O insulto

Emmanuel Kauffmann_typewriter
Fotografia de Emmanuel Kauffmann

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O rapaz gostava de coisas antigas. Todo ele, digamo-lo, caía para o antiquado. A começar pelo pullover sem mangas, de um tom amarelo pastel. Não havia uma única mulher no escritório que o não achasse piroso.

Depois havia aquela coisa entre o nariz e o lábio superior, aquela pelagem a parecer-se com um bigode, ou um buço, e que o tornava mais feio e antipático. E as raras palavras que dirigia aos colegas não ajudavam:

– Pode, por obséquio, arremessar esse agrafador na minha direção?

Era realmente muito desagradável. Ser-se interpelado de um modo cortês, à antiga, dificilmente pode aceitar-se num espaço onde crápulas e devassas se prestam todos os dias a uma feroz demonstração de animalidade.

Ponhamo-nos de acordo: o escritório é um lugar errado para se pedir o que quer que seja por favor. Ainda menos com palavras que ninguém entende.

O rapaz possuía outro grande defeito. Chamava-se Valdemiro. Valdemiro Perestrelo. Não convém hoje que se seja chamado de Valdemiro e Perestrelo. Não perguntemos porquê.

Outra disformidade merece ser assinalada. Embora fosse calmo, o rapaz escrevia demasiado depressa. Matraqueava o teclado do computador com força, com vigor, com fanatismo, num estilo que importunava toda a gente.

O chefe de departamento alertou-o em várias ocasiões para os perigos de uma escrita rápida:

– Fixe o que lhe vou dizer, Perestrelo: não me escreva coisas como “Recebemos com agrado o seu pedido” apagando uma letra na palavra pedido, entendeu? Nem que “Vamos verificar a sua conta” com uma letra a menos na palavra conta. Tem ido malta para o olho de rua por causa deste tipo de equívocos…

Mas o rapaz não se enganava. Possuía treino e devoção, outro grande mal nos dias que correm.

Habitava um apartamento modesto cheia de objetos obsoletos. Dedicava-se a traduzir Shakespeare. Fazia-o de um modo bastante simples: primeiro espreitava o texto original, depois repetia-o sotto voce, a seguir martelava na máquina de escrever a sua versão. Não usava dicionário.

A máquina de que se servia – uma pesadíssima Remington, modelo 12 de 1930 – nas noites mais criativas do rapaz prensava o papel num delírio que não deixava ninguém dormir no prédio.

O treino de Valdemiro vinha daqui.

Datilografava sem necessidade de conferir as teclas redondas. Fazia-o depressa e bem. Limitava-se a corrigir de quando em quando a posição dos oculinhos redondos. No fundo, alimentava o seu modo de vida, que nos parece tão bom como qualquer outro.

Foi, por isso, um espanto ouvir-lhe na manhã do dia de anteontem o insulto.

O chefe de que falámos atrás, impacientou-se com qualquer coisa. Incomodou toda a gente no escritório e toda a gente no escritório descarregou no rapaz, de tendência calado e sorumbático.

O insulto é uma prova corriqueira da nossa fraqueza. Ou das nossas fraquezas.

Esquecemos – e não será desprezível mencioná-lo – que a máquina de escrever de Valdemiro Perestrelo era gaga. Gaguejava nos P e nos A. Por vezes, quando o seu dedo tradutor apertava contra as respetivas teclas, havia um soluço e saíam dois caracteres juntos, ambos mal desenhados. Isso, admitamos, aborrece. Isso estragava, se não a boa disposição, o ótimo papel munken de que o rapaz se servia.

Porque lembramos isto? Porque a nossa cabeça se enreda amiúde em aborrecimentos de que nos não livramos facilmente.

De maneira que o colega mais chegado lhe disse algo como isto:

– Ó pancrácio, tem lá cuidado ou ainda rebentas a mesa!

De maneira que Valdemiro se interrompeu uns vinte segundos e, tomado por uma ira mansa, respondeu a direito e sem rodeios:

– Peço-lhe encarecidamente, Rui Maciel, que vá à berdamerda…

Um insulto, ainda que proferido por alguém desacostumado de os proferir, é sempre motivo de coletiva indignação. Assinalemos aqui o despropósito: não se manda ninguém à berdamerda, menos ainda quando se traduz Shakespeare.

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Pequeno conto trácio

Mar Egeu
Fotografia de Thomas Galler

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A escola primária ficava perto de um pinhal. Nos dias de calor, no verão, escutava-se o rachar das pinhas entre o ziziar ruidoso dos insetos, sentia-se o olor da caruma a entrar nas portas e pelos respiradouros.

«Estamos quase nas férias» pensavam os garotos, pensavam-no um instante apenas, no intervalo dos ditados e do grande silêncio que a vara do professor conduzia, como uma batuta compridíssima.

Desde sempre amou esse som e esse perfume. É por causa deles que o apicultor Giorgos Nicodemou se senta aqui, com a sua paz, observando o mar Egeu ao fundo, cismando na meninice, descobrindo no horror do silêncio o estrépito acalentador das pinhas que cedem à canícula, respirando (como um acordeão aberto) este perfume alcalino, puro e limpo da floresta.

«Quando morrer, quero ser sepultado aqui, no meio destas árvores, sem uma lápide, sem um brevíssimo sinal de que existi. O corpo há de tragá-lo o chão, a alma há de o espaço levá-la para onde vão as almas: para o nada.»

O professor era severo, impiedoso, cruel até. No último dia de aulas, saía-se da sala a correr, galgava-se a escadaria, atingia-se o recreio com a máxima felicidade, aos gritos, quase em histeria.

É assim que o velho Giorgos quer morrer. Com a vertigem de uma libertação há muito desejada, e, de repente, inevitável, não menos do que feliz…

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Amores-perfeitos

Fotografia de Mariya Muschard
Fotografia de Mariya Muschard

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O mais difícil neste mundo é encontrarmos uma pessoa satisfeita, alguém que confesse com inteira sinceridade o estado de plena, consciente e feliz aceitação da vida que leva.

Era no que pensava quando vi a mulher a aproximar-se, a deter-se no canteiro dos amores-perfeitos, a sorrir para as pluminhas negras ao redor da corola.

Que espécie de pensamento pode ocorrer a alguém que caminha sem pressa e se põe a admirar pétalas tão precocemente enlutadas?

Era no que pensava quando a mulher se voltou um pouco e o clarão da luz solar a atingiu em cheio no rosto. Os olhos (pareceram-me verde-água) e os cabelos loiros faiscaram. Não duvidei que fosse bonita, visto que fiquei a admirá-la com gosto. Por causa dessa luzência, que a encandeou, não pôde reparar em mim. Teve mesmo de semicerrar os olhos e de se defender, retrocedendo aos amores-perfeitos.

Desta feita murmurou alguma coisa. Parecia tomada de uma frase, de uma pequena oração, de uma memória, dita a si mesma num tom que pudesse ser escutado unicamente por si.

Não tenho descanso nestas coisas. Nunca me dou por contente em apenas observar. Preciso de saber mais, de saber tudo, de saber até um pouco mais do que tudo.

Que curtas palavras eram aquelas? Como se chamaria a mulher merecedora da minha atenção? A que se dedicava na vida? Quantos anos teria? E porque se deixou maravilhar por uma planta tão feia?

Era no que pensava eu, cada vez mais propenso a misturar-me na caminhada, na manhã, na vida desta simpática transeunte.

Sou indiscretíssimo!

A mulher deve tê-lo notado. Estugou o passo, atalhou não sei por onde nem para onde.

Senti pesar e vergonha. Aliás, deceção. Não pertenço ao rol exíguo das boas almas a que me referi no início deste texto.

Permiti-me encarar as florinhas fúnebres ali no meio da praça. Deslizei a polpa dos dedos pelo aveludado do seu corpo. Senti-lhes o aroma subtil, murmurei qualquer coisa como isto “Que raio de cor para amores-perfeitos!”

Alguém em frente seguia os meus gestos com inesperada atenção.

Não lhe pude alcançar imediatamente o aspeto, por causa do sol abundante que caía no meu rosto como uma cascata de fogo.

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Um amor sonâmbulo

amor, coração, desenho,
Fotografia de Gaelle Marcel

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Para a Céu

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O rapaz sofria de noctambulismo. Durante a noite, empunhando uma vela, passeava para a frente e para trás pelos corredores da pensão e só ao cabo de algum tempo regressava ao quarto em paz.

É claro que esta história já tem algum tempo. Hoje ninguém passeia pelos corredores das pensões durante a madrugada.

O rapaz procurava o seu amor: ia sem saber que ia, voltava ao ponto de partida sem perceber que partira. Um autómato. Não oferece dúvida que este é o proceder dos que padecem da enfermidade. Nas últimas vezes fazia uma paragem diante a entrada do quarto 107.

Alguém que queria saber mais seguia-o cheio de curiosidade. Quiçá habitasse um quarto lá ao fundo, na ponta oposto do mesmo corredor. Talvez entreabrisse silenciosamente a porta à hora certa (os curiosos estão sempre a par das horas certas) e espreitasse, seguro de poder ver sem ser visto.

O rapaz carregava a candela com a mão direita e com a outra mão escrevia a giz (era, portanto, canhoto) qualquer coisa. Depois prosseguia a sua jornada sonâmbula e não acontecia mais nada. Esta coisa de escrever a giz era recente. Fazia-o com gestos lentos e macios, quase sussurrantes.

De manhã cedo a porta do quarto 107 rangia docemente, deixando sair para a penumbra do espaço comum a boa luz da manhã que nele já se havia instalado. A jovem professora de francês saía para o trabalho, uma rapariga muito bonita, de cabelos loiros encaracolados e olhos safíricos.

Vexadíssima, lia as misteriosas palavras e apagava-as com um lenço, não sem primeiro deitar uma mirada em redor.

Mais uma vez, quem isto observava regozijava-se com o segredo. Devia regozijar-se, porque abdicava do seu próprio sono. Quem trabalha precisa de dormir e nós sabemos que entre a escrita e a limpeza das palavras decorriam horas escassas.

Uma noite o rapaz demorou-se um pouco mais. Escreveu um poema. Era um bom poema, garantiram-nos. A rapariga leu-o na manhãzinha seguinte e hesitou. Vieram outros poemas e outras hesitações. Às tantas a professora passou a usar um lápis e a registar as palavras que lhe dedicavam num caderninho. Estava rendida.

Mas quem seria o poeta. Nos quatro pisos da pensão juntava-se muita gente, jovem, menos jovem, velha. Havia um rapaz bem-apessoado, o do número 114: só se cruzavam ao fim de semana, por trabalharem em diferentes turnos. Ela encarou-o com interesse, mas ele lia as Flores de Baudelaire e nem lhe pôs os olhos em cima.

Como gostaria de conhecer o autor daqueles versos tão belos e tão saturados de ternura!

Alguém conhecia o segredo.

Mas os segredos deixam de ser segredos quando revelados. E nada se sobrepõe ao prazer imenso de o gozar a sós, como fará Deus amiúde lá no Céu, ou onde quer que Ele viva. Além disso, quem pode prever as consequências de uma intromissão (bastante espúria, aliás) na narrativa de terceiros?

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Um bom pai

Raffaello Sanzio - A Sagrada Família com cordeiro, 1507
Raffaello Sanzio, A Sagrada Família com cordeiro, 1507

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Pelas mãos do Dr. Paul Gilbert passaram vezes sem conta os manuscritos descobertos nas cavernas de Qumran, perto do Mar Morto, e também os papiros encadernados em couro desenterrados em Nag Hammadi, ou os que se acharam no túmulo de Jebel Qarara.

É universalmente reconhecido como um dos maiores especialistas da Bíblia massorética, uma autoridade na leitura (das diversas versões) dos evangelhos canónicos e dos apócrifos, autor de inúmeros ensaios que se tornaram uma referência no mundo académico (por exemplo esse best-seller A verdade ou a sombra dela nos Evangelhos Gnósticos, dado à estampa não há muito tempo publicou pela The University of Chicago Press).

Resta acrescentar que domina o aramaico, o hebraico, o grego (incluindo o dialeto koiné) e o latim, entre outras línguas antigas de que a civilização se vai desapegando. Não fosse a unânime aclamação, seria alvo certamente da nossa inveja mais grosseira.

Ao Dr. Gilbert confiaram o texto agora mesmo vindo à luz do deserto nas montanhosas imediações do Mosteiro de Santa Catarina do Sinai. É um documento antigo (plausivelmente dos séculos III ou IV, porém, e com grande pena da comunidade científica, pouco preservado, que contém frases enigmáticas escritas em copta.

“Enigmáticas” é dizer pouco. Talvez “controversas” fosse adjetivo mais apropriado. O Dr. Gilbert suspeita tratar-se de um novo evangelho, que em breve há de nomear e dar a conhecer ao mundo.

Eis um trecho em que concentrou a sua atenção.

«…e então, o menino alegrou-se. E Maria alegrou-se com ele e também José se alegrou e as servas. Da fonte brotava um manancial de água fresca onde vinham as aves do deserto saciar-se da sede. Dela beberam Jesus, Maria e José, os servos e as servas, as alimárias e os outros animais.

Havia por ali algumas figueiras com os seus frutos. Tendo-os visto Jesus, a uma trepou sem conseguir alcançá-los, e posto que se desequilibrou e caiu e magoou, chorando pelo sangue que aflorava à palma das mãos, José – cheio de bondade – o levantou e consolou, lavando com a água da fonte as feridas e pondo sobre elas a sua saliva para as cicatrizar.

Maria, que a tudo assistiu preocupada, considerou como José, seu esposo, era um bom pai, amigo do menino, e de si e dos servos e servas, temente ao Senhor, e generoso nos pequenos gestos que fazia. E, assim cogitando, secretamente se regozijou como mãe e esposa e mulher, e pôs em José, apesar de a sua idade ser distante já da juventude, todo o seu amor…»

O Dr. Paul Gilbert releu cada uma das frases traduzidas. Teme tê-las traduzido mal. Encontra nelas uma porção maravilhosa de heresia e de amor. Quem terá composto semelhante discurso? Que amor é esse que tão confusamente se insinua?

No seu íntimo, Paul rejubila: estas palavras são uma lufada de ar fresco no corredores bolorentos em que se acamou ao longo dos séculos a piedade mística de Maria.

Vem-lhe à memória a História de José, o Carpinteiro, narrada pelo próprio Jesus. Um bom homem, um pai ancião que morreu aos cento e onze anos e cujo corpo jamais seria tomado pela podridão. Tê-lo-ia amado a jovem Maria de um modo humano, aprendido com os anos, com a maternidade e com o sofrimento?

O Dr. Gilbert lê e traduz. O papiro é fragílimo. Sente vertigens, quase, de lhe tocar!

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Lembrança da Mena e do Miro

Bêbedos, Drunk
José Malhoa, Os Bêbedos, 1907

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Não há gosto que mais me anime do que rir com vontade. Nestes débeis intervalos de entre-inverno-e-primavera deu-me para remexer na papelada do avô. Já antes o havia dito, é um dossiê muito baralhado de ideias, mas cheio de realismo e de graça.

Dou por mim a partilhar outra das suas histórias.

Leitor, e se nos aprouvesse contar num livro a História Universal das Bebedeiras? Nele teria de constar, evidentemente, a carraspana célebre de Noé, o condutor da Arca. E também as borracheiras em que se deixaram apanhar, tanto como Hércules como Sansão, dois desgraçados cheios de força e pouco juízo. E também as cardinas de Li Bai e de Rumi (não sei se mais fabricantes de poesia, se bebedores de néctar de Baco). Convinha que, igualmente, as do meu cunhado Francisco (precocemente reduzido à condição de ex-motorista, após terem confiscado a licença que lhe permitia conduzir o camião e a semi-trailer – «semitrel» como ele dizia – e tudo por se obstinar a fazê-los embater contra tudo o que fosse matéria dura e merecedora de estar em pé).

Grande ultraje seria – se não peco por imodéstia – não incluir nesse tratado as minhas próprias bezanas ao longo da formatura, uma em particular, quando etilizado em extremo me levaram aos cuidados de uma enfermeira amiga, que me disse «Ai, meu menino, tu és tão bonito, mas estás tão bêbedo».

Mas isso, leitor amigo, isso são bagatelas se cotejadas com as digníssimas pielas da Mena e do Miro. Quem eram a Mena e o Miro perguntarás e com razão. Eram o mais bem-aventurado casal de alcoólicos que conheci nestes rugosos anos de vida e de que vale – de que vale muito – ocuparmos esta pena por alguns instantes.

Ela, Maria Filomena Rodrigues Feital, nascida em 16 de março de 1938, na freguesia de Antime, concelho de Fafe. Ele, Casimiro Manuel da Costa Fontão, nascido em 16 de março de 1938, na freguesia de Darque, nos arredores de Viana do Castelo. Terras excelentes as duas, paróquias de muitos devotos cristãos e boa maternidade de ilustres e incontáveis ébrios e ébrias.

Não será de pouca monta a coincidência ou a simbologia da data em que os viu o mundo pela primeira vez. Investiga, leitor ocioso, e sabê-lo-ás.

Nem o terem-se conhecido na Feira de Barcelos, numa tenda de cacaria. Havemos de convir: que melhor prenúncio de vida a dois do que comprarem para enxoval um cantarozinho pintado?

Gostaram um do outro, casaram, nunca tiveram filhos. Entendiam-se como o vento e o fogo, especialmente à quarta-feira quando mergulhavam na Tasca da Porcina e logo o aroma do fígado frito em cebolada os agarrava a ambos pelo colarinho e os obrigava a sentarem-se a uma mesa lá no canto, à beira dos presuntos pendurados.

Era uma romaria de beberrões. Entrava-se, encomendava-se a broa, as azeitonas, o fígado frito (o dita da cebolada ou, em lugar dele, o bacalhau – desfiado cru, assado às postas, frito com ovo) e pedia-se, sobretudo, a vinhaça.

Berrava o Miro pelo par de quartilhos:

– Venham dois: um pra agora, outro pra depois!

Era a sua maneira de começar, a sua frase de guerra. E chegava a vinhaça, a vinhaça magnífica que fazia espumar canecas e tingir as malgas.

A Mena, cheia de sede, gostava que ele enchesse até cima. Só dizia “bonda!” quando o líquido atingia os beiços esbotenados do barro. Dava um beijinho à tigela, acariciava-a um pouco sobre a mesa de pinho antes de a erguer com jeito. A seguir punha-se a incliná-la sobre os seus próprios beiços arreganhados e, zás, descia tudo goela abaixo num abrir e fechar de olhos. A Mena regougava, dava com a língua estalos de aprovação, atirava para o lado a contrassenha blasfema:

– Se este é o sangue de Cristo, bendito seja quem no matou!

Nunca a Mena teve forças para trabalhar. Jamais o Miro atinou com emprego que pudesse manter por muito tempo.

Andou pelas fábricas têxteis, mas enganava-se muito nos fios. Carregou a massa das betoneiras, mas estorvava nas obras. Nos talhos ninguém lhe dava emprego, que afiados são os cutelos e magros os dedos são. Somente na terra, na poética lavoura, arranjava ele serviço às vezes como jornaleiro, recebendo vinte e cinco, trinta, cinquenta escudos por semana, conforme o préstimo e a bondade do agricultor contratante.

O problema era sempre o mesmo. O Miro arava, abria valeiras, semeava e plantava, estrumava e sachava, mondava e colhia, mas a cabeça portava-se mal, a cabeça ardia-lhe como ferro ao sol. Exigia-lhe sumo de uva a toda a hora, tanto dele no bucho como de ar nos pulmões.

Foi assim que uma vez se voltou sem mais nem menos para a Dona Antoninha, a fidalga da Luz, e com ar sofrido lhe rogou:

– Ó minha senhora, pelas almas! Dê-me um copo de vinho, que eu já não me tenho em mim…

Era um escândalo.

O Miro sorvia ruidosamente o copo alto, a malga funda, a caneca bem medida. Era como se morresse à míngua, como se comesse vinho, os queixos muito sujos, a barba ensopada, a camisa sarapintada de nódoas. Bebia rubro do esforço, vermelho da secura.

Daí para a frente era o desastre. A fidalga vociferava:

– Aquele homem põe-me a alma no inferno. Aquele homem só faz bordel…

«Fazer bordel» era o mesmo que trocar sementes, esquecer a ferramenta no meio dos campos, deixar a água fluir pelos canais errados, não trancar a porta da pocilga. Pior, muito pior do que isto, era pregar sustos à fidalga.

Leitor atento, queres exemplos, não é assim?

Hesito qual deles dar-te, visto que não foram poucos os que testaram a paciência da pobre senhora. Talvez este caso, que é de boa índole. E se dentro dele escutas já o assobio do Miro, não julgues que a Mena ficou de fora.

Em agradecimento de certo obséquio que realizou o fidalgo a gente de fora da freguesia, ofereceram em vésperas de S. João um anho a Dona Antoninha, para o assado.

Foi o bicho posto nas catacumbas do solar, preso numa corte feita de improviso, à espera que lhe dessem um destino. Precisavam de alguém para o matar e de alguém para o esfolar, dado que nem as criadas da casa conseguiam isto, nem os criados estavam para aquilo. Chamaram, portanto, o Miro e a Mena.

O animal era muito bonito, coberto – como não podia deixar de ser – pelo lanoso macio de todos os espécimes da sua espécie, balindo a todos os que lhe afagavam o pelo como a pedir misericórdia, igual a uma figura de presépio.

A Menina Constança, a fidalga mais nova, afligia-se. A Menina Rita, a fidalga mais velha, afastou-se para não ter de olhar e ouvir. As criadas amparavam mal as lágrimas, de tal modo a cena metia dó. Apenas o Miro, que havia emborcado um par de cálices de vinho do porto e outros tantos de aguardente, parecia saber o que fazer – ele e a Mena, que afiava as facas e tinha já duas panelas com água a ferver e um alguidar grande de barro com rodelas de limão.

– Segura-lhes nos cornos, Miro!

– O rais ta parta, Mena. Este peludo tem cornos, por um acaso?

O Miro desferiu-lhe uma marretada na cabeça, que assim se matavam os anhos. O animal tombou. Estava feito! Dona Antoninha, vencendo a relutância, espreitava do eirado. A Mena arrastou-o, deixou-o junto do alguidar, porque queria acabar de amolar as facas. Mas eis que num ápice o anho se levantou e se pôs a barregar outra vez.

– Ai, meu Deus! – berrou a fidalga.

– Ai, meu Deus! – afligiram-se as criadas.

– Ai, meu Deus! – disse o Custodinho, neto da fidalga, que nessa altura estudava no Seminário de Braga e tinha vindo para a missa da solenidade de S. João Batista.

A Mena, já muito emperrada na voz e com os olhos a luzir, disparou imprecações contra o matador incompetente. O Miro, sem se importar com a consternação geral, emendou a mão e acabou à segunda o serviço.

– Ó minha senhora, não se aflija! Não se aflija, digo-lhe eu! Estes bichos são mesmo assim, tanto estão mortos, como estão vivos.

Sei de fonte lídima que não se anho assado nessa ocasião no solar da Luz, tamanha foi a repulsa e tão grande a lembrança do bicho morto-vivo.

Foram os serviços do Miro e da Mena dispensados, com natural azedume e muitos ralhos à mistura.

Se a consciência e o sentido da justiça tivessem imperado, havia a fidalga de arrepender-se e pedir desculpa ainda por cima. Cá reza o povo, e com bastante arrimo da verdade, que «Tanta culpa tem o bêbedo como o taberneiro: se um é o lume, o outro é o fogareiro».

Está a história pouquíssimo rabiscada no caderno do avô, redigida num estilo, no itálico da sua caligrafia habitual. Data não tem, fundo de verdade talvez tenha. Pergunto-me amiúde porque nunca os terá publicado, se tão melhores são que os meus!

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O fazedor de haikus

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Fotografia de Robson Hatsukami Morgan

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Esta é uma autoestrada que Ole Henriksen conhece bem.

Sobe e desce a E6 muitas vezes ao volante do seu Scania V8, um camião poderoso de 770 cavalos, atravessando (como agora) túneis pacientes em paisagens montanhosas, pontes ultramodernas sobre abismos azuis, florestas a perder de vista, cobertas boa parte do ano pela neve e por espinhos de gelo, mas também aldeias pitorescas cheias de cor, entre cidades grandes, frias e incaracterísticas, atravessando, enfim, a sua própria memória, repleta de vislumbres e de ecos e de vozes.

Viajar viaja-se de muitas maneiras sabemo-lo todos. Ole sabe-o mais do que nós.

De Trondheim a Oslo são seis horas e meia bem contadas, quinhentos quilómetros para sul, a que se seguirão outros quinhentos em sentido oposto, sem distrações, para transportar tudo aquilo que a espécie humana consegue decompor, embalar, vender e possuir dentro de quatro paredes.

Hoje, por exemplo, é responsável por uma carga de cerveja, toneladas e toneladas dela diretamente para um armazém da capital, que a fará distribuir (não tarda) pelos inumeráveis bares e restaurantes da Grünerløkka.

Ole nem sempre se desloca sozinho. O irmão Bjoern acompanha-o nos trajetos internacionais e não raro revezam-se na condução. Antes dele quem o fazia era Frigga, a mulher com quem casou e de quem se divorciou há não muitos anos.

Frigga era, sem dúvida a companheira ideal. Sabia gerir como ninguém o tempo de falar e o tempo de calar. Erguia no meio do nada uma narrativa, uma lenda, uma memória, uma frase pertinente. E possuía, além de olhos maravilhosamente bem feitos (cor de âmbar), uma voz sedosa, sem crispação e sem veneno. Nunca lhe escutou um ralho, um protesto, uma altercação. Frigga foi a melhor das mulheres e ele, digamo-lo nós sem rodeios, o pior dos maridos. E, por esse motivo, continua a amá-la e a aceitar o castigo penosíssimo de a não ter junto a si.

Bjoern, por seu lado, é um borrachão. Nas vésperas das grandes viagens, é necessário repetir-lhe regras, ameaçá-lo, fazê-lo dormir, vistoriar-lhe os bolsos do anoraque.

Portanto, a solidão não é muito má. A solidão enche-nos de pensamentos e os pensamentos, pese às tantas doerem demasiado, são o nosso modo de sobreviver. Acresce que no interior e no alto de um camião se pode captar, como pelo vidro de um ecrã, imagens que dificilmente se perdem nas anteparas da cabeça. Entre as imagens que aprendeu a valorizar, Ole aprecia o recorte acidentado dos lagos e dos fiordes, as linhas intermináveis de abetos, o dorso descarnado das cordilheiras do leste, especialmente no inverno, quando acima do manto espesso que nelas se acumula bruxuleiam as chamas verdes das auroras boreais.

Aprendeu a ver e aprendeu a escutar. Todas estas e muitas outras coisas em que não reparava vieram com Frigga, com a sua mania de as enfiar em versos.

Certa vez, perto de Esbjerg, na Dinamarca, brindou-o com esta observação:

– Que magnífica praia, Ole! As gaivotas assim todas poisadas parecem o nevoeiro à beira-mar, não parecem? Que estampa maravilhosa. Olha, estou mesmo a imaginar Hokusai ou Ohara Koson a pintá-la…

Para o motorista, as coisas não tinham de parecer-se com nada. Eram o que eram. Não se lhe afigurava muito sério que se dissessem as coisas como Frigga as dizia, sobretudo se por meio de palavras ritmadas, curtas, nada espontâneas.

Noutra ocasião, numa das encostas do Hardanger, saiu-se com uma ainda melhor:

– Para, para o camião, meu querido. Vamos encher os pulmões com o ar frio, enchê-los com o perfume daquele pomar!

Como podia ele parar o camião? As coisas na vida real passam-se de outro modo. Há compromissos, objetivos, prazos a cumprir. Encher os pulmões com o ar frio? Então, para que raio mantinha o ar condicionado naquela temperatura? Por quem, senão por ela, conservava a cabine do Scania tão esmeradamente cómoda, tão dedicadamente limpa, tão perfeitamente climatizada?

– Sabes do que me lembrei, Ole? De um poema de Kobayashi. É assim:

O brilho do sol.
Na carne das cerejas
um moscardo cai.

É um belo poema, não concordas, Ole? Dele ou de Bashô, já não sei ao certo… Mas é lindo! Não achas, querido?

Antes estas palavras soavam-lhe incompreensíveis. Agora já não. Ole Henriksen pensa que é espantoso ter permanecido tanto tempo na obscuridade.

Frigga amava a pintura, a literatura, a música, sobretudo as do Japão, essa exótica nação que ela queria visitar e ele nem por isso. Frigga sabia imensas coisas da civilização nipónica. Partilhava constantemente histórias de artistas, de guerreiros, de tradições, falava de flores, de árvores, de ilhas abençoadas. Reproduzia anedotas, mostrava-lhe gravuras do Fuji, aludia ao budismo, chegou a comprar e a aprender a dedilhar um shamisen. Oh, o som que saía daquela maldita viola!

Tudo isso o incomodava. Preferia que ela fosse uma pessoa normal, uma mulher mais igual às outras, capaz de proferir insultos, de comer fast-food, de aguentar em terra firme a cabeça sonhadora, capaz de o seduzir com insinuações animalescas, obscenas, escatológicas.

Ole fartou-se. Por culpa da sua estupidez, frequentou casas erradas.

Tudo isso regressa agora. O divórcio abriu devagar fissuras enormes, abriu em si como numa lona rasgões dificilmente reparáveis.

Agora que o sol passa, ele vê. Vê dentro de si moscardos entontecidos, cerejas rebrilhantes, o privilégio da ordem e da harmonia. Agora tudo é diferente. Os horários esvaziam-no, o ruído dos empilhadores irrita-o, a comida das estações de serviço provoca-lhe azia e náuseas. Agora tudo é diferente, embora demasiado tarde.

O primeiro haiku ocorreu-lhe justamente numa dessas estações de serviço, em Odda, no momento em que fumava no sítio exato (uma mesa de madeira, sob os troncos combinados de grandes bordos e plátanos) onde o fazia noutros tempos com a mulher.

Era outubro. A oxidação das árvores não lhe passou despercebida. Vieram-lhe à cabeça e depois à boca, quase involuntariamente, os três versos que reproduzimos:

O outono…
Folhas de ouro e rubi
crepitam no chão.

Espantou-se com o jogo de palavras. Depois de urinar à socapa, como gostava depois dos cigarros, repetiu a pequena composição em voz baixa, de si para si, e decidiu apontá-la num caderninho, apondo no final a data e o lugar.

Pouco tempo depois, registou um novo texto:

Cego inverno.
Triste, a água congela
nos olhos.

Ulvsvåg, 22/12/2014

Nesse precioso bloco de folhas foi registando outros poeminhas, que aprecia cada vez mais, que relê amiúde, que a espaços corrige. Não se julga senhor da técnica, mas anima-o a vontade de observar mais longe e mais fundo a natureza empírica dos elementos e de extrair dessa observação a voz de Frigga, como se em vez da sua fosse a voz dela a que dita os haikus.

Abril.
Renascem bosques sombrios:
a luz atravessa-os.

Brémen (Alemanha), 15/04/2015

Talhão de papoilas.
O vento medroso
brinca com fogo.

Carcassone (França), 10/05/2015

Se ouves o melro,
rejubila.
A tua alma vive.

Cantuária (Inglaterra), 21/06/2015

Pasmo jovem…
Olhos e nariz rendidos
à cizânia.

Essex (Inglaterra), 22/06/2015

A voz das ervas.
Os pássaros erguem-na
depois da chuva.

Dover (Inglaterra), 24/06/2015

Cinzas da luz.
De manhã também em nós
Se acende o riso.

Calais (França), 24/06/2015

Mantém na boca
a beleza da noite.
Vãs as palavras…

Antuérpia (Bélgica), 26/06/2015

Ole passou a registar com igual cuidado as palavras que lhe suscitam maior curiosidade e as que considera úteis para a sua escrita. Usa um velho dicionário escolar, onde sublinha a lápis o vocabulário mais apetecível. Dá por si a misturar termos e a lamentar que algumas palavras tenham mais ou menos sílabas do que as necessárias. Também se ofende bastante com a falta de rigor dos colegas de ofício, que estropiam a todo o instante o norueguês e o contaminam por tudo e por nada com empréstimos de outros idiomas. Ole considera muito criticável a preguiça, a mania, a ignorância dos motoristas profissionais em questões de língua materna.

Quanto à sua escrita, talvez decida publicar estas composições num livro. É algo de que se orgulharia, sim. Se o fizer, há de dedica-lo a Frigga, à sua Frigga, à laia de pedido de perdão.

Tristeza.
O lago volta-nos as costas,
a lua foge.

Mjellum/Mjøsa, 30/06/2015

Pensamentos.
Água podre e estanque
que urge vazar.

Trondheim, 18/08/2015

Prestes a partir,
os últimos pássaros
fecham círculos.

Estocolmo (Suécia), 20/09/2015

Silêncio.
Ao longe chocalham
as pedras da montanha.

Bolzano (Itália), 18/10/2015

Rio e mar drapejam
o mesmo azul.
Pulmões inchados.

La Coruña (Espanha), 20/10/2015

Abre-te na luz
ou no escuro.
Sê nu como um fruto.

Bilbao / San Sebastián (Espanha), 21/10/2015

Madrugada.
A brisa espicaça a luz,
meus olhos ardem

Oslo, 23/10/2015

No regresso a Trondheim existe um lugar bendito onde consegue, infalivelmente, descortinar outras variantes da sua poesia. Fica em Ler, um vilarejo no condado de Trøndelag. Sempre que na E6 se cruza com essa localidadezinha, vêm-lhe ao espírito as palavras meigas de Frigga.

– Sabes que na língua dos portugueses, Ole, o nome desta terra significar ler?

Deu para rir. A língua dos portugueses será bem estranha. Ler é um nome insignificante. Uma terreola a meio de lugares realmente importantes. Depois do divórcio, porém, a placa toponímica com esta palavra passou a constituir uma rememoração dura, os portugueses e a sua língua uma gente mais distante e esquisita, aliás, todas as palavras assim analisadas fora do seu contexto uma treta inconsolável.

Mas agora tudo voltou ao seu poiso. A vilazinha deste município de Melthus (com um nome que em português significa ler) despoleta em si o desejo de escrever novos poemas. As palavras ostentam, verdadeiramente, um poder muito seu de chocar e de nos seduzir. Em Ler Ole escreve. Assinalamos, como prova deste facto, este haiku que leva a data de 3 de janeiro de 2018.

Arte do pouco.
O mestre alumia
versos de ouro.

Não pretendemos fatigar quem nos lê com aquilo que o motorista profissional Ole Henriksen rabiscou e que foi recopiando para cadernos progressivamente maiores e mais luxuosos. A confiança e a vaidade são aspetos que devemos relevar nos poetas, sobretudo nos que em circunstâncias dolorosas fazem parturir os seus versos.

É o caso.

Maio.
Rosas bravas junto ao mar,
rochas castas, húmidas.

Aveiro (Portugal), 19/05/2019

Sangue e alcatrão.
Três cerejas esmagadas,
luta de pardais.

Guarda (Portugal), 20/05/2019

A toutinegra
no parapeito.
Coração de mármore.

Malmö (Suécia), 06/06/2019

Este malmequer.
Em torno do sol, leves,
pétalas voam.

Costa frísia (Países Baixos), 21/06/2019

A borboleta.
sobre o rosto da luz
escrita pura.

Oslo, 06/07/2019

Noite de verão.
O lume das paredes
morde as costas.

Jaén (Espanha), 20/07/2019

Pancadas do sino.
Às vezes o coração
frio bate.

Sevilha (Espanha), 21/07/2019

Deixámos para o fim as derradeiras composições que pudemos ler, à pressa, à puridade, num acesso de curiosidade, numa das certamente poucas ocasiões em que as suas mãos se terão distraído e negligenciado o segredo num aparcamento, em Oppdal.

Valha-nos a amizade de longa data que sustentamos com Ole Henrikson e as nossas (incontroversas) melhores intenções literárias. Contamos, a despeito disso, com a melhor discrição dos nossos leitores.

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