Por vezes, ainda de olhos endurecidos pelo sono, venho ao pátio e quedo-me alguns minutos a contemplar. Vejo as linhas triplas de alta tensão, a fuselagem em movimento de um avião pelo meio delas, o rendilhado às vezes esfiapado, translúcido, das teias de aranha nas cornijas do telhado, as estradas subindo e descendo, curvando, nos sítios que foram e são toda a minha vida.
Pergunto-me se estas linhas não serão elas também uma forma de linguagem, de escrita, tal como o sol, as ervas, ou o próprio vento. Não serão uma forma de escrita cuja decifração depende em grande medida da argúcia dos olhos e do sentido da ocasião em que mergulham na realidade e a veem de outro modo?
A poeta polaca Wisława Szymborska diz-nos que «Duas vezes nada acontece / nem acontecerá. É assim sendo, / nascemos sem prática / e sem rotina vamos morrendo». É uma variante do adágio popular «ninguém nasce ensinado». As formas de comunicação do mundo são um pouco como o falso silêncio do cosmo: depende sobretudo do tipo de telescópio com que o perscrutamos. A nossa inocência cessa no instante em que descobrimos um modo de ler o que se encontra para lá de nós.
No velho e saudoso dicionário de Grego-Português e Português-Grego de Isidoro Pereira, publicado pela Livraria Apostolado da Imprensa, releio na página 283 (terceira entrada da coluna à direita), um dos termos mais belos da língua ática: κάθαρσις, εως – purificação, purgação, catarse, consolação da alma pela satisfação de um dever moral, cerimónias de purificação para os candidatos à iniciação.
A necessidade das palavras antigas recorre nos dias em que nos faltam saídas de emergência. Nos dias em que sentimos falta de um bem maior e precisamos de nos lavar com um sabão profundamente eficaz, e não apenas a pele, mas o olhar, o sentir, a parte de nós onde corpo e espírito se miscigenam e soltam amarras em direção a lugar mais etéreo. Creio que me sentia assim quando escrevi o curto poema «Higiene Diária», incluído no livro Em Nome da Luz e que, à distância, me parece quase uma lista de bens imprescindíveis, um memorando, uma pobre oração: «coisas de que um homem precisa: / dos doze girassóis de van Gogh, / dos quatro Evangelhos, / de sabão rosa».
Ninguém fica igual depois de uma catarse. O preço dessa água, a bem dizer o padecimento e ardura do verbo καθαίρω, é parte do caminho para a salvação. Os gregos (todo o teatro de Ésquilo o ensina) acreditavam que nada na vida se aprende sem sofrimento. E quem aprendeu sente-se profundamente limpo, ainda que poucas vezes perceba ou tome partido do privilégio dessa salubridade.
Hoje, primeiro dia de novembro, regressei a esta parte da casa onde os últimos vasos coloridos alardeiam as suas flores. Gosto de beber o meu café aqui, no recanto que muitas vezes se enche de gerberas e orquídeas, de cravinas e de gladíolos, lírios e jarros amarelos, mas também de funcho, hortelã, salsa, limonetes, lúcia-lima, hipericão, coentros…
Há muito que não vinha. A terra silenciou-se quase por completo. Apenas uns quantos côvados insistem em existir nessa dimensão do belo, habitat de um sem-número de crisântemos brancos, vermelhos, alaranjados, lilases, azuis. Olho-os com a chávena nas mãos, quase comovido. Surpreende-me que neste mês tão baço uma tal flor viceje com júbilo no canteiro do silêncio. O escritor-cardeal José Tolentino Mendonça escreveu num poema intitulado «crisântemos tardios» que «A vida exige de ti ainda mais escuro / um revés, este passo em falso» / uma quantidade de perguntas (…) / alicerces arruinados / diante das soberbas formas».
Até hoje nunca me seduziu particularmente esta planta, cujo nome Gaspard Bauhin e depois dele Lineu quiseram que significasse à letra flor de ouro. Parece-me óbvia a injustiça. É uma flor bela, pese a discreta geometria da sua leve aparição. O vermelho dos crisântemos não fere como o vermelho das rosas, nem entontece como o vermelho dos gerânios. É somente um vislumbre de luz sem perfume, como se aos mortos fizesse uma vénia invisível. E aos vivos também.
Na minha frente a paisagem mais significativa: vinhas desenhadas com precisão, um pequeno palacete entre elas, ao fundo – na orla do espaço – um bosque. Árvores outoniças, bordos amarelos e alaranjados, carvalhos, uma linha de choupos quase despidos a tocar – à distância – o branco, árvores verdes ainda, castanhas, outras atirando ao azul, como os pinheiros nórdicos que alguém aí plantou e me dão agora a sensação de um ar frio vindo de muito longe.
Saí mais cedo do almoço. Não suporto almoços. Os dias de almoço atrasam-me. Estar parado aqui, no meio da viagem, não. As pessoas fazem-me desperdiçar horas, obrigam-me a gostar delas, a preferir o seu bom gosto, a admirar escravamente o seu blush, o seu batom vermelho a combinar com as unhas, o seu decote, a sua joia ostensiva, a sua juventude, a sua perfeição física.
É uma vinha enorme. Homens vêm e vão deslocando-se em tratores ou a pé, com ar de quem sabe cuidar e de como proceder com cada videira. Admiro sem limite a sua sabedoria. Sinto-me intimidado pelo desenvencilhar dos seus gestos, pelo orgulho discreto das suas mãos quando se servem da tesoura da poda. É como se dissessem não existe maior dignidade no ser humano do que a dignidade de trabalhar bem, com limpidez, tocando as velhas coisas com amor.
Detesto as coisas novas. A ciência do digital, a produção de conteúdos balofos, a beleza oca das pessoas falsas e falsadoras. Por isso me penalizam tanto estes encontros, as reuniões sem pontos de ordem, os convívios com gente que deixou de ser gente e se tornou um produto narcísico, hipócrita, corrigido pelos retoques estéticos e elevado à curva sinistra do snobismo.
– Quando casas, Ricardo?
Abandono os almoços – invariavelmente – no instante em que começam as perguntas. Pior do que os detalhes alheios são as perguntas. Hesita-se, duvida-se, responde-se às vezes. Mas as pessoas não escutam. As pessoas agora interrompem os discursos confessionais, porque são extremamente incapazes de não partilharem mais detalhes, mais conteúdos, mais informação cativante das suas existências-fitness.
Gosto de viajar com as janelas do carro abertas, a absorver os cheiros, o ar, as vozes que chegam de fora. Às tantas apanho na frente algo de que gosto e paro. Antes fumava, agora não. Agora limito-me a permanecer em silêncio, a colher com as pupilas, como o rinencéfalo, com a saliva aquilo que o acaso me traz. Este perfume da terra, por exemplo, esta impressão húmida dos musgos sobre os muros de pedra, estes vinhateiros afanados. Cortam os ramos secos e parecem falar sozinhos. Ou talvez conversem com as cepas. Avançam devagar pelos corredores do terreno e expurgam-nos, limpam-no dos excessos, cutilam a lenha pelas vergônteas certas. Depois carregam tudo e avançam um pouco mais. A vinha rejuvenesce.
O escritor José Tolentino Mendonça surge-me pelo meio dos fotogramas deste filme. A sua poesia cabe aqui com delicadeza, com humor, com pertinência. Talvez por ali, onde a neblina inçou de repente, vagueie Deus. Talvez por ali vagueie calado, com as mãos atrás das costas, distraindo-se um pouco do extremo sacrifício da sua solidão. Acredito que vagueie, decerto saturado da beleza e perfetibilidade dos seres que orbitam a maior parte do seu tempo.
– Quando é o casório, Ricardo?
E eu entendo que o Pai Celestial se queira talvez sentar ao meu lado no lugar do pendura, a observar comigo esse postal, a descansar do fastio e da insuportável sensação de que o tempo é simplesmente estúpido quando passa por nós e não nos leva consigo.
Os homens conduzem agora os tratores para outro pedaço da quinta. Invadem-me os ciúmes e uma certa tristeza. Dou uma volta à chave na ignição, o carro responde, despeço-me disto, de Deus, de mim. Esperam-me já noutra parte. Tenho de ir.
Em setembro tudo é melhor cogitou o pintor. Preciso de limpar os telhados, de varrer os pátios, de cuidar do jardim. O pó do mar, o lixo dos turistas e o sol de julho e agosto trouxeram o caos a este meu esconderijo. O homem considerou com devoção o seu ateliê repleto de telas, caixas de bisnagas e pincéis, suportes de madeira e mesas em esquadria. Era um pequeno reino de linhas enfileiradas e cruzadas em fanática harmonia, em aprumo absoluto.
O homem colocou o seu caderno de esquissos sobre a mais estreita das três mesas e por cima do caderno depôs a lapiseira que recebera uma vez das mãos de Giorgio Morandi. Preciso de dar um destino a todos estes estudos. Talvez aproveite algum deles, ou talvez precise de os apagar a todos da memória. Nada de imprestável deve permanecer tempo demais na nossa existência pensou.
Com o homem vivia um gato. Era um animal asseado e silencioso, a quem o dono confidenciava histórias verdadeiras e ocasionalmente poemas por si compostos enquanto pintava ou aparava as sebes, ou aspergia detergente no pano de abrilhantar os vidros.
Com o felino e com o pintor viviam discos de jazz e música erudita, uma biblioteca de razoável dimensão e uma coleção de cachimbos. O homem não fumava, o que não queria dizer que não gostasse de morder a boquilha e de encher-lhe a cabeça com tabaco importado. Imaginava o prazer do lume a incinerar as folhas de Black Cavendish e de poder refastelar-se com o aroma e o paladar enxuto que delas haveria de ascender à saliva prolixa. Era um estranho ser de gostos extravagantes.
Em setembro tudo é mais humano. Preciso de descer ao reduto das coisas, de ir ao banco, de comprar vinho e enlatados, de aparafusar e olear dobradiças, de responder a Picasso e a Pasolini.
Com o homem, o gato e os discos de John Coltrane, viviam três acácias gigantes voltadas para o Mediterrâneo. O homem gostava bastante desta trindade arbórea no alto da ravina onde vivia. Só elas apreciavam o azul como ele sabia apreciar, destituídas de pressa, hipocrisia ou subterfúgios. Olhavam o azul infinitamente e em profundidade, numa, em duas, em três pinceladas imortais. Preciso de fazer as pazes com o azul disse o homem de si para si mesmo.
Setembro vinha no caminho dos dias. Era o seu tempo predileto. Era o tempo ideal para renascer ou assim.
Perto de Siena, nas imediações da pequena e pacata cidade de Montalcino, mantém-se de pé uma abadia beneditina do século 12, com o seu antigo hospital, a sua torre sineira, os seus jardins e pomares, a sua adega e uma cripta onde declaram jazer os restos de São Varínio, companheiro de Santo Antimo, se alguma verdade existe nas palavras do sacristão a quem cabe o trabalho de abrir e fechar as portas imensas do velho mosteiro.
Regressa aqui todos os verões Monsenhor Enzo Montale, instrutor de teologia, astrónomo aprendiz, poeta e praticante de rapel. Consigo vem um par de jovens sacerdotes e um magote de adolescentes ávidos de jogos eletrónicos, isolamento social e gírias urbanas, miúdos perdidos, a nadar nas imediações como no limbo das águas vazias de onde Deus partiu para a criação do mundo. Reclamam, reclamam a toda a hora, porque Montalcino é um vilarejo sem subúrbios, os travertinos de Sant’Antimo não admitem grafitos, os quartos do templo são celas abertas que comunicam para o mesmo corredor ecoante e comprido, ao longo do qual transcorre o odor das madeiras, o cântico da água e a voz altissonante do instrutor.
«Meus caros, tende cuidado com as palavras: o dito dito está. Uma vez saídas da boca, as palavras são como cebolas descascadas. Vão parecer-vos de um modo ou de outro cruas e muito malcheirosas.»
Todos os verões, depois das aulas, os pais italianos chegam à lacónica conclusão de que não sabem o que fazer com os filhos. Não os compreendem e não compreendem em que momento erraram na sua educação, nem vislumbram um modo de emendarem a mão, se é que ainda vão a tempo.
Por isso, enviam-nos a Montalcino na esperança de que o teólogo possa encontrar na vetusta construção medieval algum do material antiquíssimo de que outrora se fabricavam os milagres.
Monsenhor Enzo principia os cursos estivais a meio de junho e fá-lo tão apaixonadamente que os resultados não podiam ser menos dececionantes: já uma meia dúzia de ex-alunos professou votos, muitos optaram por se juntar a instituições de caridade e a associações de animais, quase todos corrigiram o rumo das suas vidas impregnando-as nalguma espécie de sentido metafísico.
Bem gostaria ele de fazer observar com todo o rigor os cartapácios da Ordem, a famosa Regra de São Bento, de a seguir pura e duramente à boa maneira do seu noviciado. Se o fizesse os instruendos seriam chamados para momentos alternados de oração, cântico, jejum, penitência, sabedoria. Seriam acordados às quatro da manhã para se abluírem das máculas novas e passadas, beberiam chá de urtigas, mortificariam o corpo com banhos no rio (o fresco Orcia que flui não muito longe) e envergariam túnicas de burel. Jantariam e ceariam aveia e fruta, rezariam o terço e meditariam nas Escrituras, sem outras distrações que não a simplicidade do mundo campestre e contemplativo.
Mas os tempos são seculares e a disciplina uma área controversa. Aqui apenas as celas são varridas e arejadas amiúde e todos os pertences dos miúdos postos em caixas de pinho, empilhadas e fechadas por correntes e um grosso cadeado onde se desenha o relevo da cruz do santo de Núrsia e as siglas justapostas.
«Possuir é o erro mais grave dos mortais. É-nos dado o privilégio de desenganarmos os olhos, as mãos e o espírito com o que quer que não nasça no firmamento, nas nossas hortas ou no nosso rio. Nem a poesia se possui, porque também ela é uma forma de vaidade.»
Este Monsenhor é um atleta. Sobe e desce ravinas, içando-se e prendendo-se perigosamente por cordas desportivas, enquanto recita aos discípulos, cada vez mais fanaticamente rendidos a si, trechos da Imitação de Cristo de Tomás de Kempis ou poemas de Tonino Guerra. A sua felicidade é o seu gáudio, o seu gáudio é o apresto com que alavanca as jovens almas transviadas pelo futor das cidades ao encontro da luz limpa deste silêncio toscano.
Não afirmamos que seja fácil.
Em todas as gloriosas tarefas empreendidas ao serviço de causas maiores, deparamo-nos com escolhos. É exemplo disso esta Giuliana Buonarroti. Tem 17 anos e pírcingues espalhados por tantas partes do corpo que os não poderemos numerar, salvo despindo-a. Giuliana é das pessoas mais renitentes, mais recalcitrantes, azedas, desafiadoras que transpuseram o lintel das portas sagradas da abadia. Enzo Montale ainda não lobrigou o modo de a conquistar.
«Não estou pra isto, cazzo!»
E reitera-o a toda a hora em palavras, gestos, esgares, acutilâncias, zombarias, delinquentes atropelos à castidade do lugar. Agora mesmo lhe vemos manigantes brilhos metálicos no lugar deixado entrever pelas duas metades descaídas de couro do que se suporia ser um top curto e justo e é um indecoroso desfolhar de rosa incontida, de pele morena e tatuada, de fogo luxurioso e uivante.
Enzo Montale esconde bem os sentimentos. Também esta pequena filha do Criador se há de domar a seu tempo, pois domados foram os leões na caverna de Daniel.
Em Montalcino a brisa estival arrasta consigo o cheiro da cevada, da colza, do trigo enxuto. É a esta grande castidade que o consola de tudo ao final do dia. Talvez muitos outros clérigos hajam nela encontrado refrigério para extirparem, nas noites tortuosas, os brotos do pecado.
Enzo sabe que Satanás nos unta os lábios com mel e sabe que com lubricidade derrama sobre o nosso corpo vencido a sedução mais abrasadora, grotesca e inesperada. Nas pupilas fuzilando no escuro de Monsenhor Montale passa e repassa a tira de cabedal de Giuliana, o decote assanhadamente aberto, o desenho formidável dos seus mamilos acerados por uma espécie da anel. É horrível, é maravilhoso, é um pecado muito grande!
Felizmente ele sabe como desensarilhar todas essas teias da luxúria, todos os liames que inçam sobre a carne e a conspurcam. Monsenhor envergonha-se muito de que essa mesma carne, a sua, tenha quase caído em tentação, escutando ali ao perto o respirar excitado, insone, diabólico, da jovem que tão abertamente o afronta e lhe arremessa olhos cúpidos e sem fundo.
Felizmente o caudal bem-aventurado do Orcia lava todos os resquícios do fogo e das cinzas. Em segredo mergulha nas águas e nu nada do pecado para a santidade, da noite para a madrugada, do tormento para a grande liberdade do perdão.
Oh, a brisa da madrugada é revigorante. Envergando uma túnica de estamenha regressa pelos caminhos de terra e à luz das estrelas ao mosteiro. Ainda vai a tempo das matinas. Tendo acabado de aprender mais uma duríssima lição, sente-se poder continuar a ensinar. Ensinar é o seu caminho e o caminho de Enzo Montale, assim crê, é o caminho da salvação.
É um mar de livros desde a porta. E a seguir a esta primeira está outra porta, para lá da qual um novo oceano de títulos pesa e alastra. Entra-se e fica-se de cabeça aluada, derramando a atenção, de alto a baixo, sobre coisas tão vagas e exóticas como num ervanário. E são elas fólios com dezenas e centenas de anos, amarelando sossegadamente num poiso quieto, títulos puídos, ultrapassados, mais do que as capas ou as folhas, pela imisericórdia das modas.
De aqui ou dali, pendulando a barriga farta, assoma Ezequiel, sempre com os óculos caídos sobre a cana do nariz e o lábio dobrado em jeito de quem pensa em contas, resmungando coisas meio para dentro, meio para fora e a conhecer-nos o gosto pela livralhada, a sondar já o modo de impingir a última novidade.
Aqui perco-me em geografias e dinheiro. Compro às cabazadas. Outra coisa é que seria de espantar. O alfarrabista é um tipo de homem misterioso. Nunca diz como consegue o impossível. Porém consegue-o. E o impossível é o pretexto para fazer chegar mais longe a sua magia. Ezequiel é, por isso, uma espécie de feiticeiro, com quem sustento uma relação com tanto de amigo como de nevoento. Talvez um dia me venha a convencer de ele que é apenas um homem gordo, habilidoso, fanático das primeiras edições.
Apareço-lhe à porta por causa da última edição de Herberto Helder, aquela coisa que veio numa semana e esgotou.
«Esses fideputas da Assírio fizeram três mil e estão a tratar de meter fome ao povo para se atirarem a uma edição maior. O gajo não publica há quase dez anos… O que é que esperava?»
«Mas ó Ezequiel. E se a coisa não é reeditada?»
«Mesmo que seja? Já não é a mesma coisa. A primeira edição é sempre a primeira. A segunda vale metade ou nem isso. Não digo agora, mas no futuro… Mas não se preocupe que ela volta…»
«Está bem, mas isso é você que o diz. Eu queria era o raio do livro. Importa-me cá se é primeira ou segunda edição.»
«Deixe estar que qualquer dia começam a aparecer-me na loja coisas em boa estado e eu guardo-lhe uma! Em contrapartida, olhe-me esta beleza!»
E logo as mãos papudas puxam uma edição encadernada de doirados e capa dura do Amor de Perdição. Abre-a com cuidado para fazer saltar um bilhetinho, grafada com aquela maravilhosa caligrafia do século XX, onde lê na folha de rosto:
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Para a benquista senhora Eloísa,
Pondo em cada uma destas linhas o muito que lhe quero, e que nestas páginas enxergue o quanto o insano amor pode no bem e no mal.
Seu, Eleutério Emanoel, Natal de 871
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Uma vaga tristeza apodera-se de mim. Que os livros o consigam não é razão para surpreender, de tal modo ficam impregnados de nós. O amor que lhes temos, com que os estimamos, de que lhes extraímos luz e fogo transforma-se, porém, num achado solitário e pungente quando vindo do passado, cativo numa orfandade de nomes e afetos e que se semelha a uma casa em ruínas, despojada da sua gente e da sua razão de existir.
«Acabam em tipos como eu e noutros artistas como você… não tenha pena. O que há mais por aí é lixo. Só me dói é pensar que relíquias destas vão parar às mãos erradas e ficam entaladas em paredes para imbecis de cachimbo.»
Mas há ainda outra coisa que me esmaga a garganta. Ali, naquele recheio de nomes, de vidas peneiradas de filosofia, estética, poesia, amor, literatura, anda a sensação de vanidade de que não gosto nem de me acercar um milímetro:
«Eh, pá, Ezequiel. Tanto tipo que escreveu alguma coisa. Tanta obra-prima para armazém e ninho de pó. Já viu o que é ter uma vida inteira investida num logro?»
«O quê? E pensa você que estes tipos valem todos o mesmo? Há-os aí ao pontapé, tipos como os que agora andam de congresso em congresso, a papar meninas e a deitar merdas cá para fora… Os gregos é que a sabiam toda. Os gregos é que são sempre novidade… Não se fez mais nada depois deles. Prefiro um verso de Homero que todos os livros desta tropa de agora. Quando me chegam à loja com as merdas deles atiro-as ali para o monte.»
Lembra-me um sátiro este Ezequiel. Um histrião a bambolear as ideias sem pejo. E por isso, um tipo honesto que escreve duas coisas tem mais dia, menos dia de sujeitar-se-lhe ao julgamento. Tem de levar com a vergasta enquanto pode, enquanto valha a pena.
«Ó Ezequiel! Você não grama nada aquilo que se publica hoje. Já leu algum dos meus livros? Presume-os assim tão maus?»
«Vá-se foder. Se está à espera que lhe elogie os livros veio bater à porta errada.»
«Calma. Espere lá. Como a um amigo. Do alto da sua autoridade de homem de livros, acredita que se aproveita alguma coisa na minha escrita?»
Roda nos pés, faz-me sinal com um dedo para que o siga e entre os corredores do seu bazar apinhado, claustrofóbico, o nédio homem aponta-se por fim um canto onde se organizam em pilares obras de um sem número de poetas, com Píndaro, Teócrito, Safo, Homero, Alceu e outros irmãos de Antiguidade à cabeça. Salta-se de época ao ritmo das estantes. Shakespeare, Rilke, Baudelaire, Whitman, Hölderlin, Pessoa e um fio de incontáveis pérolas vem-se seguindo.
«Estes eu não vendo. São primeiras edições dos melhores. Tenho-os aqui apenas para me lembrar de lhes acrescentar outros que apareçam. Quando tiver alguma coisa que mereça caber aqui, eu digo-lhe amigo! E depois, eu vendo livros. A minha opinião não vale como a de um doutor, não concorda?»
Devo ter mudado de cor, porque a verdade que o é na sua genital aparição faz isso. Logo o Ezequiel, num jeito contemporizador de negociante, emenda:
«Tem algumas coisas de que gostei. Mas é cedo para balanços de vida. Já vê por aqui o que sucede aos bandalhos. Um tipo só é bom quando percebe que não tem nada a perder e começa a pôr nos livros aquilo de que ninguém está à espera.»
Acabo por sair com uma coisa ou duas a que os meus olhos se haviam fixado, coisas tresmalhadas e que não hesitarei perfilhar.
«Se arranjar aquilo, dê-me uma apitadela, Ezequiel.»
«Dou. E quando começar a publicar alguma coisa com jeito, também lhe dou uma apitadela. Como não tenho cá nada seu, suponho que vai no bom caminho…»
E dito isto, atira o bandulho para o interior do seu oráculo, onde não mais tenho tornado, incapaz que sou de assumir um progresso, um avanço, digamos um recuo aos gregos, uma aproximação digna de registo aos mestres. Que o são, nunca duvidei.