
A casa encheram-na os três com lixo.
Primeiro o anexo e o pátio, onde depositaram vasos, bidões vazios, serapilheiras que encontravam em estado razoável, lonas e plásticos perfeitamente bons, vassouras e baldes ainda de aproveitar, colchões com molas ao dependuro, uma ou outra ferramenta comida pelo óxido, tábuas cheias de musgo, telhas e blocos de cimento, chapas dignas de ser polidas e reutilizadas, mas sobretudo (no meio do quintal, em cima de uns barrotes) uma estátua de gesso decapitada.
Depois, aos poucos, foram atravancando a despensa, os corredores, as arcas, as estantes, as gavetas dos armários, a parte de baixo das camas. A casa engordava com todo o tipo de objetos: uma coleção impressionante de bagatelas, maquinetas incompletas, sacolas, adereços, caixotins, relíquias, revistas, coisas obsoletas e sem préstimo, tudo muito depositado e arquivado, já não numa certa lógica taxonómica que no início dispunha a colheita por género e semelhança de produtos, mas a esmo, ao calhas, onde pudesse ser.
Os três farejavam em grupo, tomavam como seu o que entendessem ter sido desprezado injustamente pelos outros, levavam para reciclar. Era a sua missão na terra. Com o tempo reduziu-se a ela a razão por que existiam. No pouco espaço sobrante entre as paredes, repetia-se com esforço cada vez mais acrescido as tarefas básicas. Cozinhar, evacuar, tomar banho não despertavam nem uma terça parte do entusiasmo que se punha na sorte de encontrar um tecido, uma bugiganga, uma louçainha, um manipanso, uma piaçava, um desperdício qualquer.
Assustaram-se os vizinhos, vendo crescer imparável o cemitério de quinquilharia. Sentiam asco pelos três, cujo fedor os anunciava e denunciava. Dirigiam-lhe preces que se transformaram em injúrias e ameaças. Dizia-se, por exemplo, que o velho não deixava a mulher e a filha já cinquentona alimentar-se devidamente, citavam-lhe as máximas de que “O muito cagar ensina a pouco comer” e de que “Poupando água e sabão, ganharás o teu milhão”, sabia-se de fonte (talvez não muito limpa) que a banheira a guardavam eles para algum traste que pudesse servir-lhes e para não para se servirem eles do fundamento de terem inventado as banheiras.
As autoridades foram alertadas. Uma, duas, três, mais vezes ainda. Demoraram a aparecer. Quando finalmente o fizeram, o trio havia-se amotinado no seu antro. Esquálidos, macérrimos, de olhos exorbitados pela fome e falta de luz, quase grunhindo, receberam de má vénia as vomitantes e atónitas assistentes sociais, que mal podiam manter-se em pé e ainda assim foram capazes de uma resolução.
O delegado de saúde explicou à presidente da junta que se tratava de um deplorável caso da síndrome de Diógenes e que era preciso, a bem da higiene pública, agir de imediato. Foi com urros e pranto que a família foi retirada à força do ninho de imundície em que vivia. Com espanto e náusea viu a vizinhança, camião atrás de camião, despejar-se o bojo imundo da casa, o que a muitos lembrou (não sem propriedade, acrescente-se) uma valente uma diarreia, ou uma disenteria, limpando-nos sem dó nem piedade as tripas.