção, caminhando para longe, foste sem voltar.

Tu és reguila, hem? Olho aberto, ouviste?

E só me ocorre nevoeiro. O nevoeiro que agora me tapa a visão, debaixo de bátegas inclementes. O para-brisas dançando como um louco, o ar condicionado no máximo, os intermitentes ligados. O nevoeiro que me não deixa olhar mais na tua direção, tu mancando, apoiado na bengala, deixando-me para trás, sem me ouvir, rouco, cansado de gritar por ti, com as lágrimas e o ranho a impedir-me de respirar, incapaz de compreender.

Porque não se compreende que um avô deixe uma criança assim…

Todas as pessoas valem a pena. Mesmo aquelas que não valem nada. Aprenderás como…

E a viagem alonga-se, eterniza-se, deixa-me ainda mais longe de quem sou, como se de repente tivesse principiado a rodar noutra estrada, a galgar anos em lugar de asfalto, a procurar um ser de outrora como se procura um objeto perdido, a descobrir com olhos novos verdades antigas, a alcançar finalmente o significado das palavras que ficaram gatafunhadas em papel pardo, junto à lareira, com um velho lápis de carpinteiro aguçado pela tua navalha.

Que saudades, avô!

E é quando dou por mim junto do portão. A confusão ímpia das segundas-feiras. O motorzinho escancarando-lhe a boca, introduzindo-me na vida, engolindo. Que saudades, avó! Dessas manhãs junto à lareira, das tuas mãos calosas, quentes, magoadas.

Aprende a conhecer as pessoas, meu filho! Tu és reguila! Tu vais safar-te, não vais?

Primo um botão. O carro fica para trás. O ar violento da cidade. Sim, avô! Prometo que sim! Verás que sim! Juro que sim! Porque nunca se deixa uma criança para trás, dobrada num pranto, ferindo-se sem cura! Nunca se deve ser surdo e insensível. E um velho morrendo-nos, curvado numa bengala, enfiando-se no nevoeiro, é uma questão de honra, de orgulho, de sangue!

Prometo que sim! Verás que sim! Juro que sim, avô!

Saberei desenrascar-me, conhecer as pessoas, escrever melhores palavras, ser alguém. Todas as pessoas prestam. Mais que não seja para nos ensinarem a preciosa lição de que não podemos confiar nelas. E há, algumas, pouca, escassíssimas, que nos fazem bem, que nos saram das hemorragias.

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Que bem que se está aqui!

moses stell
Fotografia de Moses Stell

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As manhãs são prodigiosas. As manhãs de sábado e de domingo. As manhãs das férias e dos feriados, dos dias de café silencioso e olhos fechados contra o sol. As manhãs de música barroco e de janelas abertas. As manhãs de caderno em cima da mesa e caneta de aparo. As manhãs de depois de termos feito amor, quando te despedes com um beijo antes da piscina e do ginásio ‒ tu a tornear o corpo, eu a cismar em trapézios de palavras. As manhãs de quando os vizinhos mais novos não estão. De quando a rua acorda como as ruas da infância, devagar, sonolentas, sem relógio. As manhãs de quando os miúdos das moto 4 se extinguiram no horizonte, por causa da prova nos matos alentejanos. As manhãs de quando os outros miúdos, os das noitadas, das passas, das bebedeiras, das curtes, do pandemónio de copos plásticos partidos e latas amolgadas, se encontram ainda na ressaca das respetivas camas.

‒ Que bem que se está aqui!

E é um bem-estar que me ilumina as coisas à volta. Que me faz olhar para a mobília e para o interior de um livro com o mesmo desvelo com que observo à varanda o senhor Afrânio, o septuagenário mais educado e galante que conheci.

‒ Bom dia, senhor Afrânio!

‒ Muitos bons dias, meu caro Lopes!

Um bem-estar que tem a sua própria química molecular, as suas leis físicas inconfundíveis. O ar respira-se melhor, mais leve, menos sujo e rarefeito, como se os pulmões se dessem conta do milagre que os dilata. A fruta e as velas de cheiro açucarando as paredes. Os detergentes e o teu perfume não mais agradáveis do que o fiozinho de cigarro subindo da professora Clotilde, antiga mestra do Magistério Público, que à sacada, à puridade, vem cuidar dos seus jacintos e gerânios e begónias e agapantos, falando-lhes, confidenciando-lhes, namorando-lhes as pétalas.

‒ Que bem que se está aqui!

E ao dar-se conta da minha presença, chávena na mão, olhos semicerrados, ronronando, se assusta em pouco.

‒ Bom dia, senhora professora!

‒ Como está, João?

Gosto de colher estas sementes. De ressuscitar sem pressa. De escrever como outrora, repleto de esperança e de inconsequência, para ninguém e, quem sabe, para quem me entenda. Gosto de rasurar as frases, de erguer-lhes balões corretivos, glosas e anotações, segundas linhas, sublinhados e círculos, setas e chavetas, novas rasuras, riscos e desabafos de frustração. Gosto de encher a casa com a máquina de escrever, com as suítes para violoncelo de Bach, com os meus pensamentos, com a minha loucura, com o meu coração.

‒ Que bem que se está aqui!

E é quando o voo é mais longo e mais profundo. Quase como se me esquecesse da minha pele e dos meus ossos e dos meus males de alma e dos azedumes e das vezes em que a vida me pareceu uma infinita tortura. O martelar de cada tecla, a subtil variação das notas musicais, o reflexo de cada raio de luz no vidro das janelas e na madeira e na carne macia de cada fruto, tudo, tudo tão sincrético (para me servir de Lévi-Strauss) e de outra espécie de tempo, como se o contasse agora por séculos em vez de segundos.

‒ És um tonto, meu amor!

‒ Eu sei… Eu sei!…

E as manhãs adquirem a expressão de uma eternidade de que jamais saberei dar conta. Porque o amor que nelas desabrocha, como o das flores da professora Clotilde, é um eflúvio transcendente, um caudal de espírito capaz de adocicar os solavancos metálicos do elevador e de tornar risível a discussão na rua sobre futebol. Porque Bach e o café e o caderno cheio de rabiscos são capazes de me bem-dispor, a ponto de me esquecer das aulas e das agendas e dos recados mais ínfimos… Como se a vida pudesse seguir sem eles… Como se eu pudesse viver a vida sem a vida dos outros, ombros direitos e o rosto erguido, concentrado somente no discurso puro do meu espaço…

‒ Que bem que se está aqui!

Confesso que são as melhores manhãs. Quase inconfessáveis. Quase intraduzíveis. Quase de um outro eu. Como se de um outro eu que visitasse de vez em quando, como quando se visita um outro eu no álbum de fotografias… Falo destas manhãs de sábado e de domingo, de férias e feriados, de café silencioso e olhos fechados contra o sol. E tu vens, muito devagar, sem um ruído, tão adolescente como quanto te conheci, colocar-te atrás de mim, pondo-me as mãos nos olhos, invadindo-me com o teu aroma, preenchendo-me com as tuas formas, calando com as tuas poucas as minhas palavras prolixas.

‒ És um tonto, meu amor!

E eu sei que sim. E eu sei que sim. E nada é, juro-to, tão belo, tão magnífico, tão importante como essa última sintaxe, esse modo de findar o trabalho, retirar a folha do cilindro, cheirar contigo a tinta, ler a duas vozes, sorrir, adormecer no aconchego do teu corpo, sem pressa, como se o tempo o contasse agora por séculos em vez de segundos.

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Crónica das palavras que nos (não) farão falta

Ziga Gricnik
Fotografia de Ziga Gricnik

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Chegará uma altura em que preferiremos não ter proferido uma única palavra, meu amor. Será o silêncio a dizer por nós o que as palavras não podem. Porque as palavras, como os aleijões, como os paralíticos, como os corpos encarquilhados pelo reumatismo, não conseguirão dar mais um passo. Limitar-se-ão a ter querido. A esboçar um rumor. A pingar um sorriso.

Tu sabes como o receio. Como tenho pavor desse silêncio. Dessa língua envelhecida, atrofiada, incapaz de um milagre. Dessa desabafo desamparado.

‒ Sabes, hoje sinto-me tão triste…

E haverá um encolher de ombros. Continuarás a preparar as tuas aulas com os óculos sepultados no fundo do nariz. Replicar-me-ás com blandícia. Um gesto tão inútil quanto as flores de plástico numa jarra da cozinha.

‒ Claro que sim, meu anjo…

Terei os olhos tresmalhados na varanda, pela rua, de encontro aos prédios grisalhos, sem poiso certo. Olhos trôpegos, sujos, vencidos pelo meu próprio tempo.

‒ É como se pudesse morrer a qualquer instante…

E tu, teclando com dificuldade, esforçando-se por conjugar parágrafos, imagens, formas, tamanhos e tipos de letra, com as lentes trespassadas pelos pixéis agressivos, multicolores, desumanizados de um computador de uma outrora novíssima geração, consolar-me-ás como quem consola de raspão um moribundo.

‒ Claro que sim, meu amor…

A língua não é inesgotável. Filões de metáforas, adjetivos, interjeições, belas frases singulares, tudo exaurido até ao amuo. Até ao monossílabo. Até ao grunhido.

‒ Sabes do que tenho saudades?

As ruas serão uma feição estranha. Em vez de miúdos, velhos brincarão em parques solitários até que os venham resgatar à penumbra. No lugar das placas alusivas a monumentos históricos, nascerão da grama dos jardins evocações a grandes escombros removidos. Dispositivos eletrónicos repetirão, dia e noite, olvidados, o som de animais extintos…

‒ Claro que sim, meu querido!

E eu falar-te-ei das palavras. Da saudade das palavras. Do vigor de ter desejado, compreendido, justaposto palavras. Falar-te-ei da palavra enxuto. Da palavra aconchego. Da palavra apaziguado. Da palavra pernoitar. Da palavra sopro. Da palavra dúctil.

‒ Acho que me tornei num fantoche!

E tu, com a mesma expressão, os mesmos lábios (agora mais engelhados, distraídos, dormentes), a mesma placidez, suspirarás, como quando o suspiro é uma evolação, uma faúlha, uma despedida.

‒ Claro que sim, meu mais que tudo!

As ruas já não serão paredes, becos, muros, cercas, mas dormitórios verticais. Criaturas voadoras robóticas, pterodáctilos ultramodernos, trar-nos-ão a ração alimentar. Silvos metálicos atravessarão as paredes, como o faz agora a euforia dos pássaros…

‒ O mundo já não é para nós…

E tu, mais feliz agora, aliviada, com a expressão de quem acoita com estoicismo uma hérnia, de quem sabe ter valido a pena, de quem desliga a máquina, a luz o trabalho, responder-me-ás.

‒ Claro que sim, meu amado!

E daremos um beijo. Será como um encosto de pele. Pele ressequida e fria. Pedirás que use o comando para preparar a mesa de jantar. Um resto de nostalgia circulará pelo cubo da casa. Serão praticamente sílabas, moléculas prosódicas, vazio. Uma solidão engessada e incurável juntar-nos-á à mesma comida insossa. Nada haverá a dizer. As palavras estarão gastas. Tão estafadas como os nossos ossos.

‒ Nunca deveríamos ter chegado a velhos…

Saberei que me escutas. Que me reconheces. Que a mesma decrepitude nos lavou com cinzas o rosto, os braços, o tronco, o sexo, as pernas. Que o amor pode restar num miligrama de coração. Que terá valido a pena.

‒ Claro que sim, bebé!

E dormiremos juntos. Agarrados um ao outro. Como náufragos à sua tábua bendita. Sem uma palavra mais. Como se o silêncio pudesse dizer por nós o que as palavras não podem. Como se a noite não fosse tão longa. Tão assustadora. Tão rente a um e a outro.

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O Professor Arcílio

Rapahael Guarino
Fotografia de Rapahael Guarino

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É difícil recompor em palavras os tiques do professor Arcílio Pinto. Diria que o tornou famoso o costume de bater com as costas da mão direita na boca e a ir empurrando ao nariz e pela testa fora até à sonora fungadela final, com que se despedia do espasmo e se concentrava de novo em nós, caloiros estupefactos.

Diria ter-se nele tornado não menos conspícuo o escancarar da boca, quando travava as frases com nomes em P.

– … eis portanto aí, grosso modo, a génese do hodierno pensamento.

Fazia-o numa imitação perfeita do Marlon Brando mafioso.

– … isso, meus caros e minhas caras, é o que se estatuiu chamar de paradoxo!

Com a mesma expressão circunflexada dos bóxeres.

– … em suma, esse o sistema de Parménides…

A tudo sobrepunha-se o arregalar dos olhos.

Arregalava-os muito, num gesto de perplexidade, para dentro dos livros, como se neles tivesse encontrado, de súbito, uma bizarria, um escândalo, uma condenação.

– Nietzsche afirmou-o… Heidegger afirmou-o… Sartre afirmou-o…

Fechava com ímpeto a edição do Para além do bem e do mal. Os olhos exorbitavam-se-lhe uma última vez. Fuzilava a plateia. Nietzsche, Heidegger, Sartre ter-se-iam encolhido connosco, assustados e arrependidos. A voz cavernosa de Arcílio Pinto compensava o gestuário destrambelhado.

Não havia território seguro na sala. Nem muito lá trás, na penumbra do auditório, onde os boémios e repetentes (encolhidos, assustados, arrependidos) se esforçavam por não existir.

– O cavalheiro de barba, na terceira fila a contar do fim, à direita: o que me diz deste problema?

Havia uma infinita peculiaridade nos problemas do professor Arcílio. Lembro-me de uma conferência:

– Imaginem os senhores e as senhoras a seguinte situação: de manhãzinha, quando estão a tomar o pequeno-almoço, dão-se conta que as duas partes da embalagem A Vaca que Ri não coincidem no lugar do logótipo, no código de barras, nas informações da empresa. Os senhores e as senhoras, que nunca haviam reparado nessa minudência, dão-se conta que não conseguem sair de casa nessa manhã sem acertar a informação que ficou nas duas metades da embalagem. E porquê, não me dirão?

O professor Arcílio Pinto batia, então, com as costas da mão direita na boca e empurrava-a, entre fungadelas, até ao cimo da testa. Esperava a resposta. Nós também.

– Porque o sentido estético é latente, emergente, intrínseco à condição humana. Meus caros senhores e minhas caras senhoras, o sentido estético, que em última instância é amoral, concita um princípio de ordenação das coisas…

O cenho abespinhava-se-lhe.

– E eu pergunto se tal princípio não é ele próprio uma moralidade? Mesmo que em potência?

Lá estava o P, a palavra potência, a pausa dramática, a boca escancarada (um escancaramento horrível de trombótico), o raciocínio tortuoso, a expressão snob de académico, a vontade de rir à vez com a vontade de esbofetear.

– Essa moralidade educa a consciência. Um dia em lugar de uma embalagem, temos uma animal abandonado na rua, um mendigo, uma mulher maltratada… E, então, a consciência impede-nos de arredar o pé, de desviar os olhos, de não agir.

Há dias, numa das minhas deslocações profissionais, reencontrei o velho mestre de Introdução à Filosofia do Conhecimento. Tão igual a si mesmo que senti um abalo. Tão igual a si mesmo que senti quase o terror de um déjà vu. Caminhava calmamente pela alameda universitária, com a mesma sacola de couro, a mesma repa desordenada sobre a fronte, a mesma fisionomia de génio doido.

Aposto que não se reformou. Aposto que os caloiros de agora ainda o veem a fungar e a arregalar os olhos. E a trazer à luz do dia filósofos renitentes, autores de afirmações e teses que talvez quisessem desdizer, renegar, guardar no sepulcro do pó.

– A menina de echarpe bordô, na antepenúltima fila: o que nos pode dizer sobre a dúvida hiperbólica de Descartes?

Aposto que o professor Arcílio Pinto massacra, ainda, com Nietzsche, Heidegger e Sartre. E que lá bem no fundo do auditório, numa nesga de sombra, algum boémio treme, ainda, rezando para que não o chamem a depor, a testemunhar a sua insuficiência em silogismos e epistemas, a merecer uma reprovação…

Foi um baque, quase arrisco confessar uma saudade. Os senhores e as senhoras, claro está, entendem. Entenderão.

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Crónica dos nomes próprios

Arzu Bulut
Fotografia de Arzu Bulut

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A infância pertence, também, aos nomes próprios. A minha aquilatou alguns preciosos e inesquecíveis: uma Donzília, um Eleutério, um Zeferino, uma Porcina, dois Franquelins, uma Hermengarda, salvo erro três Casimiros, uma Engrácia e um Barnabé. Não me lembro de outro Barnabé. Lembro-me do meu primo. Quando se irritavam com o meu primo Barnabé chamavam-lhe Barrabás. Entre Barnabé e Barrabás firmou-se uma aliança de acinte, como a que conspurcou para sempre os nomes de Caifás ou de Judas. Ninguém era indiferente a este opróbrio! A professora benzia-se para a cruz empoleirada no alto da parede branca:

– Santo Deus, meu menino! Quem te deu um nomes destes?

A verdade é que ninguém sabia.

– É por causa do meu bisavô!

E a coisa subia pela árvore genealógica, de galho em galho, de padrinho em padrinho, passando dos tios aos avós até aos parentes mais afastados. De maneira que corriam no recreio Firminos e Evaristos, eram cowboys Torquatos e Narcisos, saltavam à corda e jogavam à macaca Esmeraldinas e Leocádias, comiam o mesmo pão com a mesma geleia de marmelo Joaquins e Filomenas, Bernardinos e Purezas.

– Santo Nome de Jesus, onde arranjaram vocês estes nomes?

Da primeira à quarta classe, a chamada no início das aulas foi um festim onomástico. A seguir às Anas Margaridas e às Carolinas vinham o Damião e o Estêvão, o Gualberto e a Henedina, a Isménia e o Ilídio, uma sucessão de Joães (eu, que estive para ser Júlio, incluído), o Lázaro e o Laurindo, a Oscarina e o Simão Pedro, e por aí fora, até à cauda, arrumada de resto à direita e ao canto, com o Severo e a beldade da escola, a Zínia Daniela!

– Minha rica menina, que nome tão esdrúxulo!

Podia juntar a estes o Ascenso e o Antímio, irmãos da Urraca. Mas como emigraram para a Suíça a meio da primária, o paraíso passou-lhes ao lado. Nunca riscaram com um pedaço de telha, ou com uma ponta de giz, nas paredes caiadas, no arco de pedra sobre a porta, no chão, nas casas de banho, as triunfantes palavras «AMO-TE, ZÍNIA!».

– A minha avó também se chamava Zínia.

– Aposto que sim! – ironizava a professora.

Nunca percebi as modas. Subitamente (ou decerto aos poucos, como nas mudanças de estação), as Glórias e as Ermelindas, as Paulinas e as Ludovicas deram lugar às Marlenes, às Sabrinas, às Vanessas, a um pelotão de Cátias, Nídias, Núrias, Urânias. As Marias e Marianas tornaram-se Carlotas, Beatrizes, Violetas, Constanças. Os Zecas e Tós Zés, os Armandos e os Agostinhos passaram a preferir-se Martins e Afonsos, Gonçalos, Tomás, Henriques…

– Que nome tão bonito!

– É não é?

A acompanhar a evolução, os miúdos, que usavam roupa da feira e andavam de cara suja atrás dos grilos, passaram a vestir Gant e Tommy Hilfinger, a responder com má criação e a procurar no tablet informações sobre o trânsito e a bolsa…

– Santo Deus, que criança tão esperta, a sua!

– É não é?

Pelo que começo a sentir uma saudade estúpida da miudagem que transportava não apenas nos genes, mas também no antropónimo a herança dos entes passados. Da miudagem que sabia estancar uma ferida com saliva e urina e não tinha medo de trepar as cerejeiras e se divertia do alto da sua competência de ser feliz. Da miudagem que encolhia os ombros.

– Santo Nome de Jesus, onde arranjaste tu esse nome?

E respondia com simplicidade

– É por causa do meu bisavô.

E ignorava à professora (vim a sabê-lo há pouco mais de meia dúzia de anos, não sem gáudio e pura nostalgia) o nome do meio, que era (não sei se por causa dalguma avó, madrinha, parente próxima, benfeitora passada) sem tirar nem pôr uma pérola: Outubrina!

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