Escritor português contemporâneo, nascido em 1977, na freguesia de Azurém (Guimarães). Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, é professor e autor de livros de poesia, contos e crónicas. Venceu o Prémio Revelação de Poesia Ary dos Santos (2001), o Prémio de Conto Maria Irene Lisboa (2009) e o Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres (2001 e 2022). Parte da sua obra foi traduzida para inglês, francês, castelhano, francês, alemão, sueco, dinamarquês, neerlandês, polaco, romeno, servo-croata e arménio.
Em setembro tudo é melhor cogitou o pintor. Preciso de limpar os telhados, de varrer os pátios, de cuidar do jardim. O pó do mar, o lixo dos turistas e o sol de julho e agosto trouxeram o caos a este meu esconderijo. O homem considerou com devoção o seu ateliê repleto de telas, caixas de bisnagas e pincéis, suportes de madeira e mesas em esquadria. Era um pequeno reino de linhas enfileiradas e cruzadas em fanática harmonia, em aprumo absoluto.
O homem colocou o seu caderno de esquissos sobre a mais estreita das três mesas e por cima do caderno depôs a lapiseira que recebera uma vez das mãos de Giorgio Morandi. Preciso de dar um destino a todos estes estudos. Talvez aproveite algum deles, ou talvez precise de os apagar a todos da memória. Nada de imprestável deve permanecer tempo demais na nossa existência pensou.
Com o homem vivia um gato. Era um animal asseado e silencioso, a quem o dono confidenciava histórias verdadeiras e ocasionalmente poemas por si compostos enquanto pintava ou aparava as sebes, ou aspergia detergente no pano de abrilhantar os vidros.
Com o felino e com o pintor viviam discos de jazz e música erudita, uma biblioteca de razoável dimensão e uma coleção de cachimbos. O homem não fumava, o que não queria dizer que não gostasse de morder a boquilha e de encher-lhe a cabeça com tabaco importado. Imaginava o prazer do lume a incinerar as folhas de Black Cavendish e de poder refastelar-se com o aroma e o paladar enxuto que delas haveria de ascender à saliva prolixa. Era um estranho ser de gostos extravagantes.
Em setembro tudo é mais humano. Preciso de descer ao reduto das coisas, de ir ao banco, de comprar vinho e enlatados, de aparafusar e olear dobradiças, de responder a Picasso e a Pasolini.
Com o homem, o gato e os discos de John Coltrane, viviam três acácias gigantes voltadas para o Mediterrâneo. O homem gostava bastante desta trindade arbórea no alto da ravina onde vivia. Só elas apreciavam o azul como ele sabia apreciar, destituídas de pressa, hipocrisia ou subterfúgios. Olhavam o azul infinitamente e em profundidade, numa, em duas, em três pinceladas imortais. Preciso de fazer as pazes com o azul disse o homem de si para si mesmo.
Setembro vinha no caminho dos dias. Era o seu tempo predileto. Era o tempo ideal para renascer ou assim.
Perto de Siena, nas imediações da pequena e pacata cidade de Montalcino, mantém-se de pé uma abadia beneditina do século 12, com o seu antigo hospital, a sua torre sineira, os seus jardins e pomares, a sua adega e uma cripta onde declaram jazer os restos de São Varínio, companheiro de Santo Antimo, se alguma verdade existe nas palavras do sacristão a quem cabe o trabalho de abrir e fechar as portas imensas do velho mosteiro.
Regressa aqui todos os verões Monsenhor Enzo Montale, instrutor de teologia, astrónomo aprendiz, poeta e praticante de rapel. Consigo vem um par de jovens sacerdotes e um magote de adolescentes ávidos de jogos eletrónicos, isolamento social e gírias urbanas, miúdos perdidos, a nadar nas imediações como no limbo das águas vazias de onde Deus partiu para a criação do mundo. Reclamam, reclamam a toda a hora, porque Montalcino é um vilarejo sem subúrbios, os travertinos de Sant’Antimo não admitem grafitos, os quartos do templo são celas abertas que comunicam para o mesmo corredor ecoante e comprido, ao longo do qual transcorre o odor das madeiras, o cântico da água e a voz altissonante do instrutor.
«Meus caros, tende cuidado com as palavras: o dito dito está. Uma vez saídas da boca, as palavras são como cebolas descascadas. Vão parecer-vos de um modo ou de outro cruas e muito malcheirosas.»
Todos os verões, depois das aulas, os pais italianos chegam à lacónica conclusão de que não sabem o que fazer com os filhos. Não os compreendem e não compreendem em que momento erraram na sua educação, nem vislumbram um modo de emendarem a mão, se é que ainda vão a tempo.
Por isso, enviam-nos a Montalcino na esperança de que o teólogo possa encontrar na vetusta construção medieval algum do material antiquíssimo de que outrora se fabricavam os milagres.
Monsenhor Enzo principia os cursos estivais a meio de junho e fá-lo tão apaixonadamente que os resultados não podiam ser menos dececionantes: já uma meia dúzia de ex-alunos professou votos, muitos optaram por se juntar a instituições de caridade e a associações de animais, quase todos corrigiram o rumo das suas vidas impregnando-as nalguma espécie de sentido metafísico.
Bem gostaria ele de fazer observar com todo o rigor os cartapácios da Ordem, a famosa Regra de São Bento, de a seguir pura e duramente à boa maneira do seu noviciado. Se o fizesse os instruendos seriam chamados para momentos alternados de oração, cântico, jejum, penitência, sabedoria. Seriam acordados às quatro da manhã para se abluírem das máculas novas e passadas, beberiam chá de urtigas, mortificariam o corpo com banhos no rio (o fresco Orcia que flui não muito longe) e envergariam túnicas de burel. Jantariam e ceariam aveia e fruta, rezariam o terço e meditariam nas Escrituras, sem outras distrações que não a simplicidade do mundo campestre e contemplativo.
Mas os tempos são seculares e a disciplina uma área controversa. Aqui apenas as celas são varridas e arejadas amiúde e todos os pertences dos miúdos postos em caixas de pinho, empilhadas e fechadas por correntes e um grosso cadeado onde se desenha o relevo da cruz do santo de Núrsia e as siglas justapostas.
«Possuir é o erro mais grave dos mortais. É-nos dado o privilégio de desenganarmos os olhos, as mãos e o espírito com o que quer que não nasça no firmamento, nas nossas hortas ou no nosso rio. Nem a poesia se possui, porque também ela é uma forma de vaidade.»
Este Monsenhor é um atleta. Sobe e desce ravinas, içando-se e prendendo-se perigosamente por cordas desportivas, enquanto recita aos discípulos, cada vez mais fanaticamente rendidos a si, trechos da Imitação de Cristo de Tomás de Kempis ou poemas de Tonino Guerra. A sua felicidade é o seu gáudio, o seu gáudio é o apresto com que alavanca as jovens almas transviadas pelo futor das cidades ao encontro da luz limpa deste silêncio toscano.
Não afirmamos que seja fácil.
Em todas as gloriosas tarefas empreendidas ao serviço de causas maiores, deparamo-nos com escolhos. É exemplo disso esta Giuliana Buonarroti. Tem 17 anos e pírcingues espalhados por tantas partes do corpo que os não poderemos numerar, salvo despindo-a. Giuliana é das pessoas mais renitentes, mais recalcitrantes, azedas, desafiadoras que transpuseram o lintel das portas sagradas da abadia. Enzo Montale ainda não lobrigou o modo de a conquistar.
«Não estou pra isto, cazzo!»
E reitera-o a toda a hora em palavras, gestos, esgares, acutilâncias, zombarias, delinquentes atropelos à castidade do lugar. Agora mesmo lhe vemos manigantes brilhos metálicos no lugar deixado entrever pelas duas metades descaídas de couro do que se suporia ser um top curto e justo e é um indecoroso desfolhar de rosa incontida, de pele morena e tatuada, de fogo luxurioso e uivante.
Enzo Montale esconde bem os sentimentos. Também esta pequena filha do Criador se há de domar a seu tempo, pois domados foram os leões na caverna de Daniel.
Em Montalcino a brisa estival arrasta consigo o cheiro da cevada, da colza, do trigo enxuto. É a esta grande castidade que o consola de tudo ao final do dia. Talvez muitos outros clérigos hajam nela encontrado refrigério para extirparem, nas noites tortuosas, os brotos do pecado.
Enzo sabe que Satanás nos unta os lábios com mel e sabe que com lubricidade derrama sobre o nosso corpo vencido a sedução mais abrasadora, grotesca e inesperada. Nas pupilas fuzilando no escuro de Monsenhor Montale passa e repassa a tira de cabedal de Giuliana, o decote assanhadamente aberto, o desenho formidável dos seus mamilos acerados por uma espécie da anel. É horrível, é maravilhoso, é um pecado muito grande!
Felizmente ele sabe como desensarilhar todas essas teias da luxúria, todos os liames que inçam sobre a carne e a conspurcam. Monsenhor envergonha-se muito de que essa mesma carne, a sua, tenha quase caído em tentação, escutando ali ao perto o respirar excitado, insone, diabólico, da jovem que tão abertamente o afronta e lhe arremessa olhos cúpidos e sem fundo.
Felizmente o caudal bem-aventurado do Orcia lava todos os resquícios do fogo e das cinzas. Em segredo mergulha nas águas e nu nada do pecado para a santidade, da noite para a madrugada, do tormento para a grande liberdade do perdão.
Oh, a brisa da madrugada é revigorante. Envergando uma túnica de estamenha regressa pelos caminhos de terra e à luz das estrelas ao mosteiro. Ainda vai a tempo das matinas. Tendo acabado de aprender mais uma duríssima lição, sente-se poder continuar a ensinar. Ensinar é o seu caminho e o caminho de Enzo Montale, assim crê, é o caminho da salvação.
É um mar de livros desde a porta. E a seguir a esta primeira está outra porta, para lá da qual um novo oceano de títulos pesa e alastra. Entra-se e fica-se de cabeça aluada, derramando a atenção, de alto a baixo, sobre coisas tão vagas e exóticas como num ervanário. E são elas fólios com dezenas e centenas de anos, amarelando sossegadamente num poiso quieto, títulos puídos, ultrapassados, mais do que as capas ou as folhas, pela imisericórdia das modas.
De aqui ou dali, pendulando a barriga farta, assoma Ezequiel, sempre com os óculos caídos sobre a cana do nariz e o lábio dobrado em jeito de quem pensa em contas, resmungando coisas meio para dentro, meio para fora e a conhecer-nos o gosto pela livralhada, a sondar já o modo de impingir a última novidade.
Aqui perco-me em geografias e dinheiro. Compro às cabazadas. Outra coisa é que seria de espantar. O alfarrabista é um tipo de homem misterioso. Nunca diz como consegue o impossível. Porém consegue-o. E o impossível é o pretexto para fazer chegar mais longe a sua magia. Ezequiel é, por isso, uma espécie de feiticeiro, com quem sustento uma relação com tanto de amigo como de nevoento. Talvez um dia me venha a convencer de ele que é apenas um homem gordo, habilidoso, fanático das primeiras edições.
Apareço-lhe à porta por causa da última edição de Herberto Helder, aquela coisa que veio numa semana e esgotou.
«Esses fideputas da Assírio fizeram três mil e estão a tratar de meter fome ao povo para se atirarem a uma edição maior. O gajo não publica há quase dez anos… O que é que esperava?»
«Mas ó Ezequiel. E se a coisa não é reeditada?»
«Mesmo que seja? Já não é a mesma coisa. A primeira edição é sempre a primeira. A segunda vale metade ou nem isso. Não digo agora, mas no futuro… Mas não se preocupe que ela volta…»
«Está bem, mas isso é você que o diz. Eu queria era o raio do livro. Importa-me cá se é primeira ou segunda edição.»
«Deixe estar que qualquer dia começam a aparecer-me na loja coisas em boa estado e eu guardo-lhe uma! Em contrapartida, olhe-me esta beleza!»
E logo as mãos papudas puxam uma edição encadernada de doirados e capa dura do Amor de Perdição. Abre-a com cuidado para fazer saltar um bilhetinho, grafada com aquela maravilhosa caligrafia do século XX, onde lê na folha de rosto:
.
Para a benquista senhora Eloísa,
Pondo em cada uma destas linhas o muito que lhe quero, e que nestas páginas enxergue o quanto o insano amor pode no bem e no mal.
Seu, Eleutério Emanoel, Natal de 871
.
Uma vaga tristeza apodera-se de mim. Que os livros o consigam não é razão para surpreender, de tal modo ficam impregnados de nós. O amor que lhes temos, com que os estimamos, de que lhes extraímos luz e fogo transforma-se, porém, num achado solitário e pungente quando vindo do passado, cativo numa orfandade de nomes e afetos e que se semelha a uma casa em ruínas, despojada da sua gente e da sua razão de existir.
«Acabam em tipos como eu e noutros artistas como você… não tenha pena. O que há mais por aí é lixo. Só me dói é pensar que relíquias destas vão parar às mãos erradas e ficam entaladas em paredes para imbecis de cachimbo.»
Mas há ainda outra coisa que me esmaga a garganta. Ali, naquele recheio de nomes, de vidas peneiradas de filosofia, estética, poesia, amor, literatura, anda a sensação de vanidade de que não gosto nem de me acercar um milímetro:
«Eh, pá, Ezequiel. Tanto tipo que escreveu alguma coisa. Tanta obra-prima para armazém e ninho de pó. Já viu o que é ter uma vida inteira investida num logro?»
«O quê? E pensa você que estes tipos valem todos o mesmo? Há-os aí ao pontapé, tipos como os que agora andam de congresso em congresso, a papar meninas e a deitar merdas cá para fora… Os gregos é que a sabiam toda. Os gregos é que são sempre novidade… Não se fez mais nada depois deles. Prefiro um verso de Homero que todos os livros desta tropa de agora. Quando me chegam à loja com as merdas deles atiro-as ali para o monte.»
Lembra-me um sátiro este Ezequiel. Um histrião a bambolear as ideias sem pejo. E por isso, um tipo honesto que escreve duas coisas tem mais dia, menos dia de sujeitar-se-lhe ao julgamento. Tem de levar com a vergasta enquanto pode, enquanto valha a pena.
«Ó Ezequiel! Você não grama nada aquilo que se publica hoje. Já leu algum dos meus livros? Presume-os assim tão maus?»
«Vá-se foder. Se está à espera que lhe elogie os livros veio bater à porta errada.»
«Calma. Espere lá. Como a um amigo. Do alto da sua autoridade de homem de livros, acredita que se aproveita alguma coisa na minha escrita?»
Roda nos pés, faz-me sinal com um dedo para que o siga e entre os corredores do seu bazar apinhado, claustrofóbico, o nédio homem aponta-se por fim um canto onde se organizam em pilares obras de um sem número de poetas, com Píndaro, Teócrito, Safo, Homero, Alceu e outros irmãos de Antiguidade à cabeça. Salta-se de época ao ritmo das estantes. Shakespeare, Rilke, Baudelaire, Whitman, Hölderlin, Pessoa e um fio de incontáveis pérolas vem-se seguindo.
«Estes eu não vendo. São primeiras edições dos melhores. Tenho-os aqui apenas para me lembrar de lhes acrescentar outros que apareçam. Quando tiver alguma coisa que mereça caber aqui, eu digo-lhe amigo! E depois, eu vendo livros. A minha opinião não vale como a de um doutor, não concorda?»
Devo ter mudado de cor, porque a verdade que o é na sua genital aparição faz isso. Logo o Ezequiel, num jeito contemporizador de negociante, emenda:
«Tem algumas coisas de que gostei. Mas é cedo para balanços de vida. Já vê por aqui o que sucede aos bandalhos. Um tipo só é bom quando percebe que não tem nada a perder e começa a pôr nos livros aquilo de que ninguém está à espera.»
Acabo por sair com uma coisa ou duas a que os meus olhos se haviam fixado, coisas tresmalhadas e que não hesitarei perfilhar.
«Se arranjar aquilo, dê-me uma apitadela, Ezequiel.»
«Dou. E quando começar a publicar alguma coisa com jeito, também lhe dou uma apitadela. Como não tenho cá nada seu, suponho que vai no bom caminho…»
E dito isto, atira o bandulho para o interior do seu oráculo, onde não mais tenho tornado, incapaz que sou de assumir um progresso, um avanço, digamos um recuo aos gregos, uma aproximação digna de registo aos mestres. Que o são, nunca duvidei.
Há algum tempo, demos conta de um caderno de inéditos de Robert Walser encontrado, nem mais nem menos do que por mero acaso, numa loja de colecionador em Vauffelin, não muito distante da bela cidade junto ao lago de Neuchâtel que o viu nascer.
Verte-se agora em português, como se fez atrás, o pedaço seguinte da sua escrita inconfundível.
•
A nossa atenção recai sobre o estalido de uma determinada máquina caseira. Esperamos a todo o momento que termine a sua função para de seguida começarmos a tarefa que nos cumpre. Nem todas as espécies de trabalho, felizmente, podem ser levadas a cabo por pedaços metálicos e elétricos cheios de inteligência. A nossa acuidade espera a sua vez de mostrar-se e quando o fizer acontecerá algo maravilhoso: as mãos, o sangue e a cabeça unir-se-ão para realizarem algo de que nos orgulharemos e que se dirá humano.
É importante que as nossas mãos, o nosso sangue e a nossa cabeça continuem o legado dos velhos trogloditas rupestres. Por muito imperfecionista que resulte esse tripé, por verdadeiramente estólida que pareça esta observação, a verdade é que todos nos sentimos mais felizes por sabermos ainda pespontar um casaco com agulha e dedos, por recorrermos ainda ao tanaceto para debelarmos uma dor intestinal, ou por nos pormos ainda a tanger uma cítara ou a percutir um clavicórdio nas noites de solidão. Talvez seja isso o que nos mantém na rota da cordialidade, da astúcia e da poesia.
Nem todos os meus amigos pensam deste modo. Alguns prefeririam que uma horda de autómatos cozinhasse para si, lhe limpasse o cotão da casa ou produzisse pensamentos corriqueiros em lugar de terem de se servirem eles mesmos do seu cérebro. Também não estimam a poesia, tão-pouco o requinte de uma anedota, ou as boas e breves palavras de um cartão de aniversário. São coisas escusadas nos dias que correm e sê-lo-ão, dizem eles, coisas improfícuas no futuro.
Ora, justamente, eu gosto de antiqualhas, de bricabraque, de livros com folhas amarelas. Sou um homem de outro tempo, embora seja incapaz de esclarecer o sentido de outro e, mais do que ele, do significado de tempo.
Sempre que posso, e enquanto a máquina em causa não entra no seu período de repouso, ponho a pele, o coração e a nuca a acariciar velharias. Sinto palpitar nelas, como nas pétalas simplórias dos malmequeres, um pólen precioso cor de ouro.
Não sei porque falo disto. Hoje muito poucos estimam as metáforas, o papel pardo de embrulhos ou um abraço apertado. Creio que nos resta acender o lampião sozinhos, não partilhar o cheiro forte da tinta com ninguém e escrever com a pena ruidosa apenas para nós mesmos. Nem falo do fumo do cachimbo. Nem do prazer de ler em voz alta e de rasurar tudo, antes que um novo estalido apague a luz e nos obrigue a ir dormir.
Procura-se, procura-se melhor, procura-se com afinco e é então que surge o orifício, melhor o alçapão, melhor ainda o portal para esse tempo julgado desprendido de nós, a vaguear no vazio – como uma jangada sem gente, quer dizer com gente, gente morta, gente que nos visita em sonhos e que nós visitamos no pensamento. Procura-se e às vezes descobre-se um modo de descermos ao mais fundo da existência. Principia nesse instante a poderosa viagem a que um caderno aberto e uma lapiseira afiada aspiram.
Por exemplo, estes dias em que andamos de pijama pela casa, pelo pátio, pelo meio dos livros e ocorre-nos de repente que os nossos gestos são os gestos dos nossos velhos – escrevo velhos com amor, com devoção. Por exemplo, esta forma de acariciar as folhas carnudas da alfádega, de roubar à pele da mão o hausto por sua vez por ela furtada aos folículos dos manjericos, à citronela, ao verde luminoso dos fiolhais. Damos por nós a tombar num mergulho de décadas até a um quintal antigo, até a um avô que procedia exatamente do mesmo modo nas manhãs solares de junho.
Estamos a vê-lo, as repas do cabelo e a barba rala – do mesmo tom tisnado – por fazer, o rosto macilento, o colete de lã azul, as calças enfunadas por dentro das galochas, a enxada ao ombro. Vemo-lo a fazer a vistoria diária aos regos de milho, ao talhão das batatas, à inflorescência das vides. Amiúde o olhar perde-se-lhe mais rúbido, mais aquoso, mais longe. Vemo-lo a palpar o tronco das árvores, a medir o tamanho dos caules das cebolas, a fazer cócegas aos tufos de salsa, a dizer de si para si coisas que apenas se percebem ditas pelo movimento aguçado do queixo e da boca infeliz.
Estamos a vê-lo. Funga como nós fungamos. Leva a palma ao cabelo como nós levamos. A feição de tirar da ameixoeira o fruto amadurecido e rescendente e de o passar pela roupa sem outro modo de o lavar é a nossa feição de o tirar da fruteira e de o levar à boca. Estamos a vê-lo. O seu sorriso breve e tímido é o nosso sorriso. Sorri para os pequenos bichos que cacarejam e chafurdam na lama. Cada qual com o seu nome próprio, porque esse avô gostava como Adão de nomear os animais. Estamos a vê-lo. Com um lápis rombudo anota na face da madeira números e garatujas. Faz a lâmina da serra deslizar sobre a carne das tábuas e constrói coisas, guarda as aparas, aproveita-se do serrim. Tudo é bom e útil e dádiva que se não deve menosprezar. Estamos a vê-lo e, vendo-o, vemo-nos na grande proximidade que apenas a distância soube mostrar.
Tropeçar na memória é um risco que corremos. É uma espécie de vágado. Pomo-nos a deambular em silêncio pelos corredores e precisamos de uma voz apontada às folhas lisas do caderno. Sentimos a orfandade dilatar-se dentro de nós como um tumor. O tempo, que desnovelamos pouco a pouco com palavras humildes e tersas, magoa.
Esses velhos pareciam criaturas eternas velando por nós, aconchegando-nos no fogo particular das suas palavras, e eis que de repente passaram trinta, quarenta anos, e nós somos o lugar difuso que eles ocuparam. Repetimos-lhes os provérbios, o gosto pela broa, a sisudez endurecida pelo orgulho, a repugnância pelos fracos, traidores e hipócritas deste mundo. Somos hoje os velhos do amanhã e damo-nos conta de que pequenos seres ao nosso redor nos espiam e nos imitam, atentos aos mínimos movimentos da nossa solidão.
Procura-se, procura-se bem, procura-se no fundo das gavetas, procura-se por detrás das sombras, por dentro da ofuscação do aqui e do agora e é então que surge essa frincha, essa abertura, essa ruína antecipada de nós mesmos zarpando em direção ao ponto mais vago do horizonte. Adestramo-nos na morte. Estamos mais perto, cada vez mais perto, pertíssimo talvez. Desconfiamos que alguém possa à retaguarda acompanhar-nos nessa viagem – açodada agora – de palavra para palavra, a mais veemente a que um caderno aberto e uma lapiseira afiada podem aspirar.
Ter tempo ou não ter tempo distingue o modo de vida da maior parte das pessoas e, sobretudo, divide a nossa em duas províncias praticamente incompatíveis, cuja fronteira se situa algures entre o fim da infância e o começo da puberdade, quando nos começamos a separar da elementaridade de levantar, lavar o rosto, vestir e calçar o corpo, beber o leite com café e ir, porta fora, em direção ao futuro.
Costumes como os de apanhar grilos ou malmequeres, admirar o ninho das escrevedeiras (com os seus ovos sarapintados) ou o choro das abecoinhas; costumes como os de saltar muros de pedra, trepar aos carvalhos cheios de luz ou invadir a penumbra cerrada das cisternas; costumes como os de procurar pedaços de telha e restos de madeira para o jogo do galo ou de escolher pacientemente cascas de eucalipto e agulhas de pinheiro para criar hélices e vir a correr da escola (levantando voo), com a mochila aos saltos nas costas (em lugar desses pesados sacos de sabedoria que os miúdos carregam agora); costumes como os de cumprimentar vagarosamente os velhos que encontrávamos e que nos faziam uma vénia; costumes como os de procrastinar a numeração romana e as composições que nos vinham no caderno, como deveres que a professora talvez nem corrigisse na aula seguinte; costumes, enfim, como os de olhar as nuvens e assistir à sua lenta metamorfose eram parte de um respirar magnífico, de cujo fim nem vale a pena falar.
Porque dificilmente se entenderá hoje outro modo de responder ao mundo que não seja o da velocidade, o da imediatez, o da pressa rancorosa com que galgamos etapas e queremos chegar rápida e brutalmente ao destino, a um desfecho, à meta. Vivemos sem tempo e com medo de perder tempo, impacientes para o que se atrasa (um chá demasiado quente, um golo evitado pelo guarda-redes adversário, uma placa de «Volto Já!» na repartição ou na loja aonde nos dirigíramos). A verdade é que construímos com o nosso fio existencial uma rede de elipses, de sínteses devoradoras de informação. Substituímos a memória por projetos, trocamos os rituais diários por rotinas, a alma por ambição. Acordamos com o despertador, engolimos o pequeno-almoço, conduzimos esporeados pelo cronómetro mental, possuímos regras próprias para nos defendermos das regras coletivas (damos o beijo de despedida sem tocarmos verdadeiramente a outra pele, deixamos recados escritos em modo de estenógrafo, gravamos mensagens de voz, preferimos sinais a palavras e palavras a gestos), e quando chegamos sentimo-nos compelidos a ir de novo, a partir noutra direção e depois noutras, numa voragem em que perdemos a noção do nosso próprio caminho e da nossa presença em nós mesmos.
Ter tempo ou não ter tempo é uma questão filosófica. Porque dele depende tudo o que é (ou era) realmente importante na relação humana (da arte ao sagrado, da valorização das grandes causas à família). Ter tempo ou não ter tempo é o mesmo que retirar um sentido ou não retirar nenhum sentido das coisas. A esse respeito, Gilles Lipovetsky observa no seu incontornável A Era do Vazio que «A indiferença pura designa a apoteose do temporário e do sincretismo individualista». Não há maior individualismo do que o de mergulhar na sua própria escuridão.
Contaram-me há dias que uma senhora octogenária foi internada no lar aqui na vila, porque o filho deixou de poder cuidar de si. Ele precisava, naturalmente, do seu emprego e a senhora exigia cuidados específicos, que apenas uma instituição como um lar de idosos podia prestar. Compreende-se tudo isto. A vida comunitária, como a conheci na infância, simplesmente desapareceu. Entretanto, a idosa aguardava todas as manhãs à janela a hora em que o filho deveria passar na sua motorizada a caminho do trabalho para lhe poder acenar. Compreende-se: o lar localiza-se à beira da estrada, com vista ampla. Uma, duas, três, infindáveis semanas se sumiram sem que uma única visita filho tivesse acontecido. Afetadas pela comiseração, as funcionárias do lar contactaram o dito, que lhes respondeu laconicamente com «Tenho uma casa e filhos para manter!»
Ter tempo ou não ter tempo é, portanto, um assunto sério. Na minha antologia pessoal dos melhores poemas lidos, consta um de Herman de Coninck, poeta belga que assina estes versos:
MÃE
O que fazes com o tempo é o que um velho relógio de pêndulo faz com ele: bate as doze horas e leva todo o tempo necessário. Tu és o relógio: o tempo passa Mas tu ficas. Esperas.
Esperar é o que acontece a um jardim sob a neve, a um tronco de árvore sob o musgo, esperança de melhores tempos no século XIX, palavras num poema.
Porque poesia tem a ver com duração deixar que as coisas ganhem bolor, deixar que as uvas se transformem em álcool, cristalizar os factos, fazer conserva de palavras, na cave de si próprio.
É um assunto sério, terrivelmente sério, sem paralelo no cartapácio de assuntos prementes com que lidamos. A morte do tempo antes do tempo é um precipício, um abismo. Faço apenas uma pequena ideia sobre o quanto há de doer cair doerá. Mas não consigo imaginar o que nos espera do lado de lá desse buraco. Lipovetsky chama-lhe «vazio impenetrável do futuro». Pela minha parte, chamar-lhe-ei «desumanização», «robotização», «bestialidade». Tudo sinónimos imperfeitos, mas igualmente maus.
O maior feito da nossa vida estará sempre por escrever. Assim, como quem dispõe subitamente de uma grande soma de dinheiro e não sabe o que fazer com que ela, também assim pode qualquer um de nós encontrar-se, de um momento para o outro, na situação de precisar de oferecer uma enorme quantidade de amor. Esse será, em última análise, o grande feito que nos está reservado.
Lembro-me de ouvir há uns anos uma entrevista conduzida pelo jornalista João Almeida a António Victorino d’Almeida na Antena 2 e de escutar com admiração as carinhosas palavras que o maestro deixava ao pai, de quem cuidou até à morte e por conta de quem abandonou uma carreira em Viena, na Áustria, por ser filho único e sobretudo um filho bom. Um filho bom sabe que os pais não constituem uma parte extrínseca a nós ou de nós, sabe o quanto se lhes deve do nosso passado e do nosso futuro, o quanto se lhes deve no presente, no agora, no momento em que é imperioso esquecer o acessório e focar neles cegamente o nosso amor.
Depois do curso universitário, passei quase em simultâneo a ensinar e a escrever. Durante décadas supus que residiam nesses dois verbos o melhor de mim. Ensinei a centenas de alunos, escrevi por certo milhares de textos. E eis que, de súbito, todo esse mundo didático e literário me começou a parecer uma errância frívola, uma adoração mecânica dentro de um sistema autorreferencial, sem contacto com o mundo e sem humanidade. À semelhança de António Victorino d’Almeida e de muitas outras pessoas (quero acreditar que são muitas), de um instante para o outro, precisei de coragem para riscar um caminho absolutamente novo e de nele ter incluído – quase em exclusivo – o cuidado à minha mãe, doente oncológica.
O escritor John Updike, depois de visitar uma exposição de Lucian Freud em Veneza, corria o mês de setembro de 2005, impressionadíssimo com o que ali viu e por certo se lhe revelou, anotou: «Sim, o corpo é uma coisa hedionda, sobretudo os pés e os genitais, e não menos a face humana. A carne arrasta-nos para baixo.»
Esse corpo monstruoso, esta carne que pesa e afunda são, com efeito, a nossa maior descoberta, porque vendo-a nos outros adivinhamo-la em nós, porque antecipando-a sentimo-la a pairar diante dos olhos e não divisamos já a luminosa alegria dos raios insolentes, mas uma chuva dolorosa de fosfenos. Antes dos cinquenta começamos a duvidar da nossa idade, visto que tanto nos parece que a meninice foi apenas ontem como que a terceira idade é já amanhã. «Sim, o corpo é uma coisa hedionda»!
Cuidar dos seus velhos é o que fazem muitos dos meus conhecidos. Por múltiplas e variadas razões, os nossos pais tornam-se os nossos novos filhos birrentos, filhos dementes, trementes, indefesos, deformados pela dor, atingidos pelo rancor do envelhecimento. Num correr de cortina, juntamos aos filhos que vivem a adolescência esses filhos tardios. Ouvimos queixas e resmungos de uns e de outros, negociamos com paciência infinita, respondemos às vezes com ira, depois com remorso, depois com frustração, depois com eufemismos, com metáforas, com palavras que teimam cada vez mais em não querer coser-se entre si. Cuidar dos nossos velhos é assistir em tempo real a esse filme que nos corre e cujo desfecho conhecemos antecipadamente. Cuidar deles é aprender a cuidar de nós.
O mesmo John Upkike escreveu um verso maravilhoso que sublinhei num dos seus livros de poesia: «E a morte é séria, longa e escura.»
Talvez por isso, por o saber tão bem – e ao invés de estimar os grandes arranjos florais que alguns depositam nas tumbas, ou de admirar os choros formidáveis e o luto que devotam aos seus finados – eu prefira o riso solar e as palavras serenas de António Victorino d’Almeida («O meu pai era uma pessoa extraordinária. Tenho a enorme alegria de lhe ter dado muitos anos de vida.») e sinta, como ele, um orgulho imenso por me ter tornado cuidador de quem me trouxe ao mundo, de quem se tornou para a família um símbolo vivo de resiliência e de força, um motivo de reflexão, um exemplo.
O maior feito da nossa vida estará sempre por escrever. À distância dos anos, não consigo avaliar com rigor aquilo que de me possa orgulhar. Seguramente não creio que me habite essa aura das pessoas extraordinárias pela bondade, pela beleza, pelo génio, pela perícia ou talento numa área particular. Mas aprendi nos últimos tempos que a humildade é, também ela, uma virtude. Quase como quem esbanja uma quantidade enorme de dinheiro, ou de amor, unicamente para se sentir um pouco mais longe da escuridão.