O ninho

Baby
Fotografia de Ummu Nisan Kandilcioglu

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Todos os anos no primeiro dia de janeiro, Artur Bentino punha as suas notas de conto a soalhar, presas por pedrinhas brancas no parapeito da janela alta do quarto. Às vezes chovia e então esperava mais algum tempo até o sol de começo de ano poder acariciar o papel.

«É para dar sorte» explicava aos poucos que ousavam perguntar.

A mulher sabia que era por vaidade e velhacaria. Assim, convenceu o amante a ir lá roubá-las, usando uma estaca com um prego na ponta em forma de gancho.

À medida que as notas se iam desprendendo dançavam um momento no ar, às voltas, e vinham depois cair no chão recoberto de lama e de bosta e o tipo recolhia-as uma a uma, raspadas já pela imundície.

«Isto também dá sorte» satisfazia-se ele com orgulho irónico.

Quando o serviço ficou terminado, a mulher jurou que uma pega-rabuda tinha acabado de levantar voo da janela, levando no bico o último dinheiro.

«E como era a pega?» desesperou-se Bentino.

«Ora, como era a pega! Há de ser como todas as outras: matreira, arisca, linda…»

Artur Bentino bem a procurou, à cata do milionário ninho que tanto lhe custara a juntar. Mas o melhor que descobriu foram duas ou três tocas de poupa, vazias, repletas de fezes ressequidas e de velhas tiras de jornal – a fazer de palha.

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A igrejinha do perdão

Igreja românica com neve
Fotografia de Georgi Danielyan

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Há invernos em que o ermo alcantilado e a pequena igreja de São Benedito não se veem por causa da neve. Ela suavemente mergulha do céu níveo e negro, cai durante dias e semanas, fina camisa de camadas frias, lentas e insonoras, até desfigurar por inteiro a paisagem.

Os habitantes de Reosa-Romano persignam-se na direção do horizonte branco, porque a igrejinha lá está, escondida ao lado da grande magnólia-perene, uma e outra grandes borrões inseparáveis das outras formas ajoujadas pelo fremir do vento e pela bruma.

Dizem que na era dos cruzados se refugiaram nela cristãos e mouros, judeus e ciganos, gente foragida e gente rica, gente vilã e gente nobre. Dizem que nos lugares onde a terra acaba e o abismo se precipita todo o coração é coragem e toda a coragem uma forma de perdão. Os habitantes de Reosa-Romano repetem esta frase há demasiado tempo e, por isso, já só em parte a compreendem.

Nos dias de sol, os montanheses escalam o granito íngreme e sobem ao adro. Depois penetram o espaço escuro e silencioso do templo para rezar, para descansar ou simplesmente para saciar a curiosidade.

Desde há séculos que um velho padre espera os visitantes no confessionário. Merecer a absolvição é um feito de que vale todo o esforço. Se esse sacerdote é chamado para junto de Deus, outro toma o seu lugar. Esse velho benevolente, cuja penitência é pedir e conceder o perdão, aí nos espera desde sempre, é o que dizem.

Nos meses hiemais de dias opacos e ínvios ou nos meses luminosos da primavera e do verão, de alguma coisa hão viver estas pobres criaturas eremitas. Ninguém ao certo sabe de quê, ou como, ou onde.

Há quem afirme que tudo não passa de uma fantasia e que no interior da pequena igreja não se vê vivalma desde há mais de quinhentos anos, quando uma horda de cavaleiros cristãos, ou sarracenos, ou mercenários a soldo, massacrou todos os inocentes que dentro dessas paredes se ajoelhavam e erguiam as mãos.

Há quem afirme, pelo contrário, que tudo é verdade. E aponta uma adaga ao próprio ventre. Quem não acreditar que faça justiça, ou que retire a sua palavra.

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«Em Nome da Luz» ou uma Poética do Silêncio

Em Nome da Luz (poesia de João Ricardo Lopes
Crédito fotográfico: União de Freguesias de Fânzeres e S. Pedro da Cova (Gondomar)

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Nenhuma palavra é mais obsidiantemente procurada na obra de João Ricardo Lopes do que aquela que escreve silêncio. Em todos os seus livros, não excluindo os de ficção, ela (re)ocorre investida do peso, do poder, do prestígio de um vocábulo-fétiche (como o próprio autor reconhece [1]), em torno do qual se estrutura uma poética de recusa, cisão e reconstrução do mundo, a partir da visão minimalista que a si mesmo e aos outros impõe.

No seu último volume de poemas, Em Nome da Luz (2022), a palavra-conceito silêncio é convocada em onze das quarenta composições do livro. Significativamente, como o penitente que pratica um ato de ablução, como o neófito que encontra a sua paz, como o caminhante que descortina um sentido para a sua existência, como o criador que define uma fórmula, o poeta anota:

EM LOUVOR DO SILÊNCIO
quando precisas de silêncio,
lavas as mãos muitas vezes,
aqueces sem pressa uma chávena de café,
lês os haicais de Bashô
o silêncio, como os caminhos procurados
entre as cidades, não é absolutamente fiável –
é uma adoração apenas, uma labareda,
onde arde o teu amor
e às vezes, sem querer,
um poema [2]

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Há aqui a verbalização – e recordo apenas o grande mestre Ruy Belo – de um ensinamento que vem confirmar que “Nenhum grande poeta terá deixado de sentir a sedução do silêncio”, porquanto “É-se poeta em exercício, não tanto pelo que se diz como pelo que subtilmente se indica ficar por dizer” [3]. Clarifica-se nestes versos, com efeito, não apenas um intuito purificador, do poeta que deseja desprender-se da sujidade (“lavas as mãos muitas vezes”), mas também – consumada a purificação – o desejo de (re)unir-se a rotinas simples despoletadoras do ato criativo, como sejam o preparar uma chávena de café, o ler os haikus de Bashô, o nutrir-se do fascínio – leia-se “labareda” – que o contacto com as coisas íntimas e despidas torna possível.

Esta grande introspeção que o silêncio traduz para João Ricardo Lopes, sinónima de catarse, de ascese, vem já embrionariamente plasmada em obras anteriores, particularmente no magnífico Eutrapelia (2021). Nele, no poema “Duomo, Milão”, ecoam com leveza espantosa os gestos que o peregrino, o asceta, o homo silens escrevem num esforço de supressão de si mesmos, num empenhamento para o vazio interior e para a busca de redenção:

DUOMO, MILÃO
as primeiras impressões são a pedra talhada,
a luz periclitante nos vitrais
depois os joelhos tocam a madeira
e as mãos tocam o rosto
a oração segregada devagar
num fio de voz
invade a rocha até ao último dos nossos pecados
o silêncio é total.
através das naves e das colunas, ele atinge
o extremo do templo
e é puro
pertencemos a outra era,
as impressões derradeiras são já distantes,
como alguém chamando de dentro de um sonho
ou chamando de outro mundo [4]

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De que se se pode salvar, ou sobreviver, pela catarse sabemo-lo desde os gregos. A força dramática das palavras tem, a par da beleza (rudeza) lírica das suas imagens, constituído uma das conquistas mais sublimes da literatura. No caso particular da poesia de João Ricardo Lopes, poeta que conheço desde a sua inclusão na terceira e última edição da antologia Anos 90 e Agora (2005), tende esta catarse a confundir-se com fuga à realidade, ou antes com uma feroz resistência à realidade, através do alheamento e da busca de solidão, através da escolha de (dir-se-ia preferência por) pormenores dessa realidade que propendem em última instância a anulá-la: falo da realidade que o poeta decompõe e recompõe em elementos simples, insignificâncias, bagatelas, detalhes que apenas o silêncio e a atenção autorizam a conhecer, aquilo a que Jean-Luc Nancy designa por “misérias literárias” [5] e que conferem à sua escrita um ímpeto (por vezes enumerativo) absolutamente encantador.

ESTA MANHÃ O SILÊNCIO
esta manhã o silêncio subiu pelas paredes e pelas asnas,
trepou as travincas, as teias altas, as cérceas geladas
e atravessou a pedra, o cimento, as fissuras, o próprio ar
sou agora toda a minha vida, o meu destino
e a casa estremeceu
e as palavras – ferro congelado –
doeram nas mãos [6]

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O inusitado fundo imagético que decorre das mãos deste outrora novíssimo leva-me a recordar o agrado com que, na malograda Bulhosa, acolhi o seu Contra o Esquecimento das Mãos (2002), quando compelido a estudar a nova geração de poetas, li versos deste jaez:

de refracção em refracção afunda-se
o pensamento nos linhos da casa
é branca a tarde
na alma garimpam-se as impuridades [7]

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Ou:

durante o intermezzo
cumprimos o possível
das enxúndias, do bodum
dos lodos nos limpámos
até sermos desta transparência de água [8]

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Recordo, a propósito, uma conversa com Jorge Reis-Sá, que deste poeta me propôs também a leitura do seu primeiro livro, premiado pela Associação de Escritores Portugueses, em 2001. Nele, um curto poemário intitulado A Pedra Que Chora Como Palavras, surgem já – em alicerce – as temáticas que o tempo viria a permitir enovelar e desenvolver. Por exemplo, o apelo (magnetizante) da metapoesia. Por exemplo, o exercício cinematográfico dos cenários onde se faz retratar (autobiográfica ou fictivamente) a voz que se ergue das / se esconde nas paredes translúcidas do poema. Por exemplo, a musicalidade e o ritmo sincopado dos versos, quase sempre curtos e lapidares. Por exemplo, a minudência visual, o olho veemente que absorve as nuances de um anoitecer. Por exemplo, o apuramento da metáfora, muitas vezes insólita, acutilante, desarvorada. Por exemplo, em conclusão, o poder reparador do silêncio – do silêncio de que vimos falando – e que representa bem a tensão permanente entre equilíbrio e desequilíbrio de que fala Rosa Maria Martelo [9].

no outono, quando se oxidam
as folhas,
parece-se mais nítido e
perturbador o brilho dos poetas
com os cigarros no casaco
e um bilhete de comboio para parte incerta
anotamos brevemente na pele da mão
que um dia, se voltarmos,
será apenas por este pouco silêncio (…) [10]

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Estarei, porventura, a desviar-me do ponto nevrálgico em que gostaria de fixar a atenção. E esse ponto consiste na admissão de que habitam a poesia do autor de Em Nome da Luz – insuficientemente conhecida, escassamente divulgada – apelos sucessivos a uma prática diária de limpeza, de decantação, de precisão, de higienização, insinuada mais ou menos explicitamente em poemas inúmeros onde o eu voluntariamente renuncia aos luxos literários para se comprazer com a dignidade do mínimo, mínimo esse que, paradoxalmente, transporta o máximo do ethos poético. Assim o exprime, por exemplo, no belíssimo penúltimo poema do seu último livro.

HIGIENE DIÁRIA
coisas de que um homem precisa:
dos doze girassóis de van Gogh,
dos quatro Evangelhos,
de sabão rosa [11]

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Sublinho este apontamento. Sublinho-o, visto que me parece notório que a poesia deste autor tem evoluído no sentido de um pendor sincrético, que confunde progressivamente mais obra e autor, deixando perceber que a poesia não é para si uma mera arte de versos (como a metapoesia sugere), mas uma apologia da vida eremita, um manifesto pessoalíssimo de cosmificação [12], um caminho salvífico do sujeito pelo meio das veredas do abismo: nada lhe importa tanto como a curta vida do poema, como o poder habitá-lo seja de que forma for, ainda que possa, como tão bem o escreveu Gastão Cruz, “Tratar-se de um trabalho destinado ao malogro” [13], ainda que esse pouco possa albergar tudo quanto foi capaz de aquilatar na vida.

Será, porventura, esse o fito desta poética do silêncio de João Ricardo Lopes: incumbir ao escrito a missão de se anular a si mesmo, de se nadificar [14] no sentido em que Jean-Paul Sartre o aduz, de criar (num processo antecipado de autoapagamento) o milagre da vida e, nele, muito em particular, o parto do poema, mais ou menos como quem efemeramente desenha ou constrói sobre um areal e existe apenas porque existiu. Esse processo, assumido cada vez mais como única via, abre a porta a toda uma ordem do caos: o poeta é aquele que descobre por acaso, aquele que desvenda por acidente, aquele que encontra algo buscando outra coisa.

SERENDIPISMO
pensava em Fernando Pessoa,
em ti,
na quantidade de amor que nos exigem as palavras,
no nevoeiro sobre o Zambeze,
nas trovoadas de maio,
na nervura rigorosa de cada folha
encontra-se a perfeição procurando outra coisa,
o vazio, por exemplo
hoje relembrei os abetos de Cremona.
senti de novo a dureza do frio e o pavor do vento
percutindo na floresta
o vazio é também uma forma de serendipismo:
buscas o poema e achá-lo-ás [15]

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Considero interessantíssimo este poema de Em Nome da Luz, título recebedor há poucos meses do Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres. Todo o volume pede olhos avisados. Quem acompanha o percurso poético deste autor saberá reconhecer que ele se vem impondo um pouco em contramão (ou em contramaré), não apenas pelo destaque que confere à metáfora [16], nem pelo reaproveitamento lexical de termos já em franco desuso (ou até mesmo esquecidos), nem pelo quase monacal voto de isolamento a que o escritor se entregou (razão justificadora por si só do seu quase anonimato), como sobretudo pelo quieto movimento de compor o nada, de amar o insignificante, de acreditar piamente no inútil de todo o ruído do mundo.

DA SABEDORIA
alimenta-te da chuva,
de tubérculos ocasionais, da fruta
silvestre,
alimenta-te das paisagens,
do silêncio mais
rigoroso
a poesia, na sua essência,
é eremita.
tudo o mais é excessivo
e inútil.
tudo o mais é vento,
veneno que passa [17]

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Valerá a pena lembrar que tudo o que é “excessivo” e “inútil”, “vento” ou “veneno que passa” não cabe na poesia (“inutilia truncat” prescreveria Horácio”), tão-pouco na alma de um homem limpo, profundamente cônscio da exiguidade da vida (não sou eu quem o diz, mas o Eclesiastes).

Em suma, não existe melhor entendimento do que possa valer um livro, um poema, um verso, do que o sentimento de retidão nele defendido até ao “silêncio mais rigoroso”. Signifique esse silêncio – meça-o o leitor – o muito que significar.

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Bahia, 08.06.2023 / Paulo José Miranda

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[1] Cf. entrevista de João Ricardo Lopes à revista Novos Livros – “João Ricardo Lopes: “Dormir uma noite inteira e acordar com vontade de recomeçar a vida”, disponível em linha em https://shorturl.at/beky8 (consultado em 2023-06-03).
[2] Em Nome da Luz, Elefante Editores, s.l., 2022, p. 43.
[3] Ruy Belo, «Poesia e Crítica de Poesia», Na Senda da Poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 61.
[4] Eutrapelia, Editora Labirinto, Fafe, 2021, p. 14.
[5] Jean-Luc Nancy, «Compter avec la poésie», Resistance de la Poésie, William Blake & CO, s.l., 2004, p. 24 : « Si la poésie insiste et résiste – elle résiste à tout, en quelque sorte, et c’est peut-être aussi pourquoi les poètes font souvent «figure de peintres du dimanche», comme vous dites avec raison : l’insistance de la poésie va jusq’aux formes les plus humbles, les plus pauvres, les plus démunies, jusq’à des véritables misères littéraires, jusq’au goût le plus sucré ou le plus sot pour des bouillies à demi cadencées d’ésotérisme et de sentimentalité (il y là comme une clochardisation), mais elle va jusque-là, si bas, parce-qu’elle insiste, elle demande quelque chose, et quelque chose que, je le crois vraiment, on ne peut pas réduire aux retombées petites-bourgeoises du pire romantisme (…) ».
[6] Op. Cit. (2022), p. 30.
[7] Contra o Esquecimento das Mãos, Editora Labirinto, Fafe, 2002, p. 46.
[8] Ibidem, p. 48.
[9] Rosa Maria Martelo, «Poesia e des-equilíbrios», A Forma Informe, Assírio & Alvim, Lisboa, 2010, p. 9: “Se a poesia pressupõe ou procura o equilíbrio, é porque se joga no limiar de o perder e num permanente confronto com o desequilíbrio. (…) Faz parte do movimento construtivo da poesia um certo desencontro do poema com ele mesmo, isto é, o desajuste das suas próprias estruturas e a possibilidade de fazer «oscilar» (o termo é de Luiza Neto Jorge) os pressupostos que lhe serviram de ponto de partida.”
[10] A Pedra Que Chora Como Palavras, Editora Labirinto, Fafe, 2001, p. 35.
[11] Op. Cit. (2022), p. 46.
[12] O termo é de Luís Miguel Nava, que o diz assim: “Todo o acto poético é uma cosmificação. Cosmificação que se opera a partir do caos a que dá lugar a destruição da língua. Não por acaso o acto poético se chama de criação e a etimologia aproxima a poesia do fazer.” Cf. «Artaud: Tric Trac du Ciel – Uma visão de conjunto», Ensaios Reunidos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 40.
[13] Gastão Cruz, As Leis do Caos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, p. 35.
[14] No primeiro capítulo de O Ser e o Nada, Sartre anota: “(…) é preciso, primeiramente, reconhecer que não podemos conceder ao nada a propriedade de «se nadificar». Já que, ainda que o verbo «nadificar» tenha sido concebido para tirar ao nada até a mínima aparência do ser, é preciso confessar que somente o ser se pode nadificar, já que, seja de que modo for, para se nadificar é preciso ser. Ora, o nada não é. Se podemos falar dele é porque possui tão somente uma aparência de ser, um ser emprestado (…). Por outro lado, o ser pelo qual o nada vem ao mundo não pode produzir o nada mantendo-se indiferente a essa produção, como a causa estoica produzindo o seu efeito sem se alterar. (…)” Cf. «A Origem da Negação», O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica, Edições 70, Lisboa, 2021, pp. 77-78.
[15] Op. Cit. (2022), p. 17.
[16] Bastará levar em linha de conta o que Rosa Maria Martelo assinalou, quando diz que “Creio que uma das consequências do empobrecimento da condição ontológica da poesia passa pela secundarização do papel da metáfora e pela construção de um modo de expressão essencialmente alegórico.” Cf. «veladas transparências (o olhar do alegorista), Vidro do Mesmo Vidro – Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961, Campo das Letras, Porto, 2007, pp. 86-87.
[17] Op. Cit. (2022), p. 44.

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Aral

Moinaque, Caracapaquistão, Usbequistão, barcos, Mar de Aral
Fotografia de WaSZI

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É indescritível a sensação de atordoamento que experimenta este viajante nesta parte do mundo, onde se presenciam factos como os que a seguir se enumeram.

Estamos em Moinaque, no noroeste do Usbequistão. O viajante sobe a uma plataforma de madeira, que facilmente se confunde com o passadiço de um porto. Os barcos lá estão, ali, acolá, mais além, tombando uns a estibordo, outros para bombordo, completamente enferrujados, esquecidos, agonizando sobre o leito arenoso do que foi até há escassas décadas uma das margens do mar de Aral. O viajante recebem-no num tugúrio nascido, algures aí, no meio do antigo perímetro lacustre.

Rustam Kerinov conduz um pequeno rebanho de cabras por entre as quilhas e as âncoras oxidadas. Leva ao ouvido um rádio de pilhas, na boca um cigarro quase completamente encarquilhado, nos olhos a devastação enorme de um ofendido.

«Aqui agora estão a plantar arbustos» explica Serik Tolvashev. «É difícil suportar as tempestades de sal».

«Arbustos?»

«Sim, fileiras de saxaul. Plantam-nos a intervalos de um metro. Para que cresçam e limpem o solo».

O viajante mal respira. A poeira embrulha a cidade-fantasma e cai como uma praga bíblica sobre o pelo dos animais. Chicoteia o casco doloroso das embarcações. Em boa verdade, nada segura o vento, nada se opõe aos minúsculos grãos de sal e de areia amalgamados e em movimento.

«De que se alimentam vocês agora» pergunta o estrangeiro.

Ao longe, Rustam Kerinov já não se vê. Do aparelhito anacrónico chegam, a custo, as notas de Boys don’t cry. Será uma alucinação pensa o viajante. Será um sonho, aqui coisa nenhuma é uma certeza: será uma daquelas circunstâncias absurdas de coisas que se misturam no tempo errado no lugar errado.

«Do pouco que nos sobrou da água, do nada que nos ficou de terra fértil, comemos o que calha» diz Serik Tolvashev.

Neste pedaço da geografia usbeque (mais correto seria escrever caracalpaque), as temperaturas descolam no mês de julho. O anfitrião serve um chá na sua cabana improvisada. Na única estante que nela se sustém, o viajante reconhece um velho exemplar do Corão. Fora destas paredes frágeis zune a força de um demónio, de um desastre, de um male sem nome. Mas a fé, a fé em Deus é maior do que o vento monstruoso capaz de embalsamar os vivos. A fé habita cada pedaço do mundo e é capaz de regenerá-lo.

O viajante ao poisar as mãos no chão sente um estremecimento. Vinte, talvez trinta anos atrás, no preciso ponto onde está o tapete estendido era o fundo de um lago. Sobre a sua do viajante nadariam carpas e lúcios, nadariam sargos e rutilos, nadariam bagres e solhas, nadaria pela certa algum esturjão formidável.

O estrangeiro pensa no pescador Rustam Kerinov, no pescador Orazbay Qobil, no pescador Marat Allanazarov, no vendedor de peixe Almas Dosivov, no encarregado da fábrica de conservas Madi Dyussenbayev, em todos os que nesta jornada conheceu já e se lamentam do mar desviado, roubado, evaporado – do mar de que sobrou o sal maldito e as ossadas dos barcos, do mar transformado em pó.

Nesta banda do que foi o grande azul de Aral, a finitude é imensa. Existe nela algo de nostálgico e de belo, como sempre sucede com a decadência no mundo. Mas suplanta-a a dimensão do sofrimento. Milhões de litros de água transviados para alimentar a ganância e o erro. Ao viajante chega-lhe o pensamento de que o sofrimento é a maior de todas as obras de que o ser humano foi capaz até hoje.

Serik Tolvashev conta como aqui perdeu o pai num naufrágio no início dos anos sessenta, era ele ainda uma criança, viva ainda a água que o matou.

Ao viajante custa-lhe acreditar. Mas aconteceu, numa rara tempestade vinda do Cazaquistão, em meados de fevereiro.

«Morreu o meu pai. O tio Dmitry escapou por um triz. Foi um infortúnio.»

Ironias ferozes atravessam-se-nos ao caminho, a sensação é indescritível. O viajante, por exemplo, falhou um concerto dos The Cure em Glastonbury há um par de meses, mas escutou-os há instantes, debaixo de uma súbita tormenta de pó. O viajante vê uma doca à entrada do deserto e escuta o estertor de velhos barcos gementes que afundam na terra enxuta. O mesmo viajante bebe – para se hidratar numa tarde escaldante de verão –, um chá a ferver, depurado pela temperatura elevada das impurezas da água péssima de Moinaque. O viajante – ironia suprema – é informado de que, no sítio exato onde Serik Tolvashev lhe serviu a bebida, sessenta anos andados às arrecuas, um naufrágio vitimou o seu o pai.

Quando regressar a casa, este estrangeiro talvez omita, por prudência, alguns pormenores. A vida, na sua pródiga maquinação, sempre pareceu uma mentira. E quem levará a sério, admitamos, a narrativa de um viajante mentiroso?

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O insulto

Emmanuel Kauffmann_typewriter
Fotografia de Emmanuel Kauffmann

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O rapaz gostava de coisas antigas. Todo ele, digamo-lo, caía para o antiquado. A começar pelo pullover sem mangas, de um tom amarelo pastel. Não havia uma única mulher no escritório que o não achasse piroso.

Depois havia aquela coisa entre o nariz e o lábio superior, aquela pelagem a parecer-se com um bigode, ou um buço, e que o tornava mais feio e antipático. E as raras palavras que dirigia aos colegas não ajudavam:

– Pode, por obséquio, arremessar esse agrafador na minha direção?

Era realmente muito desagradável. Ser-se interpelado de um modo cortês, à antiga, dificilmente pode aceitar-se num espaço onde crápulas e devassas se prestam todos os dias a uma feroz demonstração de animalidade.

Ponhamo-nos de acordo: o escritório é um lugar errado para se pedir o que quer que seja por favor. Ainda menos com palavras que ninguém entende.

O rapaz possuía outro grande defeito. Chamava-se Valdemiro. Valdemiro Perestrelo. Não convém hoje que se seja chamado de Valdemiro e Perestrelo. Não perguntemos porquê.

Outra disformidade merece ser assinalada. Embora fosse calmo, o rapaz escrevia demasiado depressa. Matraqueava o teclado do computador com força, com vigor, com fanatismo, num estilo que importunava toda a gente.

O chefe de departamento alertou-o em várias ocasiões para os perigos de uma escrita rápida:

– Fixe o que lhe vou dizer, Perestrelo: não me escreva coisas como “Recebemos com agrado o seu pedido” apagando uma letra na palavra pedido, entendeu? Nem que “Vamos verificar a sua conta” com uma letra a menos na palavra conta. Tem ido malta para o olho de rua por causa deste tipo de equívocos…

Mas o rapaz não se enganava. Possuía treino e devoção, outro grande mal nos dias que correm.

Habitava um apartamento modesto cheia de objetos obsoletos. Dedicava-se a traduzir Shakespeare. Fazia-o de um modo bastante simples: primeiro espreitava o texto original, depois repetia-o sotto voce, a seguir martelava na máquina de escrever a sua versão. Não usava dicionário.

A máquina de que se servia – uma pesadíssima Remington, modelo 12 de 1930 – nas noites mais criativas do rapaz prensava o papel num delírio que não deixava ninguém dormir no prédio.

O treino de Valdemiro vinha daqui.

Datilografava sem necessidade de conferir as teclas redondas. Fazia-o depressa e bem. Limitava-se a corrigir de quando em quando a posição dos oculinhos redondos. No fundo, alimentava o seu modo de vida, que nos parece tão bom como qualquer outro.

Foi, por isso, um espanto ouvir-lhe na manhã do dia de anteontem o insulto.

O chefe de que falámos atrás, impacientou-se com qualquer coisa. Incomodou toda a gente no escritório e toda a gente no escritório descarregou no rapaz, de tendência calado e sorumbático.

O insulto é uma prova corriqueira da nossa fraqueza. Ou das nossas fraquezas.

Esquecemos – e não será desprezível mencioná-lo – que a máquina de escrever de Valdemiro Perestrelo era gaga. Gaguejava nos P e nos A. Por vezes, quando o seu dedo tradutor apertava contra as respetivas teclas, havia um soluço e saíam dois caracteres juntos, ambos mal desenhados. Isso, admitamos, aborrece. Isso estragava, se não a boa disposição, o ótimo papel munken de que o rapaz se servia.

Porque lembramos isto? Porque a nossa cabeça se enreda amiúde em aborrecimentos de que nos não livramos facilmente.

De maneira que o colega mais chegado lhe disse algo como isto:

– Ó pancrácio, tem lá cuidado ou ainda rebentas a mesa!

De maneira que Valdemiro se interrompeu uns vinte segundos e, tomado por uma ira mansa, respondeu a direito e sem rodeios:

– Peço-lhe encarecidamente, Rui Maciel, que vá à berdamerda…

Um insulto, ainda que proferido por alguém desacostumado de os proferir, é sempre motivo de coletiva indignação. Assinalemos aqui o despropósito: não se manda ninguém à berdamerda, menos ainda quando se traduz Shakespeare.

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Um amor sonâmbulo

amor, coração, desenho,
Fotografia de Gaelle Marcel

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Para a Céu

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O rapaz sofria de noctambulismo. Durante a noite, empunhando uma vela, passeava para a frente e para trás pelos corredores da pensão e só ao cabo de algum tempo regressava ao quarto em paz.

É claro que esta história já tem algum tempo. Hoje ninguém passeia pelos corredores das pensões durante a madrugada.

O rapaz procurava o seu amor: ia sem saber que ia, voltava ao ponto de partida sem perceber que partira. Um autómato. Não oferece dúvida que este é o proceder dos que padecem da enfermidade. Nas últimas vezes fazia uma paragem diante a entrada do quarto 107.

Alguém que queria saber mais seguia-o cheio de curiosidade. Quiçá habitasse um quarto lá ao fundo, na ponta oposto do mesmo corredor. Talvez entreabrisse silenciosamente a porta à hora certa (os curiosos estão sempre a par das horas certas) e espreitasse, seguro de poder ver sem ser visto.

O rapaz carregava a candela com a mão direita e com a outra mão escrevia a giz (era, portanto, canhoto) qualquer coisa. Depois prosseguia a sua jornada sonâmbula e não acontecia mais nada. Esta coisa de escrever a giz era recente. Fazia-o com gestos lentos e macios, quase sussurrantes.

De manhã cedo a porta do quarto 107 rangia docemente, deixando sair para a penumbra do espaço comum a boa luz da manhã que nele já se havia instalado. A jovem professora de francês saía para o trabalho, uma rapariga muito bonita, de cabelos loiros encaracolados e olhos safíricos.

Vexadíssima, lia as misteriosas palavras e apagava-as com um lenço, não sem primeiro deitar uma mirada em redor.

Mais uma vez, quem isto observava regozijava-se com o segredo. Devia regozijar-se, porque abdicava do seu próprio sono. Quem trabalha precisa de dormir e nós sabemos que entre a escrita e a limpeza das palavras decorriam horas escassas.

Uma noite o rapaz demorou-se um pouco mais. Escreveu um poema. Era um bom poema, garantiram-nos. A rapariga leu-o na manhãzinha seguinte e hesitou. Vieram outros poemas e outras hesitações. Às tantas a professora passou a usar um lápis e a registar as palavras que lhe dedicavam num caderninho. Estava rendida.

Mas quem seria o poeta. Nos quatro pisos da pensão juntava-se muita gente, jovem, menos jovem, velha. Havia um rapaz bem-apessoado, o do número 114: só se cruzavam ao fim de semana, por trabalharem em diferentes turnos. Ela encarou-o com interesse, mas ele lia as Flores de Baudelaire e nem lhe pôs os olhos em cima.

Como gostaria de conhecer o autor daqueles versos tão belos e tão saturados de ternura!

Alguém conhecia o segredo.

Mas os segredos deixam de ser segredos quando revelados. E nada se sobrepõe ao prazer imenso de o gozar a sós, como fará Deus amiúde lá no Céu, ou onde quer que Ele viva. Além disso, quem pode prever as consequências de uma intromissão (bastante espúria, aliás) na narrativa de terceiros?

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O fazedor de haikus

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Fotografia de Robson Hatsukami Morgan

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Esta é uma autoestrada que Ole Henriksen conhece bem.

Sobe e desce a E6 muitas vezes ao volante do seu Scania V8, um camião poderoso de 770 cavalos, atravessando (como agora) túneis pacientes em paisagens montanhosas, pontes ultramodernas sobre abismos azuis, florestas a perder de vista, cobertas boa parte do ano pela neve e por espinhos de gelo, mas também aldeias pitorescas cheias de cor, entre cidades grandes, frias e incaracterísticas, atravessando, enfim, a sua própria memória, repleta de vislumbres e de ecos e de vozes.

Viajar viaja-se de muitas maneiras sabemo-lo todos. Ole sabe-o mais do que nós.

De Trondheim a Oslo são seis horas e meia bem contadas, quinhentos quilómetros para sul, a que se seguirão outros quinhentos em sentido oposto, sem distrações, para transportar tudo aquilo que a espécie humana consegue decompor, embalar, vender e possuir dentro de quatro paredes.

Hoje, por exemplo, é responsável por uma carga de cerveja, toneladas e toneladas dela diretamente para um armazém da capital, que a fará distribuir (não tarda) pelos inumeráveis bares e restaurantes da Grünerløkka.

Ole nem sempre se desloca sozinho. O irmão Bjoern acompanha-o nos trajetos internacionais e não raro revezam-se na condução. Antes dele quem o fazia era Frigga, a mulher com quem casou e de quem se divorciou há não muitos anos.

Frigga era, sem dúvida a companheira ideal. Sabia gerir como ninguém o tempo de falar e o tempo de calar. Erguia no meio do nada uma narrativa, uma lenda, uma memória, uma frase pertinente. E possuía, além de olhos maravilhosamente bem feitos (cor de âmbar), uma voz sedosa, sem crispação e sem veneno. Nunca lhe escutou um ralho, um protesto, uma altercação. Frigga foi a melhor das mulheres e ele, digamo-lo nós sem rodeios, o pior dos maridos. E, por esse motivo, continua a amá-la e a aceitar o castigo penosíssimo de a não ter junto a si.

Bjoern, por seu lado, é um borrachão. Nas vésperas das grandes viagens, é necessário repetir-lhe regras, ameaçá-lo, fazê-lo dormir, vistoriar-lhe os bolsos do anoraque.

Portanto, a solidão não é muito má. A solidão enche-nos de pensamentos e os pensamentos, pese às tantas doerem demasiado, são o nosso modo de sobreviver. Acresce que no interior e no alto de um camião se pode captar, como pelo vidro de um ecrã, imagens que dificilmente se perdem nas anteparas da cabeça. Entre as imagens que aprendeu a valorizar, Ole aprecia o recorte acidentado dos lagos e dos fiordes, as linhas intermináveis de abetos, o dorso descarnado das cordilheiras do leste, especialmente no inverno, quando acima do manto espesso que nelas se acumula bruxuleiam as chamas verdes das auroras boreais.

Aprendeu a ver e aprendeu a escutar. Todas estas e muitas outras coisas em que não reparava vieram com Frigga, com a sua mania de as enfiar em versos.

Certa vez, perto de Esbjerg, na Dinamarca, brindou-o com esta observação:

– Que magnífica praia, Ole! As gaivotas assim todas poisadas parecem o nevoeiro à beira-mar, não parecem? Que estampa maravilhosa. Olha, estou mesmo a imaginar Hokusai ou Ohara Koson a pintá-la…

Para o motorista, as coisas não tinham de parecer-se com nada. Eram o que eram. Não se lhe afigurava muito sério que se dissessem as coisas como Frigga as dizia, sobretudo se por meio de palavras ritmadas, curtas, nada espontâneas.

Noutra ocasião, numa das encostas do Hardanger, saiu-se com uma ainda melhor:

– Para, para o camião, meu querido. Vamos encher os pulmões com o ar frio, enchê-los com o perfume daquele pomar!

Como podia ele parar o camião? As coisas na vida real passam-se de outro modo. Há compromissos, objetivos, prazos a cumprir. Encher os pulmões com o ar frio? Então, para que raio mantinha o ar condicionado naquela temperatura? Por quem, senão por ela, conservava a cabine do Scania tão esmeradamente cómoda, tão dedicadamente limpa, tão perfeitamente climatizada?

– Sabes do que me lembrei, Ole? De um poema de Kobayashi. É assim:

O brilho do sol.
Na carne das cerejas
um moscardo cai.

É um belo poema, não concordas, Ole? Dele ou de Bashô, já não sei ao certo… Mas é lindo! Não achas, querido?

Antes estas palavras soavam-lhe incompreensíveis. Agora já não. Ole Henriksen pensa que é espantoso ter permanecido tanto tempo na obscuridade.

Frigga amava a pintura, a literatura, a música, sobretudo as do Japão, essa exótica nação que ela queria visitar e ele nem por isso. Frigga sabia imensas coisas da civilização nipónica. Partilhava constantemente histórias de artistas, de guerreiros, de tradições, falava de flores, de árvores, de ilhas abençoadas. Reproduzia anedotas, mostrava-lhe gravuras do Fuji, aludia ao budismo, chegou a comprar e a aprender a dedilhar um shamisen. Oh, o som que saía daquela maldita viola!

Tudo isso o incomodava. Preferia que ela fosse uma pessoa normal, uma mulher mais igual às outras, capaz de proferir insultos, de comer fast-food, de aguentar em terra firme a cabeça sonhadora, capaz de o seduzir com insinuações animalescas, obscenas, escatológicas.

Ole fartou-se. Por culpa da sua estupidez, frequentou casas erradas.

Tudo isso regressa agora. O divórcio abriu devagar fissuras enormes, abriu em si como numa lona rasgões dificilmente reparáveis.

Agora que o sol passa, ele vê. Vê dentro de si moscardos entontecidos, cerejas rebrilhantes, o privilégio da ordem e da harmonia. Agora tudo é diferente. Os horários esvaziam-no, o ruído dos empilhadores irrita-o, a comida das estações de serviço provoca-lhe azia e náuseas. Agora tudo é diferente, embora demasiado tarde.

O primeiro haiku ocorreu-lhe justamente numa dessas estações de serviço, em Odda, no momento em que fumava no sítio exato (uma mesa de madeira, sob os troncos combinados de grandes bordos e plátanos) onde o fazia noutros tempos com a mulher.

Era outubro. A oxidação das árvores não lhe passou despercebida. Vieram-lhe à cabeça e depois à boca, quase involuntariamente, os três versos que reproduzimos:

O outono…
Folhas de ouro e rubi
crepitam no chão.

Espantou-se com o jogo de palavras. Depois de urinar à socapa, como gostava depois dos cigarros, repetiu a pequena composição em voz baixa, de si para si, e decidiu apontá-la num caderninho, apondo no final a data e o lugar.

Pouco tempo depois, registou um novo texto:

Cego inverno.
Triste, a água congela
nos olhos.

Ulvsvåg, 22/12/2014

Nesse precioso bloco de folhas foi registando outros poeminhas, que aprecia cada vez mais, que relê amiúde, que a espaços corrige. Não se julga senhor da técnica, mas anima-o a vontade de observar mais longe e mais fundo a natureza empírica dos elementos e de extrair dessa observação a voz de Frigga, como se em vez da sua fosse a voz dela a que dita os haikus.

Abril.
Renascem bosques sombrios:
a luz atravessa-os.

Brémen (Alemanha), 15/04/2015

Talhão de papoilas.
O vento medroso
brinca com fogo.

Carcassone (França), 10/05/2015

Se ouves o melro,
rejubila.
A tua alma vive.

Cantuária (Inglaterra), 21/06/2015

Pasmo jovem…
Olhos e nariz rendidos
à cizânia.

Essex (Inglaterra), 22/06/2015

A voz das ervas.
Os pássaros erguem-na
depois da chuva.

Dover (Inglaterra), 24/06/2015

Cinzas da luz.
De manhã também em nós
Se acende o riso.

Calais (França), 24/06/2015

Mantém na boca
a beleza da noite.
Vãs as palavras…

Antuérpia (Bélgica), 26/06/2015

Ole passou a registar com igual cuidado as palavras que lhe suscitam maior curiosidade e as que considera úteis para a sua escrita. Usa um velho dicionário escolar, onde sublinha a lápis o vocabulário mais apetecível. Dá por si a misturar termos e a lamentar que algumas palavras tenham mais ou menos sílabas do que as necessárias. Também se ofende bastante com a falta de rigor dos colegas de ofício, que estropiam a todo o instante o norueguês e o contaminam por tudo e por nada com empréstimos de outros idiomas. Ole considera muito criticável a preguiça, a mania, a ignorância dos motoristas profissionais em questões de língua materna.

Quanto à sua escrita, talvez decida publicar estas composições num livro. É algo de que se orgulharia, sim. Se o fizer, há de dedica-lo a Frigga, à sua Frigga, à laia de pedido de perdão.

Tristeza.
O lago volta-nos as costas,
a lua foge.

Mjellum/Mjøsa, 30/06/2015

Pensamentos.
Água podre e estanque
que urge vazar.

Trondheim, 18/08/2015

Prestes a partir,
os últimos pássaros
fecham círculos.

Estocolmo (Suécia), 20/09/2015

Silêncio.
Ao longe chocalham
as pedras da montanha.

Bolzano (Itália), 18/10/2015

Rio e mar drapejam
o mesmo azul.
Pulmões inchados.

La Coruña (Espanha), 20/10/2015

Abre-te na luz
ou no escuro.
Sê nu como um fruto.

Bilbao / San Sebastián (Espanha), 21/10/2015

Madrugada.
A brisa espicaça a luz,
meus olhos ardem

Oslo, 23/10/2015

No regresso a Trondheim existe um lugar bendito onde consegue, infalivelmente, descortinar outras variantes da sua poesia. Fica em Ler, um vilarejo no condado de Trøndelag. Sempre que na E6 se cruza com essa localidadezinha, vêm-lhe ao espírito as palavras meigas de Frigga.

– Sabes que na língua dos portugueses, Ole, o nome desta terra significar ler?

Deu para rir. A língua dos portugueses será bem estranha. Ler é um nome insignificante. Uma terreola a meio de lugares realmente importantes. Depois do divórcio, porém, a placa toponímica com esta palavra passou a constituir uma rememoração dura, os portugueses e a sua língua uma gente mais distante e esquisita, aliás, todas as palavras assim analisadas fora do seu contexto uma treta inconsolável.

Mas agora tudo voltou ao seu poiso. A vilazinha deste município de Melthus (com um nome que em português significa ler) despoleta em si o desejo de escrever novos poemas. As palavras ostentam, verdadeiramente, um poder muito seu de chocar e de nos seduzir. Em Ler Ole escreve. Assinalamos, como prova deste facto, este haiku que leva a data de 3 de janeiro de 2018.

Arte do pouco.
O mestre alumia
versos de ouro.

Não pretendemos fatigar quem nos lê com aquilo que o motorista profissional Ole Henriksen rabiscou e que foi recopiando para cadernos progressivamente maiores e mais luxuosos. A confiança e a vaidade são aspetos que devemos relevar nos poetas, sobretudo nos que em circunstâncias dolorosas fazem parturir os seus versos.

É o caso.

Maio.
Rosas bravas junto ao mar,
rochas castas, húmidas.

Aveiro (Portugal), 19/05/2019

Sangue e alcatrão.
Três cerejas esmagadas,
luta de pardais.

Guarda (Portugal), 20/05/2019

A toutinegra
no parapeito.
Coração de mármore.

Malmö (Suécia), 06/06/2019

Este malmequer.
Em torno do sol, leves,
pétalas voam.

Costa frísia (Países Baixos), 21/06/2019

A borboleta.
sobre o rosto da luz
escrita pura.

Oslo, 06/07/2019

Noite de verão.
O lume das paredes
morde as costas.

Jaén (Espanha), 20/07/2019

Pancadas do sino.
Às vezes o coração
frio bate.

Sevilha (Espanha), 21/07/2019

Deixámos para o fim as derradeiras composições que pudemos ler, à pressa, à puridade, num acesso de curiosidade, numa das certamente poucas ocasiões em que as suas mãos se terão distraído e negligenciado o segredo num aparcamento, em Oppdal.

Valha-nos a amizade de longa data que sustentamos com Ole Henrikson e as nossas (incontroversas) melhores intenções literárias. Contamos, a despeito disso, com a melhor discrição dos nossos leitores.

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