Romão

Dr. Mimi
Fotografia de Dr. Mimi

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Foste a única pessoa que conheci até hoje que não matou um único animal. Exceto talvez os piolhos, se os tiveste alguma vez. Exceto talvez as lombrigas… Foste a primeira pessoa a recusar, numa célebre vindimada, a cabidela da minha avó e a provocar o caos nos grandes potes de ferro, onde a galinha acabava de cozer sob a vigilância de minhas tias e progenitora.

‒ Ó minha mãe, o que é que o homem vai comer?

‒ Eu sei lá o que é que ele vai comer! Olha, come um caldo de coibes!

Cheiravas a sabão clarim (nunca me lembro da feição das pessoas, mas dos cheiros sim – fica-me deles a fotografia penetrante e inesquecível): a camisa de linho arregaçada nas mangas, as calças com suspensórios, as socas de grandes tachas douradas nos pés, a navalha nas mãos e o perfume do sabão (será sempre o melhor de todos), como se nenhuma mácula pudesse tocar-te.

Vejo-te ainda, velho amigo, sentado na mesma tampa de cimento do poço, os cães aninhados entre as tuas pernas, os pássaros a comer-te das mãos (bicando por entre os dedos grossos e cheios de cicatrizes), os pintos amimalhados seguindo-te no quintal, a abelha amestrada que exibias com gosto mas sem vaidade. Vejo-te ainda na mesma posição, quieto e profundo, como um apóstolo fora do tempo.

‒ Isto aqui é uma paz… Assim que debe ser…

Porque aquilo ali, a casa do avô, tinha o seu quê de pacífico, entre eucaliptos e carvalhos, caminhitos de terra batida, tanques e regos de água, ervas e nastúrcios, um cento de plantas de todas as formas e aromas… Aquilo ali era uma paz. Vinham os andorinhões e as magníficas pegas-rabudas… Vinham os ouriços-cacheiros e às vezes a raposa… Vinham os soberbos torvelinhos de ar puro dos campos, das magnólias e árvores de fruto de ao redor da casa.

Mas era com a bicharada que te entendias melhor.

Era com ela que partilhavas a alegria do verbo durar. E os bichos pareciam compreender-te, procurar-te, querer-te. Os gatos preferiam o teu colo. Os pardais respondiam aos teus assobios. As borboletas vinham poisar-te na nuca. As pombas gingando o pescoço pareciam dançar para ti. Vejo-te, ainda, sorrindo e fechando os olhos, como um franciscano fora do tempo, enternecido e um pouco doido.

Uma vez vi-te a ajudar um louva-a-deus a pular a parede até à esquadria da janela e a convidá-lo a ir.

‒ Bai lá à tua bida, meu grande tolo…

E o louva-a-deus, como iria um aranhiço, uma formiga ou uma mosca enjaulada, foi.

‒ Bai lá à tua bida, meu grande tolo…

Lá, em casa do avô (onde, tocados pelas recentes modas francesas, subíamos escaleiras no lugar das escadas e nos deliciávamos com a chofagem, que ventilador era coisa que não se dizia), todos te julgávamos c’est fou, um c’est fou adorável, adorável e raro, por causa daquela coisa nas minas.

– Trabalhei acajo quinze anos nas minas de Llombera, em Espanha. Aquilo era duro… quinhentos metros abaixo do chão, ou mais …

Andava já na escola. Quinhentos metros eram dez vezes seguidas o nosso recreio. E sempre para baixo, como num abismo.

‒ Nem as mulas queriam ir… Bem lhe punham bendas nos olhos, mas as coitadas já sabiam pró que iam… Punham-se a dar pinotes…

‒ Ó Sinhor Romão, e as mulas iam lá pra baixo porquê?

‒ Atão? Para ajudar nos bagões…

Não há quem resista a uma boa história contada na primeira, nem a uma boa crónica revista na terceira pessoa. Nós éramos olhos e ouvidos e um nariz. Um bando de miúdos esquecidos das mãos, das fisgas e das caixas de fósforos, caçando imaginariamente o breu e os sons que subiam da terra, aonde tu te entranhavas doze horas por dia, de picareta em punho.

– Depois sucedeu o que tinha de suceder.

– O que sucedeu?

– A explosão.

– Qual explosão?

– Foi um arrebentamento… Um morreu logo. Outro morreu depois. Eu fiquei todo desfeitinho, as tripas bieram cá para fora, mas escapei… Para dizer a berdade, não sei como escapei!… Tiberam de as pôr num lençol. E cum elas assim postas à minha beira fui parar ao hospital… Depois disso nunca mais trabalhei…

Imagino agora, à distância limpa em que os factos se veem melhor, o relâmpago ensurdecedor, o sismo nas galerias do inferno (tábuas esfarrapadas, o elevador avariado, o urro das alimárias), o cadáver e os corpos esfacelados, o sangue espirrado nos filões do minério, o pânico nos olhos imersos em escuridão, em suor e em cansaço, tu levado numa ambulância anacrónica, desde as montanhas até Madrid, moribundo, com as vísceras ensacadas num lençol arranjado à pressa.

Foste a única pessoa que sabia já em miúdo ser uma pessoa única. E eu respirava o cheiro do sabão, sem poder compreender que aquela tua serena brancura ao sol (a navalha nas mãos, as socas de grandes tachas douradas nos pés, as calças com suspensórios, a camisa de linho arregaçada nas mangas, em cima da tampa do poço) pudesse alguma vez ter sido conspurcada pelo horror de uma noite tamanha.

Escrevo para ti, Romão, com saudade. Cada vez mais preso a esse maravilhoso arquipélago formado pelas memórias, intocado e intocável, onde sobressaem rostos e nomes e façanhas. Talvez por compreender cada vez menos este oceano desprezível de dias informes e sem fundo. Tu eras soberbo (um c’est fou) e eu devia-te, devo-te há muito, este texto. Se em algum lado estiveres, um abraço, o meu abraço, velho amigo!

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O campeão

Foto: Carlos Lopes Franco
Fotografia de Carlos Lopes Franco

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Há em todos nós um campeão, um campeão verdadeiro e irredutível, um campeão invencível, para lá dos trastes que nos tornámos (ou nos tornaram), um campeão de calções e berlindes no bolso a olhar pasmado o capador de porcos com a subtração orgulhosa ao alto, um campeão de ditados e contas de dividir, de lágrimas e joelhos esfolados, a correr pelo meio de carreiros de tojo, atrás das melhores cascas de eucalipto para fazer ventoinhas

(alguém acredita que duas casquinhas cruzadas de eucalipto e um pauzito a meio, a intersecioná-las, davam duas horas de brincadeira?),

um campeão cheio de resina no cós e lama nos sapatos, de cabelo muito macio, loiro, atrevido até, sonhando com minas e cisternas abandonadas, a cismar de boca aberta e com um fio de baba a sair-lhe sorrateiro no aspeto que teria um gambuzino

(vê lá se te apanha um gambuzino),

rindo de um riso inequívoco e belo, de um riso maravilhoso com dentes incisivos em falta, de tudo o que fosse inseto e passasse pachorrento pelo meio das mãos, das lagartas peludas aos lucanos 

(as célebres bacaloiras), 

mãos que se intrometiam nervosamente (às vezes, desajeitadamente) nos ninhos dos pardais e se comoviam com o ar esgrouviado dos pintos acabados de nascer, rindo de um mundo que era então muito mais do que tempo e espaço, réguas relógios, um mundo em que tudo se fazia a direito e pelo direito, sem pressa e sem ânsia, apenas pelo prazer de se descobrir e viver.

Há um campeão aí. Um campeão que se está a rir de nós, daquilo em que nos tornámos (ou nos fizeram tornar), um campeão de nariz moncoso, a rir do tipo de ar fino e voz melodiosa que abre a porta de nossa casa e atende o nosso telefone e responde a cada frase com um “Certamente, sôtor!”, um campeão que vem de muito longe e se ri da mulher (das crianças) diante do movimento de acrobata da aranha que desce do estuque

(Jorge, tira-me essa coisa daqui, tira-me essa coisa daquiiiiiiii).

Esse campeão, esse rosto cheio de segurança, de cinco anos, a ajudar a chamuscar o porco, a raspar-lhe o pelo com uma faca velha, afiada numa correia de cabedal. Esse campeão do sarrabulho e das sopas de vinho, a correr outra vez pelo meio dos pedregulhos e das urzes, saltitando como um animal montês, caindo e pondo-se em pé numa fração de segundos, com o coração aos pulos, atrás de grilos e joaninhas, a cantar “Lá em cima está o tiro-liro-liro”

(lá em cima está o tiro-liro-liro,  ⁄  cá em baixo está o tiro-liro-ló…),

é nele que eu penso agora, como num santo protetor, a quem pedisse a especial graça de me sacudir o torpor, de me afastar as ideias amaneiradas, de me exorcizar o mau-humor, de me endireitar as costas vergadas pela escoliose e pela deceção, de me fazer olhar em profundidade a paisagem, sem metafísica (como o Caeiro), feliz apenas, intacto apenas, vivo apenas

(há quanto tempo não olho uma paisagem como deve ser),

o tempo pega-se-nos, apaga os campeões, avilta-nos. Tão limpos e exatos, tão politicamente precisos, e polidos, e doces neste ar de eunucos de fato e gravata

(Querido, não te esqueças do jantar dos Croft; doutor, a reunião com o Secretário de Estado ficou marcada para as dezassete; Jorge, estás proibido de faltar ao meeting amanhã à noite),

o tempo arrasa, aboneca-nos, faz de nós marionetas, uma espécie de homenzinhos de palha para me servir de Eliot

(Jorge, não acho nada bem que andes a falar aos nossos filhos dessas pinderiquices de quando eras garoto),

torna-nos uns velhacos, uns frouxos, incapazes de defender o sagrado quinhão da nossa memória mais acesa

(vê lá, comporta-te, querido, não dês azo a selvajarias cá em casa).

E, no entanto, o campeão continua inteiro, não cedeu só um milímetro, transpira por todos os poros a saúde indefetível dos seres que se não vergam, se não envergonham, se não deixam subornar, boicotar, asfixiar pela cobardia

(estás cá, querido? Vais ao menos a prestar atenção ao volante?),

a correr, a foçar entre os taludes, a agarrar répteis e pássaros distraídos, a observar com minúcia operações e cerimoniais de matadouro, a comer e a beber rijamente feliz, indestrutivelmente feliz, como quando a prova dos nove confirma um cálculo, como quando o coro das meninas ergue brados ao ar, como quando a funcionária em seu auxílio avança com uma vassoura em riste, e nós fugimos, e nós rimos, e nós sentimos o prazer indizível de missão cumprida.

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O último dia é sempre um primeiro dia

Clemens Geiger
Fotografia de Clemens Geiger

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A avenida cheia de gente, gente cheia de pressa, faz-me esquecer tudo. Levo encontrões, pisam-me os pés, olham-me como a um animal ferido (com o seu rasto de morte, largo como um cometa). Mas não me importo. Prefiro assim. Os rostos desfilam vertiginosos, belos, muito belos, horríveis, disformes. Não consigo lembrar-me de nenhum. Só da quantidade. Tantos rostos, tantas histórias, tantos eus engastados uns nos outros, tantos futuros incertos, possivelmente brilhantes, provavelmente encurtados, tantos passados cheios de mossas, tantas cicatrizes escondidas, disfarçadas pelos pírcingues e tatuagens. Da quantidade, sim.

No fim de contas, há o antes e aquele momento em que nos damos conta de que não fazemos diferença nenhuma, absolutamente nenhuma, num mundo repleto de drama, num mundo incapaz de aceitar o drama, num mundo cheio de gente com dramas e absolutamente incapaz de lidar com o drama. Não fazemos falta nenhuma, porra, nenhuma.

O que me fica na memória é a gente à margem, a gente assim como eu, a alimentar os pombos, a gente excluída do caudal, a gente velha, a gente que cisma cada movimento do corpo e o faz rodar devagar, a gente que tem a barba por fazer, a gente que veste casacões de fazenda e rugas descomunais, rugas pronunciadas e verdadeiras como grand canyons, a gente atrelada a cachorros feios e tão sujos que são mesmo uma fotografia, a gente que cheira a óleo e urina e suor e outras secreções talvez secretas.

A avenida é interminável. Todos cabem nalgum lugar. E eu, que me entretenho a não pensar em nada, penso como é engraçado isto de ocuparmos algum lugar, como algures, suspensa num andaime sinistro, há gente-gárgula, como além, no bojo prateado de um boeing, viaja quem sabe o próximo grito da moda, como ali, em frente aos espelhos descomunais das lojas chiques aporta a outra gente, a gente dominadora, a gente a quem se mostra a cabeça subitamente desalojada de chapéus e uma pequena vénia respeitosa. A avenida é interminável. Os vermes têm de esperar a sua vez. Só à noite podem mostrar-se. A noite pertence-lhes. À hora certa os rostos escoarão, trocarão de lugar. Quando a mais ninguém puder pertencer, a avenida há de acoitar estes rostos que olham o vazio e dão de comer aos pássaros. O espaço parecerá maior, desolador, gigantesco. A verdadeira solidão será, portanto, essa.

Mas, neste momento, sou apenas um corpo em movimento, atropelado, empurrado, levado na corrente. Os pés e os olhos esforçam-se por coordenar uma narrativa. A mole de rostos macera, deixa a sua impressão inumana, o seu toque desleal, voyeurista, como se todos fossem um só e um só fosse apenas um sonho. Não consigo lembrar-me de nenhum. Nem sequer da beleza ou da profunda fealdade de um olhar. Aqui sou maquinal e doente como todas as máquinas. Talvez tenha vindo por essa inconfessada razão.

No fim de contas, há o antes e aquele momento em que nos damos conta de que nada em nós é melhor, ou mais legítimo, ou mais perfeito do que nos outros, nestes todos que caminham, reptam, voam diante os nossos olhos. Não fazemos falta nenhuma, nenhuma, porra. E essa é ainda uma outra solidão, uma lídima solidão sem nome, que nos obriga a viver, a pertencer aos gestos, a ser, a durar, a existir para lá de todos os lapsos de memória e amor.

A avenida é interminável. Não sei há quanto tempo me não dou conta de caminhar. Caminho. Limito-me a não pensar. Em breve, terei todo um novo texto pronto. Não sei qual. Definitivamente, não sei.

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Vozes de burro

Fotografia: Antonio Grambone
Fotografia de Antonio Grambone

 

No começo da rua Franquelim Pimenta batia na sola dos sapatos com fúria. E era depois de lhes pôr em cima uma camada bastante de cola industrial, de lhes cuspir uma gosma de álcool e de imprecações, enquanto os olhos iam e vinham, conforme o movimento dos pares de pernas das senhoras e raparigas do colégio.

— Minha menina, ai que rico tacão!

A boca tartamudeava, com os pequenos pregos presos nos lábios. Havia quem se zangasse, quem respondesse ao piropo ordinário.

‒ Malcriado!

Mas o aparato de loiras com as mamas ao léu nos calendários e o garrafão meio escondido entre as pilhas de sapatos e chinelos por arranjar, tinha o efeito de um repelente. O Pimenta ficava na sua. As senhoras e raparigas ofendidas na delas. Tudo em ordem. Quem não queria piropo não passava perto da sua lojinha. Que culpa tem um homem de vir ao mundo com um par de olhos, menino?

O estabelecimento do Pimenta ficava na rua dos artesãos, paredes meias com a carpintaria-funerária Campos Elísios, com as máquinas de costura da Dona Eufrásia e com o botequim do Sr. Maciel Bemposta. Um pouco adiante, na mesma rua, havia uma loja de ceras e santinhos, uma padaria, um garageiro, um ourives, um serralheiro e a farmácia. Tudo muito misturado, tudo enfileirado, comércio para as dores do corpo e para as da alma.

Nessa rua aprendi eu a maior parte dos provérbios que conheço. Por exemplo que “Vozes de burro não chegam ao céu”.

O ditado veio, entre outras, da boca do sapateiro. O artista percebia de quase tudo. Quando lhe negavam uma evidência ou o contrariavam razoavelmente, zurrava logo:

 ̶  Sabe vossemecê uma coisa? Vozes de burro não chegam ao céu!

Alguém lhe punha em causa a soma a lápis de uma conta, alguém lhe atribuía um dito de véspera, alguém lhe negava as virtudes dos rebuçados de Régua, alguém lhe falava mal do Sporting, e o Pimenta, apimentado:

 ̶  Sabe o amigo uma coisa? Vozes de burro não chegam ao céu!

 ̶  Está a chamar-me burro?

 ̶  Tem vossemecê orelhas a condizer…

 ̶  Como?

 ̶  Estou a chamar-lhe burro, jumento, jerico!!!

Se a coisa não passava, se a teima ia mais além, tornava-se o insulto de monta.

 ̶  Ó meu grandessíssimo filho da puta, quer você ver como elas se fazem aqui nesta loja?

E voava a camurça de um sapato, um botim de senhora, uns tamancos…

Houve alturas em que me assustei. O Pimenta, esgazeado, ameaçava um cliente, o cliente raspava-se, o projétil cortava-nos – como uma bateria inimiga, a escassos centímetros da testa ‒ a linha fina do horizonte.

‒ Isto, menino, é uma cambada de burros! Não percebem um caralho da vida… Bem me dizia a minha mãezinha, vozes de burro…

A mochila vinha de arrasto, a pontapé. A escola arrasava: reis de Portugal sim; contas de dividir não; verbos sim; prova real não… De modo que sair dos portões de ferro da escola, dobrar a esquina, escutar o sábio calão do Pimenta era uma alegria, uma cura, uma catarse.

‒ Faça-me lá a conta, Sr. Franquelim…

‒ Ora, deixe cá ver: solas, pomada, … ‒ Como está, D. Etelvina? ‒ berrava de súbito cá para fora; … ora, deixe cá ver: nove e quatro treze e dois dezasseis… e vai um ‒ Olá, Senhor Doutor, bom dia! Como passou? ‒ gesticulava; … ora, portanto, e vão dois…

Conseguia até esquecer os ralhos, as ameaças, os puxões de orelhas, a numeração romana. Nada me dava mais prazer do que excomungar a sala de aula, ouvindo e compreendendo o vivo movimento do mundo. Nada como a genica linguística do Peyroteo do calçado, olá para um, vai tu à merda para outro, cuspo e martelo, como passou, Senhor Doutor para a frente, que rico tacão para trás, martelo e cuspo, sempre assim, o dia inteiro, com o lápis (de papel dizia ele) aninhado na orelha…

A didática não tinha fim. Sabia que um dia me faria falta. Ouvia-se até chegar a casa. Sobrepunha-se mesmo ao barafustar da peixeira com a modista, à política debatida entre o funesto loiro da loja dos penhores e o taxista, à voz dos reformados que atiravam a bisca, às vizinhas que cortavam na casava. Franquelim Pimenta era um professor no seu palco. O calão engrossava.

De modo que uma vez disse na aula:

‒ Foda-se, Severo… És um cagarolas!

O Severo queria copiar o gerúndio dos verbos estrugir, burilar, transcorrer (do alçapão benigno da professora saíam verbos simpáticos), mas tinha medo.

Eu, que me dispunha a ajudar, disse com enorme prestígio gramatical:

‒ Foda-se, Severo… És um cagarolas!

Veio a reprimenda. Violenta, eriçada, húmida de saliva. A sala tremeu desde os caboucos até ao forro de cortiça no teto. Respondi-lhe. Aí não se ficou a mão da professa, que me ficou gravada nas bochechas. Cinco dedos, uns dez anéis, um par de estalos de cada lado ‒ certeiros, sapudos, impressivos.

A minha mãe (que certamente me trataria da saúde) pediu desculpa. Aquilo não se repetiria, Senhora Professora…

‒ Que lhe disseste tu mais, meu tratante?

‒ Chorei, supliquei… O que dói uma colher de pau, senhores!

‒ Que disseste tu à professora, meu carbonário?

Deus furioso exigia a verdade.

‒ Fala, bandido! Que disseste tu à tua professora?

Olhos esbugalhados, gritos, imprecações, a promessa de que o meu pai ia saber de tudo… Considerei. Vacilei. Já chegava de pancada.

‒ Vozes de burro não chegam ao céu…

‒ O quê?

‒ Foi o que eu disse à professora, mãe – confessei por fim, imerso em ranho…

‒ Ah, meu maldito…, meu macareno… Ai, que eu mato-te!… – disse a minha progenitora à beira de uma síncope, enquanto eu fugia, enquanto eu me atirava pela janela à rua, enquanto eu fugia também deste lado da guerra, para procurar abrigo, algures, a meio da terra de ninguém, nalguma trincheira…

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Viagem

Floresta, Norbert Maier
Fotografia de Norbert Maier

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A primeira impressão que se tem no meio da floresta, ao atravessar-se a cortina de luz entre as árvores, é o chapinhar das botas na terra húmida. O desenho da sola fica sotoposto nos carreiros ao longo de caminhos macios de musgo e folhas oxidadas para logo se perder nos pedregulhos duros por onde é preciso continuar. Sobe-se, trepa-se a custo os carreiros dos lobos. As fragas são uma especialidade morosa, exigente. Os pulmões sentem o ar álgido da montanhas. O silêncio pressiona os ouvidos, fá-lo como uma grande bolsa de paz a que se não está acostumado. Dói por isso caminhar, respirar, escutar a ausência de ruído. Algo aqui rodeia permanentemente a cabeça e os ombros, corta a pele, invade as unhas, poisa nos lábios, cai dentro de nós como água num odre vazio.

Atinge-se um ponto alto. Daqui avista-se o desenho acidentado das penhas, o serrilhado da copa das árvores, a linha branca e lisa das neblinas, o vago monótono azul da cordilheira cada vez mais ao fundo. Às costas a mochila pesa mais. A existência, pelo contrário, é agora leve como uma pluma. Em nós, como num envelope selado com lacre, está o instante: no aqui e no agora, vive o eu!

O trilho amplia-se. Vê-se a linha verde do rio. De braços abertos e olhos fechados sentimo-nos querer tombar no abismo. Em nós, como nos pássaros, cresce o apelo da vertigem. Pudéssemos arremessarmo-nos e ir, ir e alcançar o horizonte. Em frente o espaço é uma fronteira. Precisamos de vencê-la. Ela é o intervalo entre nós e nós mesmos, entre nós e – quem sabe –  o nosso deus. Minúsculos e enormes, como as figuras de Caspar David Friedrich, abrimos os sentidos. 

A viagem conduz-nos a um labirinto de antigas veredas. Empilham-se verdes e amarelos e ocres e vermelhos outoniços, acotovelam-se ramos de nogueiras e de carvalhos, ulmeiros, teixos, juníperos, amieiros, zelhas, medronheiros, azereiros, castanheiros, fumega o curso de uma levada. A água é de uma pureza comovente, límpida de tão nova, fria de tão intocada. Desce, corre já, serpenteia a floresta, onde orelhas, antenas, chifres, se voltam na nossa direção. Somos intrusos neste jardim. Aqui pernoitam as derradeiras ninfas, os últimos faunos. Aqui bocas selvagens ignoram a nossa fala e desprezam-na. O curso da água segue até a uma pequena clareira. A primeira cabana recebe-nos. É terrível o efeito desta aparição. Outras mais acima e mais abaixo. O homem aqui está. E eu vim também. Eu estou aqui. Eu, que sempre aqui pertenci, não sou deste lugar. O bafo repete-se. É um aldeamento.

A civilização multiplica a presença de objetos. Um telemóvel toca, vibra, fere a ductilidade das formas. Há casacos coloridos, gorros, luvas em movimento. Risos, vozearia, alguém disparando um flash. O alarido assusta o pundonor do pensamento das árvores. Interrompendo a sua filosofia milenar, as rochas desabam. Um garoto empoleirado num píncaro grita. Esboroado, o instante transforma-se em eco. Adultos furiosos alcançam-no, imprecações, uma bofetada, choro. A maldição humana. Aqui estou.

À noite, entre toros e grossas panelas de ferro fundido, as chispas avermelhadas saltitam. Chia, crepita, estala, rumoreja a lareira. Os outros deixaram-me finalmente. Tenho-me a mim. Trouxe vinho e um caderno. Imaculados, os segundos seguram-me ao nada. A música de Brahms (sexteto de cordas, opus 36) adormenta-me. Penso em coisas. Não chega a ser uma narrativa, somente fugazes iluminações. Logo a penumbra as envolve. Penso em ti. Mas também tu és efémera. Penso numa escadaria helicoidal. Subo e desço à infância. Subo e desço a cada coisa que produzi. Subo e desço ao absurdo. A solidão é o espelho de quem sempre fugimos. O vinho e o caderno são supérfluos. Para que continuo eu a fugir?

Regressa-se. A floresta é hostil. Quem aqui vive não ama quem aqui não pertence. Mas regressa-se a que lugar? Volto-me. Cada pegada que aqui deixei é um fóssil. Eu, que sempre aqui pertenci, não sou deste lugar. Mas a que lugar pertenço eu? Intacta a garrafa, vazio o caderno. O princípio do mundo talvez seja assim…

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Tu partiste, eu esqueço-me de tudo

manhã, Marc Apers
Fotografia de Marc Apers

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A manhã é dolente. Tu partiste. Eu esqueço-me de tudo. Na praceta, as pessoas repetem o dia anterior. Recebo notícias. Os pássaros voam eufóricos sobre os telhados. Alguém diz «Bom dia». Cheira-me a pão torrado. Dou-me conta das extremidades frias, geladas, dos meus dedos. Respondo «Bom dia» a alguém. Podia pensar na operação, em política, poesia, futebol, comida, viagens. Apetece tanto um café. A manhã é dolente. Tu partiste. Eu não penso em nada. «Bom dia, Lopes». Dou-me conta do meu corpo, abandonado sobre o meu corpo. Pesado como um fardo. Dou-me conta que existo, respiro, silvo. Respondo «Bom dia», «Bom dia», «Bom dia», maldição! Partiste. Vais casar. Dou-me conta que nenhum país é mais longínquo do que o casamento. Dou-me conta que todas as minhas mulheres partiram. Que me doem as falangetas, as falanges, os ossos, os olhos, tudo… «A arrogância é a maior das nossas máscaras e a pior das nossas pernas». Tão bem-dito. Tão maravilhosamente esculpido no meu silêncio. «Tenho idade bastante para to dizer, certeza suficiente para me não arrepender, temperamento para não ficar calada. És um equívoco. Melhor, Miguel, vives num». A manhã é dolente. Uma aragem gélida trespassa-me, como o bafo de uma maldição. Sinto a pele arrepiada, as entranhas em lume, o meu nome percutido, repetido, sem sentido, como a pele maltratada de um tambor. «E quem te pediu a opinião?». Cheira-me a alfazema. A limos. Aos ácidos de uma oficina de carros. A luz queima-me os cílios, o rosto, a alma confusa. «Se não fores tão hipócrita como julgo que não és, saberás admitir que me perdeste». E a aragem fria e a luz quente são opostos que incomodam, como indecisões do tempo. Não penso em nada. Nem sequer na castidade da roupa que cheira a sabão Clarim. Nem sequer na beleza difícil do caderno aberto, das folhas vazias, lisas, sem linhas, limpas. Nem sequer na esquadria que se me oferece da paisagem para lá desta janela aberta, de vidros amplos e imaculados. «Como se fosses uma santa, hem…». E as palavras formam nós, encordoam-se em gânglios assustadores, enrijecem, são duras e selvagens como cerdas que fazem sangrar o silêncio. E as gavetas, os cabides nus, os armários sem as tuas coisas, são fossas abissais onde ecoam, como submarinos, as minhas mãos desamparadas. «Como se ele fosse melhor do que eu…». Dou-me conta que existo, respiro, silvo, fumo. Dou-me conta que não pensar em nada é pensar em alguma coisa. Longínquos pensamentos cósmicos, ontológicos. Remotos pensamentos como as remotas estrelas que explodem numa baba inalcançável de ruído e luz. Dou-me conta do tempo. Do leve e cruel e agora persistente chicotear do remorso. «Um dia vais perceber, Miguel», «Um dia vais arrepender-te tanto», «Um dia compreenderás como às vezes se teve tudo e se perde tudo para sempre, Miguel!». A manhã é dolente. Tu partiste. Eu esqueço-me de tudo. Das frases que soam como os imperturbáveis mármores dos sábios. «Sou como sou». Do olhar derradeiro, olhos nos olhos, semente de dor, de deceção, de despedida. «Um dia, Miguel». E fumo. Fumo incontáveis cigarros na manhã de maio, atento ao mundo que gira e se não arrepende de coisa alguma. Preso ao ar que circula e sega como obsidiana os laços minúsculos entre mim e as coisas. Sorrindo sem querer para aquele dia em que, no lugar onde cheira a cimento fresco e grandes pulmões rotativos enchem de ar as galerias, nos vimos pela primeira vez. Os teus grandes olhos azuis! «Ele é o homem certo para ti. Sim, casa-te lá!». Não penso em absolutamente nada. Dou-me conta de mim. «A arrogância é a maior das nossas máscaras e a pior das nossas pernas». Que raio de filosofia. Sempre detestei os sábios e os que imitam os sábios. Cheira-me a canela, a caramelo, a chocolate quente. A manhã é dolente. Tu partiste. Sinto fome, sinto uma fome imensa, uma fome voraz. «Um dia, Miguel». Sim! Seja como for, adeus!

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