Oblívio

old woman, Marnix Detollenaere
Fotografia de Marnix Detollenaere

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Sobre a cómoda ficaram a caixa de madrepérola com os medicamentos por tomar, a pagela da Sagrada Família, os sobrescritos fechados com as contas, o branco sujo do pó. Cristo continua pregado na cruz, o coração em sangue de Maria continua pingativo, o Santo António não se alterou, não se cansou, não cedeu um milímetro com Jesus no braço. Do mármore, a todo o cumprimento dele, perpendicularmente, sobe a lâmina emoldurada do espelho. A idosa olha-se, detém-se, escava com os olhos a pessoa que diante de si responde sem perguntar, inquire sem replicar.

Depois de muito tempo é-se outra vida. Na beira da cama o corpo equilibra-se mal.

Quando se regressa a casa, vozes há que voam desordenadas na concha do ouvido. Não se preocupe, minha senhora, tudo se resolverá. Precisa de alimentar-se, compreendeu? O seu filho não voltará a pôr-lhe as mãos em cima, dou-lhe a minha palavra de honra. Há vozes, mas tão opacas como o olhar através do nevoeiro, como o vidro onde o pó lentamente acamou, como o pequeno quarto às escuras que espera do seu inquilino eterno uma explicação, uma fresta de luz, um sinal de que não morreu.

O que dói não é o velho corpo macerado. O que dói é esse não poder não doer, essa dor infiltrada em tudo o que é nervo, espírito, amor de mãe ofendida.

São horas de fazer alguma coisa na cozinha.

O que terá restado no miserável frigorífico ferruginoso, nas velhas estantes dos armários, nas bolorentas fruteiras quase vazias? É preciso limpar a casa, obrigar os músculos a um derradeiro sacrifício, impor uma ordem à existência cansada. Olha-se ainda, sem palavras, sem ruído, sem compaixão ou ódio, sem tristeza ou saudade. É-se alguém preso a um corpo e um corpo preso ao tempo, como um resto de sabão que se deixa esquecido num tanque. Como um tanque de água estagnada e podre. Como um tanque vazio. Como um tanque meio desmantelado, onde em tantas tardes e noites e manhãs se lavou o rosto.

No princípio é o verbo, no fim é-se um verme. A anciã segura nas mãos a fotografia que lhe tiraram há muito, com o marido e o filho. Não sabe quem sejam os três que ali se juntam, nem que acaso os juntou.

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