A PESTE

Fotografia: Hamze Dashtrazmi

A peste rondava. 

Meses antes chegara ela, vinda de longe, às praias de Messina, baloiçando-se nos conveses, escondendo-se nos porões, guinchando pelo meio das cordas e por entre as frinchas das tábuas. Viera de longe e tão rápida, tão mortífera, tão devastadora nas suas múltiplas feições de aniquilar que as prédicas dos frades a vestiam como uma embocadura para o inferno. Aqueles que dela tomavam conhecimento pelos macabros pormenores trazidos na boca dos almocreves, pescadores ou mercenários vindos dalguma guerra vizinha, aterrorizavam e benziam-se.

– Glorioso mártir São Sebastião, protegei-nos contra a peste, a fome e a guerra; defendei as nossas plantações e os nossos rebanhos, que são dons de Deus para o nosso bem e para o bem de todos.

Dizia-se que em certa cidade de Aragão se metiam defuntos e enfermos numa grande cova comum e que sobre eles, indistintamente, se lançara toros e lume, ardendo os corpos e as labaredas tão alto que cresciam sobre as torres da catedral.

Narrava-se que nas vilas e aldeias do reino de Nápoles se faziam fumigações e não sabendo os vivos como lidar com as pilhas de mortos, os deixavam aos cães e estes morriam a seguir, tomados pela mesma espantosa praga, pustulentos, suados, cuspindo sangue.

Contava-se que nos arredores de Paris a fome grassava e não havendo que comer, nem quem pudesse cultivar os campos devolutos, sucumbindo uns ao furor dos inchaços, outros à negra miséria que por via da mortandade se abatia sobre todos, imperava a libertinagem, a ladroagem, a completa anarquia.

Caso de estarrecer eram os abomináveis atentados ao pudor. Entregavam-se ao deboche aqueles que, deixando de recear a lei dos homens, afrontavam as tábuas de Moisés e de tudo escarneciam, rapinando riquezas, subjugando damas, infamando a moral das indefesas almas que a Providência deixara de amar e cuidar.

Nunca, desde o Egipto de Moisés, se vira na Terra tal sanha ao Anjo da Morte. Nem nos tenebrosos dias de Job. Nunca os Quatro Cavaleiros do Apocalipse haviam ceifado tantas almas em tão escasso tempo. Exceto, talvez, no dilúvio. 

Mas aí foi tudo a eito, homens e bichos e ervas, tudo limpo e de uma só vez, sem as sórdidas repercussões e contágios que desta vez dilaceravam antes, durante e depois da enfermidade. Um deus escarninho, cruel e enlouquecido permitia que a sua criação chafurdasse na sua própria podridão.

Ia-se a empurrar uma carroça repleta de cadáveres e caía-se com ela e com eles, alagado em dor e espanto. Pousava-se um pano molhado na testa ardente de uma criança e ficava-se moribundo horas mais tarde. Limpava-se para uma tina a boca sanguinolenta de um velho pai ou de uma velha mãe e ficava-se saturado de bubões. Era o fim do mundo, que outra não podia ser a explicação.

O abade de Arões seguia com o pobre dedo tremente as linhas recebidas de um seu primo, monge beneditino em São Julião de Samos. A luz palidíssima do círio mal alumiava os doestosos e funestos acontecimentos narrados: o mal subira os campos da Toscânia, escalara os Alpes, viajara nos alforges e bornais dos mercadores, descera os Pirenéus, caminhara nas sacolas e sandálias dos peregrinos, chegara a Compostela e a Finisterra, às agulhas de Covadonga e também a Ourense e às Rias Baixas. Era uma questão de tempo até que se condividisse por todas as nações e reinos da terra.

Estávamos em setembro, tempo do vinho novo, tempo dos figos e das primeiras castanhas, tempo do mel e da própole, tempo das conservas e dos celeiros protegidos, tempo dos bacorinhos e das ninhadas de pintos, tempo da paz e da concórdia. Reinava em Portugal Alfonso, filho dileto de Isabel, a santa, e de D. Denis (ou Deliz, ou Dinis). Era arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, D. Gonçalo Pereira, filho de Gonçalo Peres Pereira e Urraca Vasques Pimentel. Era abade de Arões, Basílio Mendes, filho de Mendo Garcia e de Mécia Vaz.

– Deus Nosso Senhor, tenha piedade das nossas almas. Que o Seu dedo magnânimo e todo poderoso afaste de nós e desta terra os propalados males que aí virão. E nos guarde, como guarda a porta da casa do lobo sorrateiro, de tudo quanto se sabe e de quanto se espera. Ámen!

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