Haría

Haría
Foto de arquivo pessoal (2017)

 

Descemos a Haría, depois de serpentearmos uma montanha onde as curvas e contracurvas nos traziam ciclistas solitários e retângulos repletos de aloé vera. As casas são tão brancas como as folhas deste caderno, branco imaculado que se estende com os muros ao campanário de uma igrejinha e ao relevo dos poços. Li que chamam oásis a este povoado, porventura à conta destas palmeiras que cresceram e balançam entre jardins negros de pedra-pomes, ou, quem sabe, por causada paz que repousa com o pôr do sol nas pequenas ruas sem gente.

O carro desliza no asfalto num som dormente e quase tão discreto quanto os lagartos que me garantem existirem nesta ilha e que ainda não vi e talvez não veja. Uma rapariga sobe agora em sentido oposto ao nosso, por dentro de um reduto particular, calcando com dificuldade o chão feito desta rocha, tão idêntico ao cascalho que chocalha e desequilibra, mas mais mole e muito mais escuro. Paramos para fotografar a vista do vilarejo. É estrangeira a rapariga, como estrangeiros somos nós, inglesa decerto, uma entre milhares. Afeta o mesmo ar perplexo de quem escreve estas palavras e se atreveu a invadir uma propriedade para lhe pisar o quadrado de cinza dura ao redor dos catos.

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Haría - Lanzarote
Foto de arquivo pessoal (2018)

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Voltamos ao carro, retomamos a viagem, avançamos para o centro da povoação, a tarde já muito próxima da noite. Impressiona a limpeza geral, o desenho arrumado das habitações de estilo colonial, o aprumo das paredes e do alcatrão, o ruído disciplinado das lojas, cafés e das casas de pasto, uma certa dúvida de que Haría exista de facto ou seja parte de um conto por contar. Aqui como em toda a parte, os homens precisam do seu vinho para celebrar. vejo mesas de madeira e jarros de sangria e t-shirts brancas erguendo os braços para brindar. estamos perto do Corona, o maior dos fornos adormecidos de Lanzarote.

Quando nos metemos a uma das vias rápidas, perto do mar, escureceu já. As luzes do carro esforçam-se por abrir os nossos olhos ensonados. Faço perguntas e tu respondes, retas infindáveis, placas toponímicas com nomes estranhos (Tabayesco, Máguez, Ye, Guinate, Guatiza, Teguise, Arrieta – eco da língua guanche), trânsito quase nenhum. Digo não me importava de aqui ficar, gosto deste sossego, cheio de cosmopolita tentação, tu ris. Pensas decerto que isto é um bluff. E, no entanto, falo cheio de verdade, quem sabe de premonição.

Caleta de Famara, 24 de agosto de 2018

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Caleton Blanco

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Caleton Blanco - Lanzarote
Fotografia de arquivo pessoal (2017)

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Viajamos no tempo quando nele se equivoca o corpo, revendo-se no acontecido, ou porventura antecipando-o. Grande enigma, porém, é a sensação de regresso aonde nunca se esteve, como este asfalto interminável em linha reta (uma lomba além, outra mais longe ainda), esta mole de lava e lapíli, esta areia branca em pequenas dunas até ao mar (mais branca onde o basalto é mais negro), este verdeazul da água que agora mesmo me parece um convite libidinoso, assim tão calçado e tão vestido eu, grande enigma será, porque me sinto de novo em casa não a tendo antes conhecido, e ainda a viagem não acabou. Chega-se a Caleton Blanco por estraditas empoeiradas, entre filas de automóveis e jipes estacionados onde calhou. É-se recebido pelo flamenco, pelo cheiro bendito da carne na grelha (famílias inteiras à roda das salsichas, do entrecosto, das costeletas), que um pai, um tio, um avô diligentes manuseiam com a arte, acompanhados sempre da inevitável Tropical, que outras mãos, zelosas, lhes municiam, ou que vão buscar à geleira, essa também parte do ritual. Repito que me parece isto uma viagem no tempo e que viajamos no tempo quando, como aqui, nos parece a ida à praia uma grande festa e a não incomodam os anúncios publicitários nem o velhaco snobismo de quem a transformou num estado social, onde a carne rescendente, a música popular e as famílias inteiras já não são bem-vindas nem cabem onde a vaidade e o pedantismo ergueram restaurantes com estrelas Michelin e resorts à prova de pobres. Em Caleton Blanco a soberba água transparente e cálida, de um toque aveludado que nos faz estremecer, ainda é de todos e, também por isso, viajamos no tempo, também por isso fotografamos o que por instantes nos parece um paraíso quem sabe gozando derradeiros dias tranquilos. é uma da tarde. prosseguimos viagem. Uma tabuleta indica-nos Órzola à direita, Arrieta em sentido oposto. O aroma da carne grelhada persegue-nos alguns quilómetros. Sentimos fome. Uma fome irresistível.

Caleta de Famara, 26.08.2018

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Los Charcones (Playa Blanca)

Los Charcones, Lanzarote
Foto de arquivo pessoal (2018)

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Depois de atravessarmos, a pé e debaixo de um sol inclemente, uma vasta planície de terra árida, onde cicatrizam sulcos de chuvadas distantíssimas no tempo e piroclastos repletos de pó (aqui e além um desses prodigiosos arbustos carnudos, nascidos e crescidos rente ao chão, acinzentados e em forma de cato), chegámos ao hotel em ruínas. Dizes-me que aqui moraram os ciganos. E, de facto, a cerca de arame foi derribada e nas varandas postas portadas de madeira, estores, pequenas peças de mobiliário, provas de um improviso de vida que víramos já lá atrás, em restos de fogo no meio de pedras que para esse fim terá juntado quem aqui pernoitou. Nunca terminaram este edifício, que alberga aos ombros, como o gigante Atlas, um pedaço do mundo. Estamos na costa, o oceano bate com ímpeto nas rochas, rochas tortuosas, em cujas arestas pomos os pés em modo de degraus, descendo com prudência até ao lugar que me querias mostrar. Chamam-lhe Los Charcones e é esplendoroso. A maré baixou, as cavidades sem água rutilam com os estiletes do sal, de um branco que fere os olhos. Mas a beleza a que me trazes é outra, são estes olhos que a toda a volta impressionam, pequenas lagoas de um sem-fim de verdes graduados, profundos, como vidros para as entranhas do estranho mar que neles se encafuou, vertiginosos anfractos que não paramos de fotografar e entre os quais caminhamos com um arrepio. Isto é bonito, não achas? Julgo que sorrio em vez de responder-te, um pouco embriagado, vendo o azul e o verde digladiar-se num empenho de espuma e de espanto. É meio-dia, o sol bate-nos em cheio, não sei bem em que planeta. 

Caleta de Famara, 29.08.2018

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Viagem

Floresta, Norbert Maier
Fotografia de Norbert Maier

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A primeira impressão que se tem no meio da floresta, ao atravessar-se a cortina de luz entre as árvores, é o chapinhar das botas na terra húmida. O desenho da sola fica sotoposto nos carreiros ao longo de caminhos macios de musgo e folhas oxidadas para logo se perder nos pedregulhos duros por onde é preciso continuar. Sobe-se, trepa-se a custo os carreiros dos lobos. As fragas são uma especialidade morosa, exigente. Os pulmões sentem o ar álgido da montanhas. O silêncio pressiona os ouvidos, fá-lo como uma grande bolsa de paz a que se não está acostumado. Dói por isso caminhar, respirar, escutar a ausência de ruído. Algo aqui rodeia permanentemente a cabeça e os ombros, corta a pele, invade as unhas, poisa nos lábios, cai dentro de nós como água num odre vazio.

Atinge-se um ponto alto. Daqui avista-se o desenho acidentado das penhas, o serrilhado da copa das árvores, a linha branca e lisa das neblinas, o vago monótono azul da cordilheira cada vez mais ao fundo. Às costas a mochila pesa mais. A existência, pelo contrário, é agora leve como uma pluma. Em nós, como num envelope selado com lacre, está o instante: no aqui e no agora, vive o eu!

O trilho amplia-se. Vê-se a linha verde do rio. De braços abertos e olhos fechados sentimo-nos querer tombar no abismo. Em nós, como nos pássaros, cresce o apelo da vertigem. Pudéssemos arremessarmo-nos e ir, ir e alcançar o horizonte. Em frente o espaço é uma fronteira. Precisamos de vencê-la. Ela é o intervalo entre nós e nós mesmos, entre nós e – quem sabe –  o nosso deus. Minúsculos e enormes, como as figuras de Caspar David Friedrich, abrimos os sentidos. 

A viagem conduz-nos a um labirinto de antigas veredas. Empilham-se verdes e amarelos e ocres e vermelhos outoniços, acotovelam-se ramos de nogueiras e de carvalhos, ulmeiros, teixos, juníperos, amieiros, zelhas, medronheiros, azereiros, castanheiros, fumega o curso de uma levada. A água é de uma pureza comovente, límpida de tão nova, fria de tão intocada. Desce, corre já, serpenteia a floresta, onde orelhas, antenas, chifres, se voltam na nossa direção. Somos intrusos neste jardim. Aqui pernoitam as derradeiras ninfas, os últimos faunos. Aqui bocas selvagens ignoram a nossa fala e desprezam-na. O curso da água segue até a uma pequena clareira. A primeira cabana recebe-nos. É terrível o efeito desta aparição. Outras mais acima e mais abaixo. O homem aqui está. E eu vim também. Eu estou aqui. Eu, que sempre aqui pertenci, não sou deste lugar. O bafo repete-se. É um aldeamento.

A civilização multiplica a presença de objetos. Um telemóvel toca, vibra, fere a ductilidade das formas. Há casacos coloridos, gorros, luvas em movimento. Risos, vozearia, alguém disparando um flash. O alarido assusta o pundonor do pensamento das árvores. Interrompendo a sua filosofia milenar, as rochas desabam. Um garoto empoleirado num píncaro grita. Esboroado, o instante transforma-se em eco. Adultos furiosos alcançam-no, imprecações, uma bofetada, choro. A maldição humana. Aqui estou.

À noite, entre toros e grossas panelas de ferro fundido, as chispas avermelhadas saltitam. Chia, crepita, estala, rumoreja a lareira. Os outros deixaram-me finalmente. Tenho-me a mim. Trouxe vinho e um caderno. Imaculados, os segundos seguram-me ao nada. A música de Brahms (sexteto de cordas, opus 36) adormenta-me. Penso em coisas. Não chega a ser uma narrativa, somente fugazes iluminações. Logo a penumbra as envolve. Penso em ti. Mas também tu és efémera. Penso numa escadaria helicoidal. Subo e desço à infância. Subo e desço a cada coisa que produzi. Subo e desço ao absurdo. A solidão é o espelho de quem sempre fugimos. O vinho e o caderno são supérfluos. Para que continuo eu a fugir?

Regressa-se. A floresta é hostil. Quem aqui vive não ama quem aqui não pertence. Mas regressa-se a que lugar? Volto-me. Cada pegada que aqui deixei é um fóssil. Eu, que sempre aqui pertenci, não sou deste lugar. Mas a que lugar pertenço eu? Intacta a garrafa, vazio o caderno. O princípio do mundo talvez seja assim…

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Sempre em frente

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Fotografia de Tookapic

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Ao inverter a marcha, os pneus desenham no saibro desolado a imagem, o som inesquecível de uma despedida. A noite é gélida e oca, inútil como a casca de um fruto seco. O que soa por dentro agora é um chocalhar de palavras soltas, cascalho, memórias de uma ferocidade extrema. A imagem e o som de uma despedida. Os pneus chiam levemente sobre o alcatrão. A cabeça é um deserto. Curvas, solavancos, travagens repentinas. Frases desconjuntadas e assassinas, como pedras pontiagudas. Depois, outra vez a marcha. E a cabeça distante, como naqueles dias em que atiramos seixos ao rio. Como naqueles dias em que fazemos círculos à toa no caderno. Como naqueles dias em que acendemos fósforos por acender e nos hipnotizamos com a chama mortiça de uma recordação. A noite é um ventre. Uma prisão. Sufocamos.

– Um dia perceberás o que te quis dizer…

– Um dia perceberás o que acabas de perder…

Subitamente, cega-nos o clarão de um pensamento. Holofote doloroso, o remorso. Depois, subitamente, a raiva. O acelerar do carro. O cheiro da embraiagem, da borracha queimada no asfalto. O incêndio da razão.

– És um merdas… Sempre foste um falhado…

– Merdas és tu… Não te admito, ouviste…

A melancolia é uma peçonha. Voltamos a ouvir o velho álbum dos Röyksopp. Voltamos a pensar nas coisas por fazer (o atraso é agora desastroso, incomensurável, irreparável). Voltamos a desejar nunca ter saído da cabeça adolescente. As viagens. Os livros. As memórias límpidas. Os cadernos perfumados pelas longínquas especiarias.

– Porra…

A melancolia é um poço. Cismamos. Todo o nosso ser é, de alto a baixo, um pilar em queda. Um império prestes a desmoronar-se. As antigas dúvidas são as novíssimas dúvidas. Os velhos dilemas pesam agora como o próprio ar que se bebe em travos arfantes. Vetustas cicatrizes abrem e sangram. Quem somos nós, porra?

– És um merdas… Bem que me tinham avisado…

– Ouve… Tem lá cuidadinho com que o dizes… Não te admito…

Havia, outrora, outro caminho. Havia neste corpo outra pessoa. Os pensamentos correm como chispas alucinadas. As imagens sobrepõem-se, atropelam-se, obnubilam. Há em nós um azedume de fiasco. De prejuízo. De tempo perdido. O carro resfolega.

– Porra…

Bem gostaríamos de acreditar naquela frase do Eugénio. O nosso destino somos nós. Então, por que carga de água, queremos estas mágoas a repetir-se. Esta vileza de nos esmagarmos contra o nosso próprio sonho. Porquê?

– Um dia perceberás o que te quis dizer…

Não, definitivamente estamos fartos. Saturados. Incapazes de tolerar, transigir, perdoar. Basta. Curvas, solavancos, travagens repentinas. O maldito semáforo. Esta covardia de respeitar o vermelho. Não seria mais fácil irmos sempre em frente, sem filtros, arrependimentos, considerações metafísicas? O que quer que sejamos é agora um peso, uma ninharia, um farrapo (sabemos sempre manusear tão sabiamente as metáforas aniquiladoras). Somos um bocejo. Uma esquírola. Uma vergôntea feia. Uma secreção. Somos ridículos. O carro quase adormece…

– Um dia perceberás o que acabas de perder…

Apostamos que do outro lado alguém se ri desta balofa, incompreensível, miserável frase de recurso. Talvez a maldita sorte ande a mofar de nós. A noite engole-nos. A noite cresce. A noite devora estes e todos os outros argumentos vãos. O clarão dos holofotes cega-nos. As lágrimas podem agora, finalmente, tropeçar nos escombros. Como autómatos, os pneus conduzem-nos. Estamos a caminho de algum lado. Estaremos sempre em caminho. A maldita cabeça repete, como o eco através da garganta, «Não colecciones dejectos o teu destino és tu.» As feridas doem. Nunca presumi que não devessem doer. Bem gostaríamos de acreditar naquela frase do Eugénio. Voltamos a desejar nunca ter saído da cabeça adolescente. As viagens. Os livros. As memórias límpidas. Os cadernos perfumados pelas longínquas especiarias. A estrada é em frente. Apenas em frente. Sempre em frente.

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