Em março o vento subitamente mudou. Sobre a ilha pôs-se a alastrar uma cortina de pó tão espessa que por ela se podia olhar diretamente o sol. O ar tornou-se insuportavelmente seco e sujo, cansando e ferindo o pouco verde dos catos e dos arbustos, entre os quais se via o sulco e às vezes o corpo dos lagartos negros que aí habitam.
Lanzarote ficou coberta por essa neblina de africanas areias durante um mês. Os naturais não sabiam a que santo ou a que deus suplicar, ou com que demónio negociar, o fim da provação. Não faltava quem predissesse que todos acabariam sepultados, vivos ou mortos, debaixo do tenebroso e prolongado calima que não dava mostras de terminar.
Um eremita de nome Hilário, já no fim da sua vida, disse:
– Abençoada é esta terra, pois nem aqui o mal tenteia as suas raízes!
Havia nas palavras de Hilário orgulho e amargura. Cinquenta anos antes havia ele plantado uma figueira e nela não colhera um único fruto. Velho, embrulhado em andrajos, feito de pele e osso, insistiu:
– O diabo tem medo desta ilha. Aqui os vulcões limpam com fogo e lava as avarentas coisas dos homens, as areias lavam os olhos cobiçosos, o sal extermina o que possa sobrar dos nossos pecados.
De novo se percebia júbilo e tristeza na sua fala. Os que os escutavam, porém, asfixiados pela nuvem vinda do deserto, não sabiam escolher se tamanha era a maldição de se ser puro, se enorme a fortuna de se ser desgraçado.
É uma tradição: todos os anos o velho lavrador empilha no meio de um campo lenha da poda, cascas de eucalipto, pequenos toros, ergue uma estaca de mimosa e nele prende um boneco feito de colmo e palha (com umas pantalonas de ganga e uma esfarrapada camisa aos quadrados, um boné ou um barrete enfiado na cabeça obclávea), a que dá o nome de Januário.
À noite a miudagem traz consigo a rapaziada e esta atrai as raparigas em idade de casar. Com estas vêm as mães, com as mães os pais, com todos os nostálgicos avós, para quem as tradições são sagradas e sem mácula (só os que as não têm trazem as imprestáveis tradições de fora) e com a multidão vem o vinho. Faz-se uma roda, canta-se, ri-se, chora-se em tom jocoso o boneco que às tantas fica em chamas. É a morte do inverno, o convite a que a primavera entre. O braseiro levanta-se tão alto e é tanta a algazarra que de ano para ano se alarga o círculo e o ruído alastra. Todos se divertem à custa do carnavalesco Januário, do Pai das Orelheiras, do Entrudo bisonho, em breve reduzido a cinzas, enquanto em volta a turba gira e canta.
O lavrador sente, então, um aperto. Em silêncio, compreende essa grande lei, essa necessidade de a natureza se limpar do velho para que o novo tome o seu lugar. No auge da folia, ninguém repara no como se avermelham os olhos cansados, e se o notam é do fumo, das brasas, do vinho. É fácil confundir!
Entre o alfarrabista e o escritor cresceu com o tempo a amizade: um vende os livros que procura e coleciona, o outro coleciona os livros que compra e lê, um pela necessidade de viver, o outro pela necessidade de existir, ambos por amor aos escritos raros de outrora, de cuja sabedoria se alimentam uma boa pena e uma loja de alfarrábios.
Por exemplo, este Elucidário do frade Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, espécie de antigo dicionário de que o escritor gostaria de servir-se para ficcionar um tempo anterior ao seu, começando e concluindo-o com as palavras que deveriam sair das mãos, da boca e do pensamento das suas personagens.
O alfarrabista soube da existência dos dois volumes, editio princeps, em excelente estado de conservação em Bojnice, uma cidadezinha a quatro horas de Bratislava (espantoso o caminho que as palavras tomam) e num lanço medido, com a cautela que a experiência e a devoção ensinam, arrematou-os. Pede agora uma fortuna por eles e a obra merece-a, tanta a qualidade que nela pôs o franciscano, tão longe a foi resgatar, tamanha a sorte de a ter encontrado, tanto o empenho e meticulosidade tidos no leilão, tão surpreendente o preservado aspeto das fragílimas páginas que, de luvas calçadas, folheia.
O escritor conhece bem estes degraus, este cheiro (de papel húmido, tabaco e óleos de lubrificar as muitas maquinetas que também aqui se exibem e às vezes transacionam), esta sensação de alegria pueril misturada com tristeza nostálgica, como antecipando nos seus livros futuros o destino dos velhos, este infindável cemitério de tomos, tombados uns (como manda a etimologia), outros de pé, às cavalitas uns dos outros, postergados, dispostos por toda a parte em pilhas bárbaras, amarelando, expostos à indignidade de uma morte certa e lenta. Enfim, salvar deste inferno todos os livros que o habitam é impossível, um ou outro isso sim, é como tirar a sombra de Virgílio do marasmo secular e fazê-la (dando-lhe uma segunda vida) subir a uma floresta para chamar um poeta tresmalhado e conduzi-lo à presença da mulher que amou, não é muito mas sempre é alguma coisa, e estes dois volumes são um luxo, o escritor delicia-se com eles, já esqueceu a mágoa de há pouco, já lá vai a pungência dos títulos assim malbaratados, já a sua atenção é toda (já que de títulos falamos) para esse que na oficina de Simão Thaddeo Ferreira se fez duplamente imprimir no ano de 1798 e que por inteiro se lê assim ELUCIDARIO DAS PALAVRAS, TERMOS, E FRASES, QUE EM PORTUGAL, ANTIGUAMENTE SE USÁRÃO, E QUE HOJE REGULARMENTE SE IGNORÃO: OBRA INDISPENSAVEL PARA ENTENDER SEM ERRO OS DOCUMENTOS MAIS RAROS, E PRECIOSOS, QUE ENTRE NÓS SE CONSERVÃO: PUBLICADO EM BENEFICIO DA LITTERATURA PORTUGUEZA, E DEDICADO AO PRINCIPE N. SENHOR.
De tanto o desejar possuir um, de muito o pretender vender o outro, escritor e alfarrabista apertam as mãos e dão um abraço. É incrível a semelhança desta cena com a que faria uma criança ao receber na manhã de Natal um divertimento para dele gouvir e com ele anpróóm folgar (já do precioso cartapácio nos servimos) e daí essa mesura do vendedor, esse gracir do comprador, este bitafe de amizade sã que assim sela um negócio mais, um negócio como os outros, talvez um tudo ou nada mais ingenioso, o alfarrabista diz o preço, o outro assina o cheque (raro é também este proceder, que o uso é um cultivador de letras ser pobre e muito regatear) e logo logo vêm os dois tomos numa sacola, muito protegidos (como um par de recém-nascidos), escadas abaixo, inequívoco o facto de que doravante farão a delícia de quem bem ou mal escreverá com eles sobre o que sabe e sobre o que não sabe, até pode ser que saia daqui uma obra-prima e que a não condenem futuramente a coisa pior do que esta arrecadação de papel, inequívoco também a circunstância de terem os dois volumes redigidos pelo menor observante da real província da Conceição (franciscano, já se dissera) custado o equivalente a muitos salários mínimos neste país de exploradores e explorados, e pronto, ficaram feliz o escritor, satisfeito o alfarrabista, contentíssimo o autor destas palavras, todos cansados, é hora de ir dormir, não sem antes um ir verificar se o cheque está bem assinado (como não, que escrúpulo tão desapropriado!), outro reabrir esta e a outra partes do Elucidário (que excitação essa a de remexer em tantas palavras deixadas de usar-se na nossa língua, que pena!), outro ainda verificar se nada falta e tudo condiz com a ideia original (mas qual ideia, se sozinho se escreveu o conto?), e todos a gozar um bocadinho mais essa sensação de conquista, que amanhã é outro dia e tudo terá passado já, já as emoções da véspera serão cinzas, já parecerá certíssimo o ditame de que nada de novo há debaixo do sol e que tudo é vaidade e vento que passa.
Numa aldeia do Congo, um pescador sai todas as manhãs para o mar sobraçando, com as redes, um livro de poemas. Regressa a casa com um par de peixes e o ar de extenuado de quem presenciou um prodígio. Os vizinhos admiram-se com o seu lucro nunca mais do que humilde e com a sua expressão cansada. Se lhe perguntam porque não procura servir-se de outras redes ou de mergulhá-las noutras águas, o pescador responde invariavelmente que «A perfeição é a arte da espera.»
Um homem amava perdidamente uma mulher, mesmo não sendo correspondido, apesar de saber que jamais ela o amaria, ainda que admitisse que o amor é muitas vezes um veneno capaz de consumir-nos. Amou-a anos a fio até começar a esquecer-se de amar, porque tudo na vida esquece e cai, como caem (desfeitas em pó) as flores muito belas que nos ofuscam.
Um dia, o homem voltou a ver a mulher. Estava tão envelhecida e distante do rosto com que sonhara interminavelmente nas suas noites da juventude que não pôde deixar de sentir-se fascinado: para se libertar do sofrimento, ele antigamente punha-se a imaginá-la velha e feia. Agora, por piedade, esforçava por recordar-se da sua beleza aos vinte anos.
Um jovem humorista romeno tentou sem sucesso, ao longo da noite, divertir uma plateia na capital do seu país. Usou algumas das suas melhores armas, como a sátira inteligente, o burlesco absurdo ou a paródia. Em vão procurou ridicularizar-se a si mesmo, porque a assistência se não manifestava, o que o fulminou.
Decidiu procurar então a ajuda de um bar, onde expôs o sucedido. Um professor de literatura confessou a mesma estupefação. Dias antes lera para a sua turma do primeiro ano cenas hilariantes do Anfitrião, mas ninguém se rira. Como era possível?
Os dois homens saíram juntos. Já na rua viram um velho desdentado a girar a manivela de um realejo. Tinha um chapéu de coco e fizera prender à volta do pescoço uma grande túlipa amarela, iguais às que tinha num cesto à sua frente, porque era um vendedor-pedinte. Balançava-lhe no nariz uma argola dourada e nas pernas uns corsários listrados, demasiados grandes e demasiados largos, sobre os quais vestia uma camisa com enormes colarinhos azuis. Nunca o tinham visto, pelo que a visão do exótico e anacrónico homem, misturada com a cançoneta circense que saía do mecanismo, produziu neles uma gargalhada.
O velho, tomado pela indignação, interrompeu-se para se pôr a insultá-los. Os transeuntes, repletos de indignação também, apoiavam-no. As imprecações pareceram-lhes tão ébrias e tão roufenhas que o riso cresceu. Humorista e professor punham a mão na barriga e limpavam as lágrimas, quando a voz do velho os fez voltar. Foram então agraciados com um penico cheio de urina.
Houve aplausos dos circunstantes. Mas, entre eles, nem um sorriso.
O outro, muito envelhecido, os olhos apequenados pela miopia, a tez escavadíssima entre rugas, levantou a custo o rosto, como quem desperta a custo de um sonho, e redarguiu:
– Nossa irmã há muito que está morta!
Fora, no jardinzinho, flocos de neve queimavam o corpo embalsamado dos agapantos. A brisa, não menos álgida que nos dias anteriores, varria o claustro, penetrava nas frestas, impunha na sacristia e em torno da madeira lavrada um ar desolador, inabitável, cruel.
Manuel, com as mãos uma sobre a outra, arrastava-se pelo deambulatório, às voltas. Observava-o de longe o dominicano com quem havia instantes trocara a dúzia de palavras. Madalena de Vilhena morrera. Parecia impossível aquele nome, tão vago e traiçoeiro agora como a memória que se tem de um sonho. Manuel pisava com as cambadas sandálias nomes e números gravados em lajes, ecos de gente que viveu, que existiu, que possuiu certezas, que alimentou cobiças, e crenças, que decerto como ele se penhorou a um amor terreno, que como ele sofreu o piso insuportável do silêncio, que lentamente como ele definhou até confundir verdades e mentiras, realidade e fantasia…
Tantas mortes: Maria, Madalena, ele próprio. Madalena morrera… Que significava morrer, se morta estava ela já tanto havia tempo, como morto e morrendo andava ele, sem que a misericórdia de Deus tornasse mais breve, mais abrupta, mais feliz a pedra do túmulo.
Somente o outro, que não quisera morrer, vivia ainda. Grande prodígio o sustinha nesta vida.
Manuel colocou sobre uma peanha o seu livro de orações. Depois abriu uma das portas ogivais do transepto. Precisava de respirar esse ar frio que tudo aquieta. No íntimo da sua alma, impossíveis como brasas de uma noite nunca apagada, as emoções regressavam.
Aos oitenta e cinco anos. Quem poderia imaginá-lo?
Assim que o recontou, humedecendo bem os dedos para que as notas corressem mais facilmente entre o indicador e o polegar, a credora fez com elas um rolo, envolveu-as com um elástico e guardou-as no antiquíssimo baú enferrujado, com motivos orientais. Era aí que acumulava as poupanças, antes de as aprisionar no banco ou de as trocar por peças de ouro. Quando viesse a noite, bem embrulhado num velho xaile, tornaria o baú ao esconso onde deveria permanecer intocado, até que a credora o abrisse e desse ao seu conteúdo o melhor caminho.
Ela estava satisfeita. Uma dívida difícil resgatada é sempre um motivo para acender uma vela. Encheu a cafeteirazinha com água, pô-la nas brasas e espreitou as imagens esverdeadas que dançavam no vidro do anacrónico aparelho de televisão.
A tarde viera mais fria. Novembro costuma arrefecer os nossos contentamentos. Um bom café e um pouco de geleia no pão consolariam a esta hora o autor destas palavras.
Bateram à porta. A credora sentiu as pancadas como uma contrariedade. Calçou os velhos sapatos de homem, cuja pele cortara para lhe dar aspeto de chinelos, passou a mão pelas cãs e foi ver quem era.
Houve um murmúrio, altear de vozes, uma altercação.
– Só me faltava essa. Vai mas é trabalhar, seu vadio!
A credora descalçou os chinelões improvisados, colocou os pés na pedra da lareira e esperou. Daí a tempo quase nenhum, com a estremunhada expressão de quem abreviara criminosamente a sesta, o marido entrou na cozinha. Quis saber:
– Quem era?
– Um pantomineiro qualquer, a pedir para comer…
– Deste-lhe alguma coisa?
– Dava-lhe com o cabo do engaço se o tivesse à mão!
O marido esboçou o gesto de quem acabava de ter um arrepio. Saiu. A credora tinha os olhos de novo no ecrã esverdeado. Na novela desenhava-se uma cena importante. Um dos doutores, um macaco, descompunha a pobre secretária negligente, que lhe interrompera o avanço amoroso com a nova diretora dos recursos humanos.
O marido regressou. Trazia nos braços um curto feixe de lenha. Desviou a cafeteirazinha e deitou sobre as brasas três pequenas achas, formando com elas um tripé. Depois soprou sobre os carvões incandescentes e quando destes deflagrou uma labaredazinha recolocou a minúscula cafeteira na área do calor.
Novembro anunciava o inverno. A chama sabia bem. O marido colocou as mãos em concha sobre o lume e esfregou-as.
A cena da descompostura acabara. Agora na televisão esverdeada (por causa do cinescópio quase fundido) ouvia-se uma conversa anódina entre padre e pecadora. Depois principiou o quarto de hora dos anúncios.
A credora olhou a lareira e viu a chama generosa lambendo a lenha. Levou instintivamente ambas as mãos à cabeça, num movimento de fúria e viva indignação.
– O que estás tu a fazer, meu grande macaco? Ai, meu Deus, meu Deus! Tu julgas que este chamiço veio de graça para casa?
A credora pôs-se de cócoras e tentou puxar as ripas para impedir que se consumissem tão depressa. Mas o fogo, áscua gulosa, queimou-lhe os dedos. A credora silvou, repleta de cólera.
– Ouve-me bem, meu pantomineiro desgraçado: seja a última vez, ouviste? Seja a última vez que pões lenha no lume sem a minha autorização. Ouviste-me? Ouviste-me bem?
A tremer, a credora destapou a cafeteirazinha e atirou-lhe uma colher de má chicória para tingir a água. Quem pensava ele que era. Desperdiçar lenha àquela hora da tarde, quando a casa ainda estava tão morninha!
Ele não abriu a boca. Viu o baú oxidado em cima da cristaleira. Precisavam de enchê-lo de novo. Ela tinha razão. No poupar estava o ganho. Sentiu vergonha. Não sabia o motivo exato, mas, sim, sentia uma grande vergonha.
Depois de bater o portão com estrondo, fá-lo todos os dias à mesma hora, o homúnculo põe-se a abrir e a fechar a portinhola da caixa do correio (mesmo ao fim de semana, especialmente ao domingo); a seguir demora-se a escolher as melhores tabuinhas para cortar com a serra elétrica.
Dá-lhe um grande prazer multiplicar o ruído, por causa dos vizinhos. Por via dele, usa as máquinas tanto tempo quanto possível, repetindo o som do corte, a que se segue o zumbido da lixadeira, o som da plaina e, finalmente, o som do compressor para a limpeza do cimento. Trabalha num barracão improvisado, que cercou de malhasol e de uma serapilheira verde.
Adora trabalhar no patiozinho, com o seu barrete ridículo enfiado na cabeça e vir de quando em quando espiar a rua, porque se persuadiu de que o espiam.
As tabuinhas empilha-as num bidão de plástico. Ninguém lhe oferece grande coisa por elas, por isso também as não vende. Ocupa-se e pronto. Detesta os vizinhos e os vizinhos detestam-no. Mas pronto, é um artista!
Quando a mulher, farta dos seus ofícios facinorosos, solta um grito de ordem, o homúnculo para tudo, recolhe as tabuinhas e, quase choroso, vai ver o que se passa com ela.
– Desliga-me essa merda, seu maniáco!
Ele desliga. Deixa tudo limpinho e vazio. Recolhe a serapilheira verde, enrola a malhasol, guarda as máquinas, empurra o bidão e o compressor para o interior mofento da arrecadação, diz «Já vai, já vai», satisfeito com a sua quota-parte de ódio, feliz como um cachorrinho briguento, feio e inofensivo.
– Anda para dentro, seu maniáco!
Então, o homúnculo vai. Volta a abrir e a fechar com estrondo o portão da vivendazinha. Volta a abrir e a fechar a portinhola da caixa do correio. Está tão alegre consigo mesmo que, por instantes, se esquece de que na sua vida nada cabe de belo, sensível ou dignificante.
A mulher assoma a uma janela, exibindo um par de olhos coléricos, como quem faz um derradeiro aviso.
O homúnculo estuga o passo, sobe o curto lanço de escadas e sem um pio mais encafua-se debaixo da asa protetora. Silêncio total: nem pensar em falar alto, encarar ou desafiar a autoridade da casa! Só pensa nas suas tabuinhas empilhadas, polidas, envernizadas. É um artista. Ninguém oferece um tostão por elas ou por si. Mas pronto. A história da humanidade coleciona injustiças destas. O homúnculo já nem se importa.
«Um escritor não é a soma dos seus livros, é a fuga ao livresco. Um escritor não escreve. Inventa.»
Pedro-Daniel Névio, Escoriações
A casa do escritor ficava no subúrbio norte, numa área sossegada, a seguir a campos, entre curtos eucaliptais. Lembro-me do cheiro a limpo, do perfume da alfazema, da frescura da mobília, do odor dos sofás de cabedal. Lembro-me da porta aberta do escritório, das estantes escorrendo das paredes, escondendo-as, de um ou outro quadro de Kandinsky no intervalo dos livros, do adágio de Mozart, do violino de Itzhak Perlman, da meia sombra e da meia luz tapando o vaso das orquídeas e alumiando o formidável persa azul aos pés, no tapete, do ar muito quieto do seu corpo quando lhe anunciaram a minha visita.
O escritor concedeu-me uma entrevista, autografou-me sete dos seus livros, ofereceu-me um volume de poesia em edição limitada, corrigiu nele um verso terrível, teimoso, com caneta de feltro, abraçou-me no fim.
«Cuidado com a mediocridade. Odeie-a.»
Era quase noite quando regressei à cidade, ao centro, às banais lentejoulas dos meus comparsas no círculo intelectual. Na madrugada seguinte vim para a varanda queimar papéis. Fi-lo sem arrependimento. Voltaria a fazê-lo na minha vida. Repeti-me a repreensão de Horácio, «Inutilia truncat», que hoje é a minha divisa.
O escritor, agora que o leio dobradamente, póstumo, sem peias, é um génio. Não engaja frases ou versos, fá-los encontrar-se com leveza e com verdade. Não lhes disfarça o vazio com efeitos de pirotecnia, enche-os com amor. Dele escasso se diz, nada se escreve, pouquissimamente se indagou nesta década seguinte à sua morte.
Penso muitas vezes nesse encontro, nessa tarde de outubro, nessa literária mediocridade absurda que ao redor de nós se levanta como um circo, como um cerco, repleta de aplausos lorpas, provincianos, reles, serôdios, babujados, amacacados, odiosos.
Tanta razão, escritor!
Vêm dizer-me «Fulano publicou», «Sicrana vai publicar» e é um tédio. Bocejo por vislumbre, lendo já de roldão, à laia de adivinho, tantas páginas repletas de mais do mesmo, da mesma retórica (retoricazinha, vá lá) balofa, oca, medíocre, que enche cada vez mais escaparates de livrarias e estantes de bibliotecas. Bocejo de pensar que aí vem mais do mesmo, da mesma merda ociosa que pulula nos cantinhos de jornal, com estrelas, panegíricos, recomendações de leitura…
Horrível.
Por cá a malta distrai-se, distrai, facínora. Distraiu, distraiu-se sempre. Não há que fazer. Prefere cantar teias de aranha a ver paisagens, embora espreite pela mesma janela. É uma questão de «escala do olhar» como escreveu Fiama. E em terra de cegos, já se sabe…
Hoje acordei com saudades dos dias em que amava a literatura como uma religião. Sim, escritor, odeio a mediocridade. Deve ser isso o que terei de ensinar a quem me lê. Talvez seja uma questão de apostolado. Talvez tenha de pregar no deserto ou aos peixes. Sublinhei a lápis grosso «Um escritor não é a soma dos seus livros, é a fuga ao livresco. Um escritor não escreve. Inventa.» E é exatamente assim.