Um quadro

Paul Delvaux, A Solidão, 1956

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Quando a noite se parece uma lâmpada acesa, até os lugares feios da cidade se tornam estranhamente acolhedores. Era um pensamento como os outros.

A moça caminhava devagar pelo empedrado. Esse último sacrifício doía-lhe mais do que o corpo que se magoava também de si mesmo. Os homens gostam de ver cumpridas exigências que as mulheres abominam. Ninguém sabe porque lhes pertence a eles o mundo e não a elas. Isto era outro pensamento.

À distância de três ou quatro passos, a porta pareceu-lhe um sumidouro de alegria. A noite é um vidro instável. Umas vezes assusta de tão desprendida, outras exige-nos tudo, quer-nos parte do seu caminho marginal. O doce perfume havia-se já estendido pelo beco, onde somente o fedor do creosoto e o suor do indivíduo dominavam.

A moça considerou o grande relógio no frontão do edifício principal do outro lado da plataforma ferroviária. Faltavam cinco minutos para as onze. Havia tempo ainda. Hesitou. Ele, o tipo imundo, pagava bem. Ela precisava do dinheiro. A lua plena de eletricidade fazia erguer tufos de funcho e de cerefólio no meio das travessas.

Admitamos que a vida é a vida. Quando a noite se parece uma lâmpada acesa, até os lugares mais esquálidos possuem a sua beleza.

A moça bateu com o punho cerrado, mas sem força. Nem era preciso. A porta entreabriu-se em silêncio. Ela entrou.

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Os irmãos

Fotografia de Eugene Zhyvchik

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Os dois irmãos viveram sempre juntos desde a infância. Depois veio a Grande Guerra e separaram-se. Um foi mobilizado, o outro não. No final do outono de 46, reencontraram-se. O antigo soldado vinha perdido, com a cabeça saturada de recordações. Decidiu, por isso, viajar pelo mundo.

O outro irmão, mais velho, mancando sempre, anuiu com tristeza.

– Tonino, assim nunca mais voltaremos à infância!

– A infância de que falas está tão ardida como a madeira desses toros que vês agora em cinzas.

Despediram-se no lintel da porta, sem efusão. O outro foi a pé e de boleia e de novo a pé desde Santarcangelo, seguindo o vale do rio Marecchia até Rimini. Depois desceu o Adriático, atravessou o Mediterrâneo e entrou no Atlântico.

De quando em quando chegava uma carta. O irmão empilhava-as a todas, sem as abrir, numa caixa de medir feijão, adivinhando o que diziam. Também recebia telegramas, que lia de soslaio e que a seguir enfiava na mesma caixa bolorenta, pois era lavrador e telegrafista.

Por fim, Tonino regressou a casa. A idade atingira-o de tal modo que na aldeia ninguém o reconheceu.

O irmão perguntou-lhe simplesmente:

– Vens para ficar, ou vais continuar na vadiagem?

Deram um curto abraço e foram caminhar para os lados da colina do Castelo Malatestiano, repletos de árvores floridas.

– Podes ter visto as muralhas da China e a Amazónia, muita gente, muitas criaturas filhas de Deus, mas não viste nada tão belo.

Apontava para uma enorme ameixoeira toda branca, cujas florinhas sobre as ramagens e sobre o magnífico tronco em forma de P maiúsculo pareciam faiscar. Crescera no meio de um campo onde ambos, muito tempo atrás, haviam tido a primeira grande briga.

– Não, Fedro, nunca vi nada mais belo!

E foi como se a infância de um e de outro trepasse àquelas pétalas e, empoleirada lá no alto, dissesse coisas de inexprimível alegria.

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O sineiro

Fotografia de Larry Costales

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Depois de os sinos ribombarem lá no alto do campanário, os ouvidos ficam a chiar um pedaço após o que o grande silêncio volta a enchê-los com a paisagem ampla do vale do Arno.

Nicolau Ettori é sineiro desde os setenta, vai para cima de vinte anos. Sobe os degraus de granito em espiral da igreja de San Francesco até atingir o céu. Quando o vento seco de sul sopra forte dos lados de Siena, os sinos emitem pequenos gemidos antes mesmo de ele alavancar as cordas. São como faúlhas de som. Como o frémito dos touros prestes a serem puxados para o meio da arena.

O ancião conhece essa linguagem misteriosa trocada nas alturas, no sítio exato onde o aroma do feno fresco, do rio, dos fornos acesos chega aos dorsos de bronze e os faz estremecer. Sossega-os sempre com palavras meigas:

– Calma, meus filhos! Isto é só o vento a brincar por aqui. É apenas a aragem a experimentar-vos a paciência.

E começa o seu ofício com o ímpeto de que são capazes os seus braços. Então, sim, o atroar cobre a distância, os telhados, os campos, as azenhas, o horizonte ao longe, na linha onde bandos de pombos se põem a desenhar círculos velozes, extasiados, repletos de uma alegria doida.

Ettori duvida que Nosso Senhor aprecie um alarido tão ensurdecedor. Pergunta-se se não seria mais belo e apropriado o chamamento simples das flores ou da água ou das nuvens rosadas ao crepúsculo. Uma vez confessou-o a Monsenhor Benito Esposito.

– Não, Nicolau. Isto já não vai lá assim. Deus precisava era de tiros de canhão para acordar toda esta cristandade desmazelada.

Foi a resposta que o sineiro escutou.

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Sombridão

Fotografia de Bernard Tuck

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Era na penumbra que António se esconsava. As sombras – digamo-lo – dão-se bem com a miséria e com a vergonha dos doentes. Foi, portanto, numa das entranhas do casebre que o ancião escutou o chamar da enfermeira.

– Boa tarde, Sr. Paupério!

A voz, rouca de solidão, tardou-lhe, vinha embargada, num fio de água a nascer em fundo de poço.

– Boas tardes!

António tinha a barba por fazer. Rala e com restos secos da sopa, compunha-lhe um ar mais pobre e uma expressão mais triste.

– Então? Como estamos hoje?

António Paupério, velho mineiro, pai de cinco rapazes e de outras tantas moças, não sabia como estava. Hoje era uma palavra tão odiosa quanto as outras, tão pungente como as que lhe dinamitavam o peito.

– Estamos bem, graça a Deus!

E as lágrimas começavam. Era árduo senti-las, dificílimo represá-las, impossível pôr-lhes uma escora no sítio onde batiam mais em pedra.

Um homem acostumado à força da picareta e aos puxões brutais das rodas do sarilho, afeiçoado ao fundo da terra e ao cheiro da pólvora, domado pela treva e pelos acessos da silicose, não entendia como as putas das lágrimas o deitavam assim abaixo.

A enfermeira sorria e falava-lhe com voz mansa, com a pele ternurenta das mãos.

Ele, António Paupério – palavra de honra –, não compreendia porque sufocava.

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Vilhelm Hammershøi

Vilhelm Hammershøi, Partículas de poeira a dançar sob os raios de sol, 1900

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Uma das secretas alegrias ao nosso dispor – aprendi-o apenas na última etapa da minha vida – é a serena beleza da luz nas manhãs em que o sol, sem pressa, sem violência, sem fulgor demasiado, cai no vidro das janelas e o interior da casa se vê, de repente, alcançado por uma espécie de graça indizível em que claridade e sombra acordam paredes, móveis, espaços vazios, papéis caídos no esquecimento, retratos, pequenos sons que concitam uma paz sem palavras, ordenada, casta e limpa.

Sentimos, como nos quadros de Vilhelm Hammershøi, o habitar do silêncio: o branco diáfano das portadas, os caixilhos de madeira, as salas iluminadas pela obliquatura dos fotões, a firme mas dócil presença do infinito exige de nós o melhor de que somos capazes. Sentimo-nos rente a um corpo despido que nos toca devagar e devagar nos despe, obrigando-nos a conhecer palmo a palmo a natureza daquilo que existe ao redor. De alguma forma, como nas paisagens tranquilas de Vilhelm Hammershøi, a luz é um poema prestes a nascer.

Ora, neste tempo de rancorosas traições à verdade, de deserções à justiça, de raivosos ataques à ética, esta pequena paz matinal é um vestígio do Paraíso. Dito de outro modo, é o que nos permite suportar o peso quase insuportável do mundo distorcido e venenoso, pondo-nos a comunicar com algum quinhão intocado da alma, como se dela emanasse ainda o poder e a força que permitem os estremecimentos da pele, ou o simples verde das ervas que cheiram mais alto, das árvores que farfalham mais vivas, do pão e do café que nos aguardam numa mesa impecavelmente branca e inocente. Diria que é uma sorte termos tudo isso, ainda tudo isso – repito – ao nosso dispor.

01.03.2025

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Em casa também se debate literatura

Fotografia de Rafaele Corte

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– Não!

Joachim Meyer disse não como quem decapita o ar com uma espada.

– Não! Existe uma enorme diferença entre ambos!

E pôs-se a atingir com os olhos o canteiro das belas begónias que viriam depois desta neve tardia, a qual fazia pesar os torcidos de ferro fundido que suportavam o vidro da estufa.

– Sempre gostei da escrita de Michael – ripostou Christine. É um homem superelegante e fala bem.

– É uma avelã chocha…

– Oh, Joachim!

– Christine, lês mesmo um tipo que repete metáforas românticas vomitadas há três séculos desde Wordsworth e que não sabe quem foi Wordsworth? Um tipo que cola hífenes para disfarçar a pobreza de vocabulário? Que lê os seus poemas como um gato com um cio, mas incapaz de dar-se conta das redundâncias e da verborreia e de um mau verso «o inverno transforma as paisagens», ou do fedor dos próprios dentes?

– És cruel, Joachim!

O inverno na Baviera não transforma a paisagem, apenas a cutila bastante e a apaga num azedume por vezes alcoólico. Apaga-lhe o tom alaranjado das longas florestas que sobem com o Isar até ao Danúbio e afugenta das bocas o sorriso que teriam outrora os autores das litografias. Aqui o branco não se distingue do branco. Meyer vê o focinho de uma raposa e pensa nas suas begónias sepultados no nada, escuta o crocitar das gralhas e pensa em Schumann, discute com a mulher e sente uma vontade irresistível de beber. O mundo monocromático e gélido é uma merda.

– Existe uma enorme diferença de talento entre Michael e Johann. Uma enorme diferença.

– A tua obstinação. Bolas…

– Johann escreve devagar e bem, com luz, mas sem fogos de artifício, medindo as palavras e colocando-as em ogivas delicadas como um pedreiro nas catedrais.

– Juro, não entendo a tua raiva a Michael…

– É um balofo. Escreve muito e mal, aparelha ideias ocas e anda sempre atrás do aplauso.

Christine olhou a neve. O gentil precipitar dos seus flocos recordava-lhe alguma coisa antiga, repleta de graça e de amor, talvez o incipit de um desses admiráveis contos de Jacob e Wilhelm Grimm.

A literatura é um destino terrível, imbricado de bifurcações, onde facilmente dois companheiros de jornada se perdem. Há sempre o caminho da direita e o da esquerda e nunca se pode saber com um mínimo de certeza o que nos espera do outro lado das boscagens.

O inverno na Baviera não transforma a paisagem. Somente as almas, que lhe perscrutam o branco e às vezes divisam palavras, outras vezes passamanes feios a fingir que o são.

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Duas visões

Fotografia de Luciano Caturegli

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Não resta muito a um homem senão falar das cisas. No desespero, as palavras são tiras de pano embebidas em água fresca sobre uma testa a arder em febre.

Noam Halliday desabafou com um amigo sobre a sua intenção de morrer cedo. Possuía o grande horror de envelhecer sozinho, de ficar como um pássaro desvalido, preso ao seu próprio corpo e através de longos anos de definhamento físico, sem que mãos e olhos bondosos fossem capazes de o ajudar e – mais ainda – de tornar a sua existência suportável até ao fim.

– Não serei um monte de estrume a enojar todos os que forem obrigados a limpar-me o cu e a porem-me morfina nas veias. Não serei um estorvo, Tom.

Justamente Tom Fleetwood era de opinião de que se vivesse a toda a brida, com o pé no acelerador, sem olhar jamais para trás ou para os lados, apenas em frente, entusiasticamente.

A sua experiência de ex-piloto da força aérea tornara-o blindado aos efeitos mesquinhos da visão colateral, porque – mobilis in mobile – o nosso alvo se obtém nas vertigens, em voo picado, em piruetas doidivanas com a adrenalina no máximo.

– Vive um dia de cada vez enão penses tanto, Noam! Se perdes um segundo a pesar, estás feito. És um monte de sucata ardida antes de te tornares, como dizes, um monte de estrume. Não te deixes dominar, homem. Liberta-te!

Mas Noam pensava. A vida não se lhe parecia nada com uma experiência de voo. Nem sequer com uma corrida de cavalos. A vida é uma coisa de caracóis, um fio de baba segregado devagar, como se não déssemos por si e, de súbito, zás, um pé em cima, esborrachando-nos até ficarmos uma nódoa no chão.

Julgamos interessante este diálogo. Não decidimos, porém, o nosso apoio a qualquer uma das duas partes na porfia, ou – se preferirem – em colóquio amigo, em divagar alegórico, em contaminar singelo de horizontes e opiniões.