O CASAMENTO

Thierry Boitelle
Foto: Thierry Boitelle

 

Era um nevoeiro tão intenso que a manhã parecia perder-se dentro de si própria. Mal se avistava o perfil das árvores e o campanário e o rio de álgidas águas que corria ali propínquo.

A noiva chegou. Dir-se-ia que o branco decidira engolir toda a cidade, deixando-a suspensa de cada passo que a conduzia das escadas à nave central e ao altar. Prisioneiras da galilé, laterais uma e outra, as estátuas de António de Pádua e da Virgem Maria. No rosto de ambos, reverbera a vermelhidão da chama das velas e círios que o sacerdote fizera acender. A catedral, vazia, gélida, perfeita, ecoava.

A noiva entregou a mão ao noivo e os dois as mãos ao padre que os casou. Ela tinha sido homem e era agora mulher. Ele tinha sido mulher e era homem agora. Assim se encontravam e apaziguavam, finalmente, seres e sexos transviados, errantes, renascidos dos abismos humanos. Deus, que tudo vê e sabe tudo, não se zangava com o seu corpo transformado, nem sequer com o ministro que no sacramento os unia com marido e mulher. Era uma catarse. Toda a cidade se limpava do esterco, da imundície das feias palavras e horrorosas ameaças que praticara com aqueles dois.

Nunca se vira um nevoeiro assim. Era como se um manto de futuro arrependimento se levantasse já da memória mais crua. Os olhos míopes nada viam ainda. Somente os olhos acesos dos santos ardiam, os da Virgem puríssima e os de António, padroeiro dos fecundadores.

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