
.
Esta é uma autoestrada que Ole Henriksen conhece bem.
Sobe e desce a E6 muitas vezes ao volante do seu Scania V8, um camião poderoso de 770 cavalos, atravessando (como agora) túneis pacientes em paisagens montanhosas, pontes ultramodernas sobre abismos azuis, florestas a perder de vista, cobertas boa parte do ano pela neve e por espinhos de gelo, mas também aldeias pitorescas cheias de cor, entre cidades grandes, frias e incaracterísticas, atravessando, enfim, a sua própria memória, repleta de vislumbres e de ecos e de vozes.
Viajar viaja-se de muitas maneiras sabemo-lo todos. Ole sabe-o mais do que nós.
De Trondheim a Oslo são seis horas e meia bem contadas, quinhentos quilómetros para sul, a que se seguirão outros quinhentos em sentido oposto, sem distrações, para transportar tudo aquilo que a espécie humana consegue decompor, embalar, vender e possuir dentro de quatro paredes.
Hoje, por exemplo, é responsável por uma carga de cerveja, toneladas e toneladas dela diretamente para um armazém da capital, que a fará distribuir (não tarda) pelos inumeráveis bares e restaurantes da Grünerløkka.
Ole nem sempre se desloca sozinho. O irmão Bjoern acompanha-o nos trajetos internacionais e não raro revezam-se na condução. Antes dele quem o fazia era Frigga, a mulher com quem casou e de quem se divorciou há não muitos anos.
Frigga era, sem dúvida a companheira ideal. Sabia gerir como ninguém o tempo de falar e o tempo de calar. Erguia no meio do nada uma narrativa, uma lenda, uma memória, uma frase pertinente. E possuía, além de olhos maravilhosamente bem feitos (cor de âmbar), uma voz sedosa, sem crispação e sem veneno. Nunca lhe escutou um ralho, um protesto, uma altercação. Frigga foi a melhor das mulheres e ele, digamo-lo nós sem rodeios, o pior dos maridos. E, por esse motivo, continua a amá-la e a aceitar o castigo penosíssimo de a não ter junto a si.
Bjoern, por seu lado, é um borrachão. Nas vésperas das grandes viagens, é necessário repetir-lhe regras, ameaçá-lo, fazê-lo dormir, vistoriar-lhe os bolsos do anoraque.
Portanto, a solidão não é muito má. A solidão enche-nos de pensamentos e os pensamentos, pese às tantas doerem demasiado, são o nosso modo de sobreviver. Acresce que no interior e no alto de um camião se pode captar, como pelo vidro de um ecrã, imagens que dificilmente se perdem nas anteparas da cabeça. Entre as imagens que aprendeu a valorizar, Ole aprecia o recorte acidentado dos lagos e dos fiordes, as linhas intermináveis de abetos, o dorso descarnado das cordilheiras do leste, especialmente no inverno, quando acima do manto espesso que nelas se acumula bruxuleiam as chamas verdes das auroras boreais.
Aprendeu a ver e aprendeu a escutar. Todas estas e muitas outras coisas em que não reparava vieram com Frigga, com a sua mania de as enfiar em versos.
Certa vez, perto de Esbjerg, na Dinamarca, brindou-o com esta observação:
– Que magnífica praia, Ole! As gaivotas assim todas poisadas parecem o nevoeiro à beira-mar, não parecem? Que estampa maravilhosa. Olha, estou mesmo a imaginar Hokusai ou Ohara Koson a pintá-la…
Para o motorista, as coisas não tinham de parecer-se com nada. Eram o que eram. Não se lhe afigurava muito sério que se dissessem as coisas como Frigga as dizia, sobretudo se por meio de palavras ritmadas, curtas, nada espontâneas.
Noutra ocasião, numa das encostas do Hardanger, saiu-se com uma ainda melhor:
– Para, para o camião, meu querido. Vamos encher os pulmões com o ar frio, enchê-los com o perfume daquele pomar!
Como podia ele parar o camião? As coisas na vida real passam-se de outro modo. Há compromissos, objetivos, prazos a cumprir. Encher os pulmões com o ar frio? Então, para que raio mantinha o ar condicionado naquela temperatura? Por quem, senão por ela, conservava a cabine do Scania tão esmeradamente cómoda, tão dedicadamente limpa, tão perfeitamente climatizada?
– Sabes do que me lembrei, Ole? De um poema de Kobayashi. É assim:
O brilho do sol.
Na carne das cerejas
um moscardo cai.
É um belo poema, não concordas, Ole? Dele ou de Bashô, já não sei ao certo… Mas é lindo! Não achas, querido?
Antes estas palavras soavam-lhe incompreensíveis. Agora já não. Ole Henriksen pensa que é espantoso ter permanecido tanto tempo na obscuridade.
Frigga amava a pintura, a literatura, a música, sobretudo as do Japão, essa exótica nação que ela queria visitar e ele nem por isso. Frigga sabia imensas coisas da civilização nipónica. Partilhava constantemente histórias de artistas, de guerreiros, de tradições, falava de flores, de árvores, de ilhas abençoadas. Reproduzia anedotas, mostrava-lhe gravuras do Fuji, aludia ao budismo, chegou a comprar e a aprender a dedilhar um shamisen. Oh, o som que saía daquela maldita viola!
Tudo isso o incomodava. Preferia que ela fosse uma pessoa normal, uma mulher mais igual às outras, capaz de proferir insultos, de comer fast-food, de aguentar em terra firme a cabeça sonhadora, capaz de o seduzir com insinuações animalescas, obscenas, escatológicas.
Ole fartou-se. Por culpa da sua estupidez, frequentou casas erradas.
Tudo isso regressa agora. O divórcio abriu devagar fissuras enormes, abriu em si como numa lona rasgões dificilmente reparáveis.
Agora que o sol passa, ele vê. Vê dentro de si moscardos entontecidos, cerejas rebrilhantes, o privilégio da ordem e da harmonia. Agora tudo é diferente. Os horários esvaziam-no, o ruído dos empilhadores irrita-o, a comida das estações de serviço provoca-lhe azia e náuseas. Agora tudo é diferente, embora demasiado tarde.
O primeiro haiku ocorreu-lhe justamente numa dessas estações de serviço, em Odda, no momento em que fumava no sítio exato (uma mesa de madeira, sob os troncos combinados de grandes bordos e plátanos) onde o fazia noutros tempos com a mulher.
Era outubro. A oxidação das árvores não lhe passou despercebida. Vieram-lhe à cabeça e depois à boca, quase involuntariamente, os três versos que reproduzimos:
O outono…
Folhas de ouro e rubi
crepitam no chão.
Espantou-se com o jogo de palavras. Depois de urinar à socapa, como gostava depois dos cigarros, repetiu a pequena composição em voz baixa, de si para si, e decidiu apontá-la num caderninho, apondo no final a data e o lugar.
Pouco tempo depois, registou um novo texto:
Cego inverno.
Triste, a água congela
nos olhos.
Ulvsvåg, 22/12/2014
Nesse precioso bloco de folhas foi registando outros poeminhas, que aprecia cada vez mais, que relê amiúde, que a espaços corrige. Não se julga senhor da técnica, mas anima-o a vontade de observar mais longe e mais fundo a natureza empírica dos elementos e de extrair dessa observação a voz de Frigga, como se em vez da sua fosse a voz dela a que dita os haikus.
Abril.
Renascem bosques sombrios:
a luz atravessa-os.
Brémen (Alemanha), 15/04/2015
•
Talhão de papoilas.
O vento medroso
brinca com fogo.
Carcassone (França), 10/05/2015
•
Se ouves o melro,
rejubila.
A tua alma vive.
Cantuária (Inglaterra), 21/06/2015
•
Pasmo jovem…
Olhos e nariz rendidos
à cizânia.
Essex (Inglaterra), 22/06/2015
•
A voz das ervas.
Os pássaros erguem-na
depois da chuva.
Dover (Inglaterra), 24/06/2015
•
Cinzas da luz.
De manhã também em nós
Se acende o riso.
Calais (França), 24/06/2015
•
Mantém na boca
a beleza da noite.
Vãs as palavras…
Antuérpia (Bélgica), 26/06/2015
Ole passou a registar com igual cuidado as palavras que lhe suscitam maior curiosidade e as que considera úteis para a sua escrita. Usa um velho dicionário escolar, onde sublinha a lápis o vocabulário mais apetecível. Dá por si a misturar termos e a lamentar que algumas palavras tenham mais ou menos sílabas do que as necessárias. Também se ofende bastante com a falta de rigor dos colegas de ofício, que estropiam a todo o instante o norueguês e o contaminam por tudo e por nada com empréstimos de outros idiomas. Ole considera muito criticável a preguiça, a mania, a ignorância dos motoristas profissionais em questões de língua materna.
Quanto à sua escrita, talvez decida publicar estas composições num livro. É algo de que se orgulharia, sim. Se o fizer, há de dedica-lo a Frigga, à sua Frigga, à laia de pedido de perdão.
Tristeza.
O lago volta-nos as costas,
a lua foge.
Mjellum/Mjøsa, 30/06/2015
•
Pensamentos.
Água podre e estanque
que urge vazar.
Trondheim, 18/08/2015
•
Prestes a partir,
os últimos pássaros
fecham círculos.
Estocolmo (Suécia), 20/09/2015
•
Silêncio.
Ao longe chocalham
as pedras da montanha.
Bolzano (Itália), 18/10/2015
•
Rio e mar drapejam
o mesmo azul.
Pulmões inchados.
La Coruña (Espanha), 20/10/2015
•
Abre-te na luz
ou no escuro.
Sê nu como um fruto.
Bilbao / San Sebastián (Espanha), 21/10/2015
•
Madrugada.
A brisa espicaça a luz,
meus olhos ardem
Oslo, 23/10/2015
No regresso a Trondheim existe um lugar bendito onde consegue, infalivelmente, descortinar outras variantes da sua poesia. Fica em Ler, um vilarejo no condado de Trøndelag. Sempre que na E6 se cruza com essa localidadezinha, vêm-lhe ao espírito as palavras meigas de Frigga.
– Sabes que na língua dos portugueses, Ole, o nome desta terra significar ler?
Deu para rir. A língua dos portugueses será bem estranha. Ler é um nome insignificante. Uma terreola a meio de lugares realmente importantes. Depois do divórcio, porém, a placa toponímica com esta palavra passou a constituir uma rememoração dura, os portugueses e a sua língua uma gente mais distante e esquisita, aliás, todas as palavras assim analisadas fora do seu contexto uma treta inconsolável.
Mas agora tudo voltou ao seu poiso. A vilazinha deste município de Melthus (com um nome que em português significa ler) despoleta em si o desejo de escrever novos poemas. As palavras ostentam, verdadeiramente, um poder muito seu de chocar e de nos seduzir. Em Ler Ole escreve. Assinalamos, como prova deste facto, este haiku que leva a data de 3 de janeiro de 2018.
Arte do pouco.
O mestre alumia
versos de ouro.
Não pretendemos fatigar quem nos lê com aquilo que o motorista profissional Ole Henriksen rabiscou e que foi recopiando para cadernos progressivamente maiores e mais luxuosos. A confiança e a vaidade são aspetos que devemos relevar nos poetas, sobretudo nos que em circunstâncias dolorosas fazem parturir os seus versos.
É o caso.
Maio.
Rosas bravas junto ao mar,
rochas castas, húmidas.
Aveiro (Portugal), 19/05/2019
•
Sangue e alcatrão.
Três cerejas esmagadas,
luta de pardais.
Guarda (Portugal), 20/05/2019
•
A toutinegra
no parapeito.
Coração de mármore.
Malmö (Suécia), 06/06/2019
•
Este malmequer.
Em torno do sol, leves,
pétalas voam.
Costa frísia (Países Baixos), 21/06/2019
•
A borboleta.
sobre o rosto da luz
escrita pura.
Oslo, 06/07/2019
•
Noite de verão.
O lume das paredes
morde as costas.
Jaén (Espanha), 20/07/2019
•
Pancadas do sino.
Às vezes o coração
frio bate.
Sevilha (Espanha), 21/07/2019
Deixámos para o fim as derradeiras composições que pudemos ler, à pressa, à puridade, num acesso de curiosidade, numa das certamente poucas ocasiões em que as suas mãos se terão distraído e negligenciado o segredo num aparcamento, em Oppdal.
Valha-nos a amizade de longa data que sustentamos com Ole Henrikson e as nossas (incontroversas) melhores intenções literárias. Contamos, a despeito disso, com a melhor discrição dos nossos leitores.