Pobrezinhos velhinhos

Nico Ouburg
Fotografia de Nico Ouburg

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As casas dos pobrezinhos começavam ao pé da escola primária. Eram pequenas e coloridas, com portas e janelas sempre abertas e soleiras maravilhosamente gastas, onde se vinham sentar, à vez, os pobrezinhos e os cães dos pobrezinhos. Havia muitos cães diferentes, porque havia também muitos pobrezinhos. Que eram sempre muito atenciosos. Apesar de pobrezinhos, não lhes faltava que dizer quando vínhamos a correr para casa («Adeus, meus meninos!», «Deus vos abençoe, meus filhos!», «Ide com cuidado!»), ou quando, a passo lento, pontapeando o invisível, meditabundos, desprovidos de vontade, regressávamos pela manhãzinha à escola («Bom dia, meus meninos!», «Aprendei muito, filhos!», «Portai-vos bem!»).

Aflorava-lhes frequentemente uma lágrima ao canto do olho. Já então reparava muito nisso. Porque os pobrezinhos, na sua maior parte, eram também velhinhos. Sem reforma (e, portanto, não engrossando a mole da «peste grisalha» que se abateu sobre o país, segundo o augusto deputado Carlos Peixoto). Sem reforma, mas com aquele olhar vago que os velhinhos pobrezinhos normalmente exibem quando não pensam em nada e pensam em tudo.

Além da lágrima, havia o catarro. Porque essas almas boas se punham a falar, por cima dos muros, para os vizinhos, dos netos ausentes. Diziam, por exemplo «Tenho lá em França dois da idade destes rapazitos». Ou «A minha Laurinda tem lá um tratante como este aqui!». Ou «Vêm agora nas férias. Que Nossa Senhora mos traga direitinhos!»

Os pobrezinhos velhinhos possuíam, ainda, cada qual, a sua mulher. Que era uma velhinha de lenço preto na cabeça, sentada numa cadeira, com um ar tão calado e fixo que, ao meditar as cinquenta ave-marias do terço, lembrava um coelho a ruminar alface. Ao contrário dos maridos, as velhinhas não diziam coisa nenhuma, como se os seus olhos
indiferentes e baços nos não pudessem alcançar. Eram a imagem mais próxima do que mais tarde chamaria tristeza. Uma tristeza que se colava à pele e que transportávamos muitos metros, até que o canto de um grilo, o cheiro do pão fresco ou a súbita aparição das amoras num silvado nos distraía de novo.

Enquanto caminhávamos (a pé, fizesse chuva ou fizesse sol), gostávamos de contar histórias uns aos outros. Às vezes trocávamos segredos. Dizíamos muitas mentiras. Que eram um compêndio de pura amizade e lírica dissertação sobre os sonhos. Todos queríamos muito ser alguma coisa. Ser alguém. Aliás, era o que os velhinhos pobrezinhos nos recomendavam em primeiro lugar. «Estudai muito para serdes engenheiros, meus filhos!». Ou «A barriga é a casa melhor, a cova a que dura mais e a escola a mais importante!». Ou ainda «O que agora aprendeis ensinai um dia no dobro!»

Estas frases intrincadas eram ditas sem solenidade. Porque os velhinhos, de foice em punho, ou munidos de uma tesoura da poda, filosofavam ao mesmo tempo que aparavam os galhos de uma macieira ou podavam as vides. Eram ditas com uma tal sinceridade que o tempo não foi capaz de as engolir. Nem sequer soterrar com frases mais elucubradas, vindas dos cartapácios de Wittgenstein e Heidegger, Russell e Popper.

Quando um destes amáveis homens desaparecia e a porta e as janelas de sua casa se fechavam num silêncio de tapume, os nossos passos arrastavam-se mais. Era a melancolia a despontar. Sentíamos uma pena enorme. Porque naquele bocado do caminho se acabava um pouco do sol que nos iluminava a alma e nos fazia viajar com alegria. E a alegria era uma palavra com peso. Porque nessa época ser-se alegre era o mesmo que ser-se saudável. E os velhinhos pobrezinhos, quem havia de pensar, tinham a sua quota-parte de responsabilidade na nossa saúde!

O último desses exemplares de excelente humanidade deixou-nos há dias. Espantei-me da sua longevidade. Tão velhinho que dois dos cinco filhos o tinham antecedido na morte. Tão pobrezinho (o dinheiro é sempre pouco neste país de pobres) que o seu último desejo, contaram-me, era chegar ao tempo do vinho doce e poder beber dele um copo! E nem isso lhe concedeu o destino! Avaro destino, o dos pobrezinhos! A sua casa, colorida, escassa, com as suas árvores de fruto, o seu muro pequeno e muito branco, lá ficará em silêncio. Com a porta e as janelas fechadas. A soleira muito gasta. O cão triste e latindo. Sem perceber como pode o destino ser tão cruel para certas criaturas.

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Do velho hábito de cuidar dos velhos

Anna Kudriavtseva
Fotografia de Anna Kudriavtseva

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Vejo a minha mãe a cuidar da minha avó, a colher rapando o fundo do prato, enquanto quieta, como uma garota velha, a minha avó se entregava a esse cuidado, frágil, absorta em nebulosos pensamentos indecifráveis, consoladoramente. O último dos seus vícios: um copo de vinho às refeições. Com a bênção de São Gonçalo de Amarante, cujo báculo estampado no copo alto de asa, parecia tocá-la amigavelmente. Era, na verdade, uma minicaneca. De estimação. Como todos os hábitos e objetos do final da sua vida.

Penso muitas vezes na minha avó. Na sua mudez. Na cegueira. Na paralisia. Penso em como movimentos tão simples, como o de trocar de posição na cama, ou de levantar-se a meio da noite para ir à casa de banho, ou de acender o candeeiro, ou de beber um gole de água lhe eram inacessíveis. Penso no abismo do silêncio, multiplicado pela falta de voz, de imagens, de movimentos. Penso nos seus próprios pensamentos. Em como terá pedido ao seu Deus (em noites furiosamente insones) que a levasse, que a libertasse dessa prisão do corpo e da mente, que a deixasse fora do alcance das palavras que, dentro da sua cabeça, chocalhariam sem piedade, vergastando-a.

Quando algum de nós se aproximava da sua cama (que, com o tempo, se tornou numa espécie de lugar assustador, onde um corpo morria devagar e, vivo ainda, nos ensinava os tortuosos caminhos para a morte) sentia o arrepio que se tem diante de um santo. Puxávamos-lhe o cobertor. Dizíamos qualquer coisa. Despedíamo-nos. E a minha avó emitia meia dúzia de sons guturais, decerto em agradecimento.

O quarto adquirira, igualmente, um cheiro característico. O da caixa dos remédios. O da lixívia. O do sabonete Patti. O do detergente da roupa. O da velha manta de alpaca. O do cartucho dos doces ‒ traziam-lhe sempre um cartucho de doces aos domingos ‒ e o do pão de ló. O das bananas maduras. O da madeira da mobília. O da velhice. Tudo junto. Como uma orquestra de odores desafinada.

As visitas rarearam. Deixámos de escutar-lhe os passos no corredor. Repetir as mesmas histórias, vezes sem conta, com a mão da minha avó poisada na sua mão deixou se ser possível, porque os poucos amigos da minha avó foram desaparecendo. A solidão nos derradeiros meses foi apenas contrariada pelos magníficos esforços da minha mãe e dos outros filhos, que a lavavam, vestiam e alimentavam, entre discursos e censuras começados sempre por um «Ó minha mãe…». Penso muitas vezes nessa solidão. Porque a receio mais do que tudo na vida. Porque essa solidão se transformou na minha definição de inferno. Imerecido, profunda e totalmente, no caso da minha avó…

Quando morreu, ninguém se espantou. A tristeza foi-se entranhando em nós… Não fui capaz de chorar, exceto muitos dias depois, quando na imensidão do quarto vazio compreendi que o lugar de cada pessoa é insubstituível e que a morte (pese os labirintos para onde nos foge a memória às vezes) tem em si, no seu escuro alçapão, um ser definitivo e terrível. «Não, nada será como dantes!»

Revejo os desvelos, as arrelias, os ditos por dizer, a segurança e o conforto desse último reduto, que (como num casulo) embrulharam a minha avó Amélia no fim. Aprendi tanto com a sua decrepitude! Jamais se pôs sequer a hipótese de um lar de terceira idade. Jamais se equacionou outra proteção que não a da casa. Os tempos eram, ainda, os do alto dever de «proteger os nossos velhos». Os ralhos eram manifestações de amor zangado e não de profissionalismo mascarado de amor. As chagas curavam-se com mercurocromo e tintura de iodo. Acordava-se a meio da noite para, como aos recém-nascidos, ser trocada a fralda. Se havia lágrimas no canto do olho da avó, a voz da minha mãe crescia no torpor da casa, «Ó minha mãe, você que tem?», e uma sucessão de chamadas telefónicas (para os outros filhos, para a médica, para o hospital) punha-nos a todos em sentido. Ganhar tempo contra o fim inevitável parecia, mais do que uma obrigação, uma obstinação.

Leio, agora, que o Governo quer punir os maus-tratos contra os idosos. Como se a lei pudesse pela força suprir o que o amor perdeu em força… Como se uma sociedade ‒ como esta, como a nossa! ‒ pudesse, à conta de normativos legais, reaprender a cuidar dos mais velhos. Como se uma cegueira (uma amnésia quanto ao futuro) a tivesse desabituado à ideia de que envelhecer envelheceremos todos e que, assim como fizermos, assim nos farão.

E, por isso, penso. Penso muitas vezes, aproveitando o vago marulhar das árvores nestes dias outoniços de agosto. Como se ainda fosse a tempo de alguma coisa. Penso na minha avó. Penso na minha mãe, metendo-lhe a comida na boca. «Ó minha mãe, você é pior do que uma criança…». Penso nos resmungos da minha avó. Nos sons guturais. No báculo de São Gonçalo que usaria, se pudesse, para dar à minha progenitora um enxerto. E o tempo passou. E é como se não tivesse passado…

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Bêbedos

Eduardo Gageiro (1974, Nova Iorque)
Fotografia de Eduardo Gageiro

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Nesse país cada vez mais intocável e sagrado, havia gente boa e má (como houve e haverá sempre em todas as eras da humanidade) e havia os bêbedos, que eram uma porção à parte, lendários pelas façanhas e pelo sofrimento, cuja postura errante (quase sobre-humana) lhes não permitia caber com rigor em nenhum dos dois braços da balança maniqueísta.

Aprendi a entender-me com eles.

Havia, não muito longe da casa dos meus avós, uma taberna. Que frequentava esporadicamente por se vender nela, além de vinho, aguardente e bacalhau frito, pastilhas elásticas, chupas e cigarrinhos de chocolate. A malta da cirrose e a malta das cáries dentárias encontravam-se ali, por assim dizer, numa associada veneração do vício. As mãos zelosas que despejavam a perdição do fígado em copinhos e copos de quartilho eram as mesmas que nos enchiam as sacolas eufóricas com imperdoáveis gulosices de que ainda hoje sinto uma saudade imensa, especialmente bombocas e chocolates Imperial.

Regresso aos bêbedos.

Havia-os espalhados pelas duas divisórias da taberna. Formavam, grosso modo, dois partidos. Os ruidosos, que batiam cartas e faziam grandes manifestações de poder, os fanfarrões portanto. Nos quais se incluíam os mais populares e célebres, por estarem, por regra, ligados ao Sagrado Coração de Maria e aos PPD. Neles se incluíam muitos dos antigos delatadores da PIDE. Que eram ótimos nas opas vermelhas das procissões e péssimos em casa, aonde chegavam, com o cinto nas mãos, dispostos a bater na mulher e nos filhos pequenos e em quem lhes fizesse frente. Um ou dois destes alegres borrachões foram, já depois do 25 de abril, atraídos ao engano e acabaram com uma faca nas costas. Mas disso não me lembro, por não ter nascido a tempo da epopeia geral e das tragédias particulares. Recordo-mo dos relatos, isso sim, que nas noites de verão, ou nas de inverno, faziam sem grande censura desses tempos de viril combate e ajuste de contas.

Havia, do e por outro lado, os silenciosos. Os ébrios que engoliam solitariamente canecas de carrascão e comiam solitariamente a broa e o fígado com cebolada. Ainda antes da Revolução, costumavam dizer «O Salazar é um filho da puta» e costumavam dizer mal da vida. Mas isto só quando cambaleavam e caíam nas bermas a horas mortas. Alguns, que falaram ainda antes das horas mortas, e que gozavam da fama de vermelhos, foram prontamente internados na Rua do Heroísmo (no Porto), em Peniche e em Caxias. Não tanto para um tratamento alcoólico. Mais para uma saudável cura ideológica, que incluía no seu plano terapêutica pancadaria, tortura de sono e ameaças à família. Julga-se que nestes factos se justificam os narrados derradeiramente no parágrafo anterior.

Menos encarnados, e menos amparados por isso pelos braços da PIDE, muitos destes homens sem prole e patroa caíam onde calhava e ficavam ‒ como bebés ‒ encolhidos até que o dia fosse dia, e o chiar dos carros de bois e o estrépito das socas dos lavradores os despertassem… Conheci algumas destas personagens, assisti, aliás, aos seus pavorosos e (porque não confessá-lo sem hipocrisia) hilariantes trambolhões.

De entre todos os beberrões famosos, o mais extraordinário foi o Manelzinho Cesteiro. Cesteiro nas horas vagas, avinhado nas de expediente. Tinha um rádio. Que era grande e com duas poderosas colunas, uma pega, muitos botões e teclas, uma antena gigante. Aos poucos chegava-nos com progressiva nitidez a festa ambulante («Casei c’ uma velha / Da Ponta do Sol / Deitei-a na cama e o raio da velha rasgou-me o lençol»), cantada a duas vozes, a do Maximiano de Sousa e a do meu bêbedo preferido.

Sentia, então, uma felicidade única. Uma felicidade sem mácula, idêntica à que me chegava da roupa branca no estendal rescendendo a sabão Clarim. Porque era tudo pitoresco. Magnificamente alegre. Divertido. E o Manelzinho Cesteiro, pernas escarranchadas, interrompendo de súbito a marcha, rádio às costas, repetia na sua voz roufenha: «Tornei-a a deitar. / Tornou a rasgar. / Perdi a cabeça e atirei co’a velha de perna p’ró ar». E a felicidade era aquilo: o tijolo estereofónico, a cantarola, o cambalear assustador, a mulher do Manelzinho (furiosa, a vir resgatá-lo do riso público), a voz do Manelzinho a ir-se, sempre bem-disposta, muito fanhosa, repetindo a historieta da velha atirada de perna para o ári do Max: «Ó menina da Camacha, / Diz de mim o que quiseres, / Menos que não tenho jeito p’ra agasalhar as mulheres…»

Não me lembro dos cestos, que eram o seu ganha-pão. Da mulher, que era uma matrona minhota, de buço mais espesso que um bigode, só muito vagamente. Da filharada já pouco sei. Dispersou-se pela Andorra, pela Suíça, pelo Luxemburgo. Lembro-me bem, isso sim, de certa manhãzinha de domingo, quando no regresso da catequese, ouvi este desgraçado homem choramingando. Tinha caído num silvado. Pedi ajuda. Lá o retiraram. A cabeça apareceu cheia de escoriações, as mãos sangrando, a roupa esquálida. Aos fedores da bodega tinham-se-lhe acrescentado o das próprias fezes e urina. Davam-lhe o braço, abanavam a cabeça, repreendiam-na com dureza. Sem rádio, sem cantoria, sem felicidade de espécie alguma, o Manelzinho Cesteiro era tão só uma criatura repulsiva.

A miséria humana julgo tê-la compreendido pela primeira vez. Uma pena infinita fez-me detestar a fraqueza do espírito. O homem gemia. Sem rádio, sem cantoria, sem felicidade de espécie alguma, ia-se. E foi. Tão triste que bebia cada vez mais. E depois dele foram, outros companheiros de sina. Praticamente todos. Inchados e amarelentos, tremelicantes, destituídos da aura que primeiro os celebrizou. Até que por fim também a taberna morreu, emparedada por fileiras de blocos e ervas daninhas. À espera de demolição.

E esses bêbedos não regressaram.

Como sempre sucedeu com aqueles que ousaram quebrar regras, aqueles que secretamente admirei sempre, este punhado de homens regressa às vezes ao meu pensamento. Escuto-lhes a algazarra, os impropérios, as cartas batidas com furor nas mesas de pinho, o derrubar das garrafas, o caminhar trôpego, o rádio, a voz nasalada («Casei c’uma velha / Da Ponta do Sol…»), as mulheres furiosas, as ameaças, os beijos surripiados no meio da rua, tudo. E sorrio.

Aprendi a entender-me com eles.

Habitam cada vez mais esse país longínquo, depurado, cheio de nostálgicas reverberações e ecos, espantosas reminiscências, figuras lendárias, emoções e saudades. Não foram pessoas boas nem más. O tempo libertou-os de toda a absolvição e de qualquer condenação. Eram uma porção à parte. O leitor compreende o que digo. E escute. Escute bem. Em dias de sol, quando a roupa ao sol for um baloiçar de perfume e de ternura, talvez lhe chegue uma voz fanhosa, alegre, de homem aos esses: «Ó menina da Camacha, / Diz de mim o que quiseres, / Menos que não tenho jeito p’ra agasalhar as mulheres…».

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Talvez as palavras nos adoeçam

Jonathan Thomas
Fotografia de Jonathan Thomas

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Não sou, como muitos pensam, bom com as palavras. Sou péssimo com elas. A relação é difícil, cada vez menos pacífica. Como se o nosso amor tivesse terminado. Obceca-me o rigor das definições e dos sentidos. E as palavras obstinam-se num significar autónomo, autómato, automático, como se quisessem sentir por mim o que (real, verdadeiramente) sinto. Como se fossem a minha máscara de gesso. Como se fossem o meu dizer. Como se não houvesse mais EU do que a primeira pessoal verbal…

Detesto este jogo.  

Li e reli há dias O Estrangeiro. Senti admiração. Inveja. Senti o respeito que por instinto se devota àquilo que nos subjuga. Porque o livro de Camus é um tratado de como escrever bem escrevendo com simplicidade. Frase a frase, eloquente e inteligente ‒ simples e sincrético ‒ como o dizer dos provérbios. Ao folheá-lo em duas ou três noites de insónia, ocorreu-me o pensamento de que «Os livros não são folhas mortas, mas palavras vivas». Vivas e capazes de fazer viver…

Ando cansado…

Por mais do que uma vez pensei em desistir. Quando me encontro com velhos amigos alfarrabistas e me sinto perdido nas suas lojas vetustas, entre milhares de edições mergulhadas no esquecimento (na decadência em que caem devagar todas as coisas humanas), pergunto-me qual a razão de tudo isto. Digo, de continuarmos a produzir lixo intelectual. Digo, de ousarmos supostas eternidades. Digo, de sonharmos com melódicas citações em grandes anfiteatros apoteóticos!

Tenho preferido o silêncio…

O mesmo silêncio que amo nos primeiros dias de setembro, quando me é possível caminhar de novo em paz pelas avenidas dos plátanos e das ginkgo bilobas. Quando uma súbita bátega (com o seu trovão solitário, o seu granizo abundante) sacudiu da praia, qual revoada de moscas, os últimos turistas e, ao pisar a areia molhada, luto contra essa orfandade indescritível do tempo que passou sem deixar rasto.

Um pouco de silêncio nunca fez mal a ninguém…

Leio. Tomas Tranströmer, por exemplo. Que no magistral poema «De março de 79» (do livro A praça selvagem) confessa: «Cansado de todos os que chegam com palavras, palavras, / mas sem linguagem / parto para a ilha coberta de neve». Asfixia essa, a das palavras que nada dizem. Ou dizem tudo. Leio, portanto. Em silêncio. Para ver melhor. Para escutar mais longe. Para sentir mais fundo. Tranströmer conclui o seu poema, lendo nos mantos de neve da ilha onde se refugiou pegadas de corço. «Linguagem, e não palavras».

Talvez, enfim, as palavras nos adoeçam.

E com isto chego ao ponto de partida. Não me venho entendendo facilmente com elas. Não me entendem as palavras. De um e do outro lado da nossa comum tentação (quase vertigem) de amarmos o mundo, cresce a desconfiança de que talvez não saibamos dizer afinal o que queremos dizer. É terrível este antevislumbre do divórcio. E quem agora me lê, qual transeunte abismado (ou divertido) com um grande solilóquio, que me perdoe. Falar para os botões pode ser um excelente motivo para uma última crónica. Ilhas cobertas de neve esperam de braços abertos escritores em crise. Sempre melhores ‒ mais tranquilas pelo menos ‒ do que praias ruidosas, cobertas de multiplicadores de som…

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A última vez

Edd Carlile
Fotografia de Edd Carlile

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para a Ângela, in memoriam

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Entrei no hospital dominado pela vertigem da fraqueza, por imagens incontáveis, em ebulição, incapazes de fabricar entre si um único pensamento. Suponho que fiz um esforço, que soube manter-me firme. O maxilar dorido. O coração acelerando. As mãos subtil, sub-repticiamente suando. Disseram-me «Coragem, João». Nos corredores as pessoas choravam. Disseram «Aqui é sempre assim». Uma covardia incomensurável atravessando-se-me nas pernas, nos ombros, nos olhos. Ainda a tempo de voltar para trás, disseram «Ela está tão fraca, João». Depois o espaço ficou curto, muito curto, uma nesga, um braço, uma unha. Depois, como quem num mergulho de apneia, respirei fundo. Depois tu. Deitada, olhos fundos, sumida, lívida, transparente, como uma lua minguante. Que tristeza tão grande.

‒ Estou no fim, João!

A doença. Essa doença maldita. Nem um ano desde que me contaste.

‒ Arrumada, João!

Os meus dedos tocaram os teus dedos magros. Os meus braços apertaram o teu corpo cadavérico. Precisei de aguentar o primeiro embate, de suportar as cócegas no nariz, de descobrir as palavras certas, de absorver oxigénio suficiente. Paulatino, um arremedo de outrora. Tão perto e tão remotos os dias em que discutíamos o Benfica, os livros, os lances da vida…

‒ Estás igual. Estás a mesma de sempre… A mesma, ouviste?

‒ Posso tirar o cavalinho da chuva…

A doença. Essa doença maldita. Faláramos dela. Sabias o que aí vinha, sabias de cor cada exame médico, cada reação, cada porção de ti que se apagaria em cada sessão de químio, cada dia de inferno que se seguiria a cada dia de inferno. Sabias como tudo seria lento e veloz, inadiável e doloroso, fatal e tristíssimo.

‒ Posso tirar o cavalinho da chuva…

Tinha-te prometido um livro novo, vários livros novos. Havia uma próxima vez para as francesinhas. E outra para o teatro. E tantas conversas para pôr em dia sobre tantas coisas irremediavelmente banais e perdidas, como a poesia e o amor e a tua paixão pela fotografia. Tinha-te imaginado com um homem decente, casada, com filhos, feliz.

‒ Ainda tens tanto para viver, ouviste?

As palavras batiam em ti como num cântaro vazio. Cavas. Grotescas. Inúteis. Batiam em ti, mesmo se procurasse (e eu procurei tanto) que não batessem. Batiam em ti de um modo absurdo, como quando as palavras batem e queríamos apenas que acariciassem, que anestesiassem, que mentissem, que mentissem com o seu láudano piedoso. Elas batiam. E eu em pânico, ao dar-me conta que queria dizer «Como pudeste tornar-te tão frágil?». Assustado com o poder sussurrar «Como pôde isto ter acontecido?». Mordendo a língua para calar todas as lágrimas que borbulhavam desde o sopé da garganta. «Como?», «Como?», «Como?».

‒ Esta doença é tramada…

E sorriste. Sorriste do modo como sorrias sempre às verdades. Como quando me disseste uma vez que «Os lençóis são o lugar onde mais se mente», porque «Enquanto o diabo esfrega um olho já o fizemos a um amante, a uma criança ou a um doente». Sorriste do modo como sorrias sempre ao desencanto e à fatalidade das coisas. Do modo como sorrias no fim de me contares sobre as tuas viagens, sobre os teus sonhos antigos, sobre um gasto supérfluo. Sorriste do modo como quando sorrias para dentro, do modo como sorrias aos pensamentos e imagens desencontradas da memória e uma profunda tolerância descia sobre  ti e te aceitavas e sabias que «Tudo passa».

‒ Perdemos tanto tempo com coisas que não prestam… Olha, por exemplo, nunca disse à minha mãe «Mãe, eu amo-te!». Porquê, João?

Porque o tempo nos confunde.

‒ Porque não dizemos às pessoas que as amamos, João?

Porque o tempo nos distrai.

‒ E depois o tempo falta-nos…

Porque nos julgamos eternos. Porque nunca se está preparado para outra coisa que não o agora e para sempre. Porque.

‒ Posso tirar o cavalinho da chuva, João.

E o nariz tremeu. Cócegas, prurido, uma careta imensa. Essa doença maldita. A magreza insuportável do corpo, o crânio despido, o respirar roufenho dos pulmões, as intermitências da razão.  Sabias o que aí vinha. Sabias de cor cada passo de cada passo.

‒ E depois o tempo falta-nos…

Os olhos exorbitados e tristes, tristes e exorbitados como todos os olhos que se despedem. Pequenas frases arfantes, truncadas, cheias de nostalgia, penduradas à boca como um resto.

‒ Estou no fim, João!

Essa doença que continua a doer. Mesmo depois do depois. Mesmo depois.

‒ Estás igual. Estás a mesma de sempre… A mesma, ouviste?

E tu sorriste. Daquele modo como sorrias sempre. Com infinita tolerância, como quem sabe que nunca se regressa de um encontro com a morte. Como quem sabe que ela está à espera, a uma nesga, a um braço, a uma unha. Como quem sabe que o tempo confunde, ainda agora e já. Como quem nos vê pelos nossos olhos, uma porta que deixámos de reconhecer,  o elevador, o parcómetro, as ruas, o céu crepuscular…

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Gosto do silêncio

Antje Woolum
Fotografia de Antje Woolum

 

«Os olhos percutentes encontram os meus. Quem diria que são olhos dormentes? O silêncio. O silêncio. Quando o azul desce, e se transforma no negro chumbado da noite, acende-se sobre ele uma densidade que o protege, e lhe permite continuar a vadiar. Convido-o para o meu quarto, que se desfaz na espuma do texto.»
Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004 (Lisboa, Assírio & Alvim)

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Gosto do silêncio. Gosto tanto do silêncio que aprendi a recusar quase todas as formas de convívio social, incluindo algumas do amor. A arte de me escapulir. A arte de me esgueirar. De contornar a obrigação do alarido. De ter de condescender com o telemóvel indiscreto. De ter de aceitar como um destino a arruaça com a sua música ordinária, a imitação do mau folclore brasileiro, o karaoke deprimente e o interminável festival de verão, os apitos na estrada, a mota que acelera todos os dias na nossa rua às duas e meia da manhã, a televisão aos gritos no apartamento ao lado, o fanfarrão da construção civil, a piada pornográfica, a fulana de voz nasalada, insuportável, o casal que discute a toda a hora, o puto lagrimento… De ter de tolerar todos quantos, a coberto de uma suposta celebração, sem pejo, multiplicam, amplificam, semeiam o ruído. De ter de mostrar boa cara para o altifalante e o megafone. De ter de curtir o palco e a coluna gigante. De me agradar com o fogo de artifício e a summer party, o chinfrim do tambor e, mais tarde, da bateria às mãos do filho do vizinho. De me deliciar com as noites de aniversário e a televisão nos dias de dérbi. De ter de ignorar os infindáveis duches e os tacões de salto alto sobre o teto, as descargas de água e a grita sexual durante a madrugada…

Gosto do silêncio. Do silêncio que me afasta dos lugares e das pessoas da confusão. Do silêncio que me faz caminhar por entre campos, ao longo de várzeas e veredas estreitas, onde o trissar da passarada e o assobio dos insetos, o rumorejo da água nascente e o ciciar do vento tornam cada instante mais íntimo e integrador de mim em mim próprio, purificador, apaziguador, poderoso! Gosto do silêncio. Do silêncio que é uma forma de linguagem, leve e subtil como as coisas que não víamos e vemos de um momento para o outro. O magnífico rendilhado da teia de aranha, na manhã de inverno, na esquina do celeiro, pejado de gotas de orvalho. O ondular enxuto da cizânia, quando as tardes de primavera derrotam definitivamente as chuvas de abril e abrem o coração mais empedernido para o cheiro absolutamente maravilhoso da terra. A ramagem consoladora das figueiras, nos dias inclementes de agosto, junto ao tanque de pedra, quando o calor parece paralisar toda a paisagem e envolvê-la (com os seus pardais de bico aberto) numa sonolência sem fim.

Gosto do silêncio. Do silêncio que lava os areais sofridos, minutos antes do pôr do sol, e nos penetra os poros e os ossos e nos torna da mesma matéria vaporosa do oceano e do horizonte frio. Do silêncio que sopra para lá das dunas e para cá dos lábios calados. Do silêncio que se encontra e nos faz encontrar a sós com os pensamentos mais inacessíveis, como se por ele brotasse a consciência e os pontos cruéis da agulha que nos cicatriza as feridas mais dolorosas.

Com o passar dos anos, venho-me tornando num viciado em utopias. O silêncio é, talvez, uma das últimas (malogradas) utopias do nosso tempo. Desaprende-se, desaprendeu-se rapidamente, a virtude de escutar, de perscrutar, de fechar os olhos e querer a paz. De exigir respeito pelo sossego e pela quietude. De protestar contra todas as formas que atentam contra o silêncio. Como tão bem escreveu Manuel Hermínio Monteiro (numa crónica publicada na revista K, em janeiro de 1992, e que viria a ser incluída em Urzes), «Andam a destruir o silêncio»! Andam a destruí-lo criminosamente, fazendo morta, cadavérica, putrefacta, a letra da lei que deveria proteger-nos de nós mesmos. Andam a destruí-lo, como o fazem com as nossas florestas, com os nossos mares, com a nossa sensibilidade, com os nossos sonhos e ilusões, com a nossa intimidade. Andam a destruí-lo, individual e industrialmente, desde os brinquedos irritantes que fabricam para as crianças aos dispositivos eletrónicos que apitam, avisam, repercutem, tremem, zumbem, estertoram, buzinam, chafurdam de som ao nosso redor a toda a hora…

Manuel Hermínio Monteiro, no texto atrás citado, pergunta: «Num lugarejo ouvem-se os seus respectivos altifalantes e os dos lugarejos vizinhos. Com tal arraial, quem ousa hoje em dia meditar?! elevar a alma a Deus…? e ter a triste sina de levar com uma pancada sonora nos tímpanos das emoções?» Será essa a questão? Reproduzir o ruído para esconder o homem de deus? Para calar angústias inconfessáveis? Para esquecer as origens telúricas, simples, quiçá primitivas?

Andam a destruir o silêncio. Última, desesperada ponte, creio, para o melhor de nós próprios. Como maravilhosamente ensinam Bashô e a meditação budista. Como maravilhosamente ensinam a música e a poesia. Como maravilhosamente ensinam o vento e as noites de solidão deliberada. Andam a destruí-lo. E ninguém parece importar-se muito com isso!

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