O túmulo de Vulca

Carol Leigh
Fotografia de Carol Leigh

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Visto do alto, é um telhado de quatro águas caindo para um pátio interior (o implúvio), onde neste preciso momento se encontra Vulca, a observar fascinado um grande pássaro negro a não mais do que dez passos de distância.

É o primeiro dos oito dias da semana, dia de mercado, e Vulca aguarda visitas em casa. Como este, assistiu já a mais de meia centena de meses inaugurais do calendário etrusco, contado das neves em diante, das neves que Voltumna faz precipitar amiúde sobre Veios, cobrindo-a de uma branquidão tão bela e tão imaculada que o artista nunca deixa de se comover. Os deuses conhecem os segredos do mundo e os homens podem também intuí-los, em parte pelo menos, se não lhes faltarem a inteligência e a atenção. Tudo está à vista de todos: a natureza, mesmo as dos mortos, pode revelar-se, desde que a saibamos sentir, compreender e amar profundamente.

Vulca está intrigado.

Um pouco depois da primeira hora do dia, quando o sol atinge o zénite, vê uma revoada de corvos a descrever, em completo silêncio, círculos perfeitos no horizonte. A seguir, um deles separa-se do grupo e vem poisar na mão direita da grande estátua de terracota que virão de Vetulónia buscar. Trata-se de uma imagem em tamanho natural de Apulo, encomenda de que se ocupou nos últimos meses e onde empregou todo o seu talento indiscutível: o deus caminha em pose majestática, coberto por finas vestes que enrugam com o movimento; um pilar decorado com palmetas e um serpentar de círculos opostos e concêntricos (como esses simétricos) ergue-se do pedestal em direção ao corpo, travando-lhe o passo; longos cabelos frisados e entrançados (à maneira oriental) caem-lhe pelas costas e sobre os ombros, intersecionando-se com as pregas do manto. Na mão esquerda segura uma lira (prova de que na Etrúria se continuam os mitos gregos) e agora na mão oposta (que deveria mostrar um dedo altivo, indicador da estrada solar e das artes, e também do destino) o funéreo animal.

Vulca está ao corrente da arte dos auspícios. Sabe que o adejar, o crocitar e o olhar dos pássaros é um modo de as divindades nos ditarem mensagens, ensinamentos ou profecias, porventura inalcançáveis no seu todo. Quando a mulher, Athínia, abre uma das janelas do piso superior, a ave assusta-se, bate as asas e foge em direção ao poente. Presságio infausto, indício de que algo doloroso vai encontrar em breve na jornada da vida.

Dos dedos e dos fornos deste artesão saíram vasos e inumeráveis estatuetas, urnas cinerárias e relevos, em bronze ou barro, muitos deles representando Vanth, o demónio da morte, Carunos sovando as almas acabadas de embarcar para o reino de Aiter e de Phersipnei (outros chamar-lhes-ão Hades e Perséfone), mas jamais o fim lhe pareceu tão seu, tão cruamente exposto, ou tão certeiramente revelado como agora. Tem a certeza de que vai morrer, não um dia, mas proximamente, talvez amanhã ou daí a uma semana, quem sabe se na próxima lunação ou no ano que virá.

Tínia, divindade dos céus, ou Fébruo e Leinth, senhores da morte, ou o próprio Apulo, ou algum deus oculto, ou todos juntos, enviaram-lhe esse recado: um corvo é um sopro impossível de ignorar, ainda que sem o habitual grasnar sombrio, sobretudo se a sua pupila dilatada nos mira com a intensidade de uma pua: deve, portanto, preparar-se.

Tardam a chegar de Vetulónia.

Vulca lança mão às coisas de que sempre se serviu para trabalhar. Não pode quantificar o tempo que lhe resta, nem quer esbanjá-lo. Um pensamento acaba de o acometer: seria a sua ou a morte de Athínia a que viera anunciar o agoirento animal?

Os olhos enchem-se-lhe de lágrimas. Mais insuportável do que morrer é sobreviver a uma catástrofe, e nenhuma maior do que a de perder alguém que muito se ama.

O firmamento empalideceu.

Uma cortina álgida cresce sobre os céus da cidade, sobre os telhados de Veios, sobre a cabeça encanecida deste homem que dirá de si para si que o calendário pessoal principia com o dia inaugural de qualquer facto violento e insuportável. Pode-se começar a viver ou a morrer nesse dia, ou ambas as coisas.

Vulca desenha numa tabuinha. É um sarcófago.

Um dia, saído da terra (como Tages, a criança divina), os homens passarão a polpa dos dedos e o olhar estupefacto por este túmulo. Hão de dizer que em mil anos de história deste estranho povo da Itália nenhum outro tesouro se lhe compara. Sobre o tampo, à maneira de outros tantos túmulos etruscos, abraçam-se as figuras de Vulca e de Athínia. No meio de ambos, sobre um curto ramo de loureiro, um corvo desfere sobre nós o olhar.

No interior das suas pupilas, algo nos prende. O quê, ninguém o diz.

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O fabricante de violinos

Israel Fichman_repairman
Fotografia de Israel Fichman

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para a Céu

Ruggero Montefforti foi batizado no dia 22 de novembro de 1925, com apenas três dias de idade, na pequena igreja medieval de Santa Cecília, em Chizzola, localidade alpina pertencente à comuna de Ala, na região de Trentino-Alto Ádige. A sua morte prematura era um dado adquirido no seio familiar, pelo que a devoção à santa mártir de Roma, padroeira da música sacra, prosperou.

No princípio da adolescência, Montefforti trocou Ala por Cremona, para ingressar na oficina de um tio materno, Gianluca d’ Oglio, reputado luthier, de quem aprendeu quase tudo o que sabe em matéria de fabrico de instrumentos de cordas, escolha de madeiras, perícia no desenho e no corte, firmeza no desbaste e no polimento, domínio de soluções e vernizes, tempos e técnicas de secagem, apuro auditivo.

Casou no final da Grande Guerra com Stefania Pasquarelli, três anos mais nova, de quem teve catorze filhos, todos natimortos. Enviuvou aos quarenta e dois, justamente aquando do último parto da mulher.

Quase centenário, mantinha o porte cavalheiresco. Todos os dias de manhã passeava pelas margens do rio Pó, impecavelmente trajado de fato, colete e gravata. Encontrava-se com os amigos no Bar Ai Portici, onde lhe serviam um café acabado de fazer e o seu torrone de amêndoa, nozes e avelãs. Perdeu a conta aos violinos, violoncelos, baixos, violas de gamba, violões, tiorbas, guitarras, alaúdes, harpas, liras, até balalaicas, cítaras e pianos em que trabalhou, toda uma floresta cantante, que intérpretes famosos, como Jordi Savall, Anne-Sophie Mutter e Christina Pluhar usam, guardam e têm entre os seus bens mais preciosos.

Na manhã do seu octogésimo quarto aniversário, o senhor Montefforti sentiu uma espécie de chamamento. Dias depois, na companhia de um sobrinho-bisneto, viajou até à terra natal. Visitou os lugarejos que a memória lhe devolvia ainda nítidos. Depois seguiu viagem para o Vale de Fiemme, em direção à floresta de Paneveggio. Aí, no coração do Trentino, sentiu como na infância o frio das Dolomitas, o rosto fustigado pelo vento gélido, os pulmões abertos pela corrente sem mácula de milhões de espruces ondulando. Veio por eles, pela madeira prodigiosa destes abetos vermelhos, que desde Stradivari enche as bancadas de todos os artesãos de Cremona.

Ruggero Montefforti soube sempre que a escolha das árvores deve ser meticulosa. As melhores têm delicados anéis concêntricos, finas fibras elásticas, pequenos canais linfáticos ressoantes. Devem ser cortadas nos meses que antecedem o solstício de inverno, evitando a abundância de seiva. «Só a mais perfeita das árvores pode oferecer ao liutaio mais experimentado o instrumento que há de servir para glória e génio do maior dos artistas» reza o credo da guilda a que pertencia.

Durante anos, sem se apressar, o velho Montefforti quartejou os troncos de abeto e de bordo trazidos do norte, avaliou-lhes com inusitado escrúpulo a humidade e a porosidade (acariciava as pequenas tábuas saídas do corte, levava-as ao nariz, encostava-as ao ouvido, enquanto se punha indagativamente a tamborilar nelas). Depois, com gestos calculados e com a ajuda de um compasso fez curvar e contracurvar a ponta certeira do lápis sobre cartão. Farto de imitar Giuseppe Fiorini, Leandro Bisiach, Annibale Fagnola, Ansaldo Poggi, Montefforti esmerava-se na criação de um novo molde, original, ousado, único. Este exercício levou-lhe semanas. A seguir, apertadas as tábuas nos pequenos tornos, serviu-se de um velhíssimo serrote de cabo, usou tupias e fresas, fez deslizar sobre a superfície rugosa plainas e goivas, aplacou arestas e veios escuros com grosas e lixas, tingiu a alvura lenhosa com trinchas e pincéis. Quando aplicou à madeira uma mistura de claras de ovo, mel e goma arábica (de molde a suturar os orifícios mais minúsculos), já alguns dos seus amigos diletos lhe anteviam o fim, tal era o seu definhamento.

Em que gastava ele o tempo?

Na construção de um violino. Não de um violino, mas do violino, do derradeiro, do mais primoroso, da sua obra-prima, de um legado por excelência.

Com dedos trementes, Ruggero Montefforti ia conferindo uma e outra e outra noites a maciez do tampo, a robustez do braço, a firmeza do cavalete, a acuidade do afinador e da cravelha, a respiração do arco, o equilíbrio e harmonia das cordas. Comovia-o profundamente a sensação de que naquele corpo repousava em simultâneo uma grande angústia e uma grande paz, um movimento de irreprimível sensualidade e um apelo à mais pura das castidades. Era um violino belo, muito belo, maravilhoso. Com dentes trementes Montefforti pôs-se a tangê-lo: do fundo da madeira transformada (tornada música sublime), repercutiu todo o sentido da sua vida longeva. Sentiu saradas as mágoas longínquas, a dor da vasta descendência que a natureza e o destino lhe sonegaram, a tristeza e a saudade da vida desvivida. Se de outro modo não podia deixar quem por si falasse, deixava um violino que por si era uma forma de falar. Chamou-lhe «Rinascita».

No primeiro dia de janeiro, sobraçando um estojo, dirigiu-se à Piazza del Comune, onde confraternizou com os amigos. Depois encaminhou-se sozinho para a catedral. Aí, diante da alta torre que assinala o poder de Cremona, fez ressoar a majestade da sua criação. Olhos emudecidos puderam contemplar e ouvir a veemência com que Ruggero Montefforti agradecia a todos, a Deus, a Santa Cecília, a Stefania, a Cremona, à sua terra natal, aos amigos e inimigos, tudo quanto foi. Era, de facto, um renascimento.

Pediu que entregassem «o seu último filho» na Piazza Gugliemo Marconi, no museu onde muitos outros dos seus trabalhos repousavam já como referências absolutas da lutherie. Tinha 94 anos. Morreu a tempo de evitar a grande peste dos nossos dias. Dificilmente se poderia imaginar uma mise en scène mais soberba.

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Prodígio de Natal

Fotografia de Leonel de Castro

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No alto de uma colina, fora do perímetro da vila, escorraçadas pelas muralhas pedregosas do grande castelo mandado erguer por Fernando, rei de Leão, restam de pé – ainda que votadas ao abandjono dos homens (sem teto, portas, vidros ou vitrais, sem espécie alguma de madeiras, soalho, mobílias, figuras de santos, anjos ou pombas sacramentadas, sem dignidade eclesiástica ou profana) – as paredes vazias, românicas, da igreja de São João Extramuros.

São um escombro.

No outono, as neblinas passam o umbral e o pórtico escancarado, sem mirar a arquivolta, perpassam nos interstícios de granito, revoluteiam no interior frio e silencioso, saem por onde outrora existiram um caixotim, um travejamento sólido de pinheiro ou de carvalho, onde telhas poisavam, apertando-se umas sobre as outras; defenestram-se depois as neblinas pelo olho aberto das frestas nuas e se alguém ali contempla o espetáculo daquela solidão, vê-las-á errar novamente pelos ermos da colina, perguntando «Onde está a gente deste lugar?», «Como permitiram tão descuidada ruína?», «Porque matam outra vez João Batista, envenenando-o de desgosto?»

Marzagão é longe.

Na primavera os pomares acendem-se de uma alvura comovente, capaz de arrancar aos poetas mais empedernidos e citadinos exclamativos versos de admiração. O castelo e a desmoronada igrejinha adquirem uma feição simpática. De quando em vez vêm aqui um fotógrafo, um historiador, uma jornalista. Lá se mostra de novo ao país o perdimento, o estado escandaloso do que bem podia ser uma atração turística, a vileza do assim se achar tão desconservado o património comum.

Mas as primaveras voam com as retornadas andorinhas.

Depressa as estações circulam, vai-se o verão, voltam as neblinas de outubro, as bátegas de novembro, o silêncio. Pouca é a necessidade de aqui virem os de cá, menor a dos forasteiros, nenhuma a dos homens do poder. Dir-se-ia, de resto, que não podem o vento, a chuva, a neve, o sincelo, o gelo, estragar mais do que já fizeram no curso do tempo. O que aqui ficou é o dente obstinado na boca de um velho, é só um restar de memória, um travo da piedade de antanho, uma minudência mais no quotidiano de uma província toda ela ameaçada de morrer.

Não há mal que não encontre uma surpreendente continuação.

Sucede que um automóvel furtivo veio pela mesma estrada por onde outros não vieram. Enganou-se numa saída da autoestrada e depois deixou-se ir. Conduzia-o um estrangeiro, um curioso, um homem de longe. Ia, vinha, voltava à direita, parava, engrenava a marcha à ré, volvia à esquerda, prosseguia. Aqui, ali, além, disparava a máquina fotográfica, tirava apontamentos, fazia rasuras num caderno confuso, desenhava a trouxe-mouxe às vezes uma torre, esquemas, ideias e tudo muito circundado de círculos e setas.

Era um argumentista.

Sucede que parou o carro nesta mesma linha de paralelepípedos onde ficou a nossa anterior indignação. Imobilizado o veículo, subiu o homem ao castelo, flanou pelas ruelas tortuosas que sobem para os torreões, deslumbrou-se com a paisagem aberta e ampla, alongando-se infinitamente até ao azul cada vez mais ténue das montanhas de Alijó, do Pinhão, de São João da Pesqueira, de Vila Nova de Foz Coa, de Torre de Moncorvo, de Vila Flor ou Alfândega da Fé, sabe-se lá até onde mais. Opostamente à cidade, onde se vê gente e não se enxerga pessoas, ali observava toda uma humanidade sem lobrigar vivalma.

Quem procura uma coisa e outra coisa encontra não é propriamente um descobridor.

Chama-lhe serendipidade ou serendipismo o dicionário e podia chamar-lhe o que quisesse, contando a salvaguarda da felicidade de se achar uma coisa a bem e com tempo. O homem municiou-se das anotações que quis, foi e voltou. Consigo trouxe gente. Primeiro a que devia desbravar caminho: o realizador, o diretor e assistentes de fotografia, a malta do dinheiro. Depois condutores de camiões, técnicos disto e daquilo, engenheiros de som, cenógrafos e costureiras, aderecistas, maquilhadores, o elenco.

Durante semanas a magia do cinema embusteou, capeou, disfarçou.

Completaram-se as paredes, vieram carpinteiros para as vigas, assentou-se o telhado, colocaram-se quícios e madeira em todos os portais, puseram vidros nas aberturas, fez-se o assoalhamento e a mobilação, impôs-se um altar no transepto, vieram figuras (duas, em particular, mostrando o grande pregador anacoreta batizando Jesus no rio Jordão), vieram castiçais, panos, paramentos, a Bíblia. Mas tudo de madeira prensada, de gesso, barro e alumínio, tudo plástico e de cartão, tudo de empréstimo, frágil e de fazer de conta.

As filmagens fizeram-se.

Simulou-se uma grande batalha medieval, com reis e exércitos inimigos, amores, ódios e insídias, gente leal e pérfida, aristocratas opressores e oprimidos camponeses. Iam captando as câmaras o incompatível mundo da ficção. Durante semanas foi um ramerrame de «atenção», «ação», «corta», um dinumerar de «takes», um sem-fim de transeuntes desejando autógrafos, um desfilar de forças de autoridade, um entra-e-sai de secretários de estado, vereadores, cónegos, presidentes deste e daquele instituto obscuro, de notáveis do ramo hoteleiro, de representantes da confederação á e da escola superior bê, da cooperativa agá, do grémio capa, das empresas xis, ípsilon e zê.

Depois foram-se todos embora.

Levantaram ferros e contraplacados, confiscaram o recheio de aluguer, esvaziaram o espaço até voltarem (ao seu estado de esqueleto) as paredes descarnadas. Regressou o silêncio ao cimo da colina, voltou o inverno a invadir sem oposição os frios destroços de granito da igreja abandonada. Bom seria que o aspeto íntegro dos grandes planos feitos pelos operadores de câmara correspondesse à verdade. Quem olhava o pobre templo devolvido à sua decadência não podia impedir-se de muito lamentar. «Porque não vêm cá os tipos de Lisboa?», «Como não ver isto?», «A que se deve tamanho desprezo?», «Antes nos governassem os estrangeiros?»

Um facto insólito deve ser acrescentado.

A partir dos idos de dezembro, dia de Santa Luzia, sucederam-se em Marzagão relatos de vozes e misteriosos sons noturnos: choros, imprecações, relinchos e galopes. «Os mortos acordaram» espalhava-se, «Despertou-os o bulício das gravações cinematográficas», «As almas estão ressentidas, por causa das estelas funerárias partidas, por causa das tumbas esventradas», «Deus castiga quem assim deixou a sua casa ao prejuízo dos séculos».

As aldeias são férteis em cenas imaginativas.

Dizem na noite de Natal, crescendo para lá e para cá das muralhas do grande castelo ermo, se escutaram cânticos, que coros altíssimos, a coberto da escuridão, faziam ressoar nas pedras frias. Dizem que uma grande claridade riscou o céu e que, súbita, dentro da igreja arruinada de São João Batista, deflagrou uma luz maravilhosa, como um incêndio, e que por entre as sombras das grandes árvores em volta passos e silhuetas de pessoas e animais subiam na sua direção.

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Festa de São Nicolau

Jan Steen, A Festa de São Nicolau, c. 1663-1665
Jan Steen, A Festa de São Nicolau, c. 1663-1665

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Saskia observa o quadro uma vez mais.

É um prazer que guarda desde a infância. Todos os anos no dia do santo patrono, cumpre o ritual de se passear pelos corredores do Rijksmuseum, de abrir para o passado esta janela imensa que Jan Steen pintou, de se intrometer na cena familiar da noite de São Nicolau, de se divertir com o ar choroso do garoto malcomportado (também ao seu irmão mais novo trouxe “Pedro Negro” certa vez carvões em lugar de presentes), o ritual de se enternecer com a alegria dos rostos de outrora, ávidos como ela de vida, embora felizes. Saskia contempla a obra-prima, procurando nela adivinhar o bom aroma do gengibre, as ondas de calor da casa, o som que as velhas senhoras fariam para animar as crianças.

Mais do que uma visão, mais do que um retrato de época, é todo um aconchego o que ali se guarda. Saskia sente, nos minutos preciosos que reserva todos os anos no dia 6 de dezembro, uma espécie de labareda a vibrar dentro de si. É um despertar, como quando as ruas gélidas da cidade vão dar a café animado. Como quando escuta jazz e as suas mãos retomam um desvelo saudoso por Aiden, o seu marido há quase três décadas.

Quando abandona o Rijks, gosta de sentir na pele o ar frio de Amesterdão. Sente-se de um modo muito particular rejuvenescida. O dia de São Nicolau é o prenúncio do Natal que aí vem. Apetece-lhe patinar, pôr-se ao lume numa velha cozinha, preparar doçarias. Aiden deixou de se importar com estas tolices momentâneas.

Acha-lhes piada. Somente isso.

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O acordeonista

Viktor Cherkasov, acordeonista
Fotografia de Viktor Cherkasov

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Depois da guerra, regressou a casa. A História conta-nos muito acerca dos maus regressos, desses que a literatura (desde Agamémnon) sabe escorripichar e que a psiquiatria aproveita cada vez melhor. Regressou sem um tostão, sem uma cicatriz visível, sem uma memória acolhedora, sabendo já – no momento em que desceu o derradeiro passo do portaló maldito – que a namorada o havia substituído.

Gusmán era bom rapaz, com a sorte dos bons rapazes: passaram meses até que assentasse, anos até que descobrisse uma vocação, décadas até ser capaz de pronunciar o nome da grande puta. Quando o fez, a fama de acordeonista rivalizava com a de ladrãozeco e ambas com a de bêbedo.

Como conseguia ele equilibrar-se nos três apodos era coisa que não espantava.

Talvez fazendo intervalos. Talvez caindo nas três desgraças como se cai por umas escadas com gosto, masoquistamente. Talvez segurando a alma nas artes de tocar, furtar e beber como se segura num tripé uma panela de ferro, sem amor, e apenas por necessidade absoluta de manter-se de pé de alguma forma.

Uma noite, no botequim onde o encontravam invariavelmente a guarda, as amantes e os guapos de Buenos Aires ouviram-no tocar maravilhosa, impecável, imaculadamente entre outras o Oblivion e o Adiós Toniño. Dir-se-ia que o próprio Astor Piazzolla teclava ali os botões e agitava os foles, a música saía bela e visceral do salão, cheia de um sentimento que o lustre e os vidros e os cristais fazer repercutir, como se todos, os rostos, objetos, as lâminas embainhadas esperassem ainda um pouco mais e depois mais nada.

Encontraram-no morto a meio da manhã, apunhalado, com um sorriso subtil nascido no jogo de contorção dos lábios.

Também isso não era coisa de espantar.

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Ciúme

Fotografia de Assaf Lazar

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Enciumada pelo sucesso de uma sua vizinha, no que à sedução de certo homem dizia respeito, uma jovem rapariga de Teerão denuncia-a às autoridades religiosas. Em breve, tem o caminho desimpedido, o homem nos braços, o futuro todo à sua frente. Casam, têm um primeiro filho, fazem obras em casa, os anos passam, têm o segundo filho.

Uma tarde, quando os telhados principiavam a desmaiar na poalha do outono, a mulher encontra o marido de costas, em pé, com um envelope nas mãos, segurando uma fotografia. Nela vê-se uma jovem mulher lendo uma carta. Uma carta que ele mesmo escreveu muitos anos antes. É precisamente essa carta a que lhe chegou agora no correio, muito dobrada, dentro de outra carta, como um bebé no interior do ventre materno. O homem chora. Uma mulher outrora amada explica-se, explica tudo.

Desde então o homem não volta a tocar na mulher. Passa a odiá-la. Usa o silêncio para a punir do crime. E das poucas vezes que lhe dirige a palavra, trata-a por Marjan.

Marjan é o nome da sua antiga paixão.

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O moleiro de Salzedas

Fotografia de Martin Rak
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A chuva, depois do intenso tropel que protagonizou com o vento noite fora, retira-se para alguma parte onde a não vemos. Da sua passagem pela aldeia fica o enlameado dos caminhos, o ar miserável das árvores (mais ossudas e descabeladas do que nunca), fica a neblina sobre os outeiros e sobre a igreja, sobre as cercas, sobre a linha torcida do riacho, sobre os telhados tímidos das casas pequenas de pedra. Nelas, nos nichos, nas empenas, nas teias fabricadas pelos aranhiços, nos fios dos estendais, observa-se o modo como a água abundante de fim de outubro pôde deixar uma marca maravilhosa: pequenas lágrimas teimando não cair, esperando o sol que às duas por três as acende a todas. Nenhuma criança esquece a imagem das gotas aguentando-se nas cordas, cheias de luz, sem medo dos olhos gigantes que as cativam.

Conhecemos num desses domingos lentos, véspera de feriado, o velho moleiro de Salzedas. Tem tantos anos que deixou de saber contá-los, tantas histórias na cabeça que começou a misturá-las. Fala devagar, limpando muitas vezes o nariz comovido, espreitando a porta muitas vezes. Sabe o que diz. Diz que o Diabo lhe quer comprar as terras pelo preço de um palácio, mas que a ele não o enganam. O justo justo, o seu a seu dono, nada de trafulhices. Não as quer vender, mas se as vender não será ao Diabo, e se lhas vender ter ele, o Diabo em forma de pessoa, de pagar muito menos, porque o receber a mais é caminho para o inferno.

Apesar desse ar de entulho nas coisas, sempre que assim chove, a aldeia gosta de limpar-se. O solo barrento volta a secar, endireitam-se as veredas, as janelas reabrem-se para purificar o cheiro que no interior das madeiras, dos tijolos, das almas, se torna venenoso. A chuva é um modo de fazer ver melhor.

Como se chama esse velho? Ninguém ali o lembra já (como foi possível olvidá-lo?), se alguma vez o souberam. Fala devagar, assoando-se com estridência, muitas vezes. O Diabo é no fundo bom, porque a bondadosa natureza dos seres não pode extinguir-se. Devemos é procurar-lhe essa semente esquecida. O moleiro de Salzedas é de opinião que o Diabo pode ser repescado por Deus, houvesse forma de lhe obter o arrependimento. Como assim? Ele suspira. Há forma, há forma…

Quando calçamos as botas e nos dispomos a ir, tudo regressa. O fontanário, as alminhas, os muros de granito e de xisto, as cortes, o colmo empilhado, o cheiro atrevido da murta e do alecrim, da cidreira, do funcho, da hortelã, o cantar do açude, a antiquíssima azenha, os carreiros junto aos choupos. Tudo regressa aos poucos. Como fantasmas, os homens e mulheres que aqui viveram existem de novo, regressam às esquinas onde apalavram, riem ou simplesmente se despedem. Ânsias perdidas no tempo tornam-se subitamente vivas, digressionam como sonhos, doem fundo naquela parte de nós que é exatamente o ser nós.

Que o Diabo possa ser reconquistado é o propósito desse homem singular. Não lhe tem medo, espreita-o, espera-o. Põe dois pratos na mesa, dois copos, dois pedaços de broa. No dia em que o acharam morto, com um sorriso serenando-lhe a boca, de ambos os pratos se tinham servido, bebido de ambos os copos, de ambos os nacos de pão sobrado migalhas.

A chuva, depois do intenso tropel da madrugada, é como uma conversa remota que se recorda. A aldeia é sobretudo isso, um manto verbal onde cada um descobre a sua ponta, o seu retorno, a sua dor protegida. As botas pisam-na a medo. É um território sensível. Nunca sabemos o que debaixo de nós quer nascer ou renascer. A chuva é um preparo. Depois dela vem o sol e o silêncio. Nenhuma criança esquece o adulto que assim a observa, sabe-se lá de que mundo. Não esquece.

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