Crónica de dois turrões

Fotografia de Alan Pope

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Desde que a minha mãe partiu a casa é uma armação de tijolos presa por arames. Divido a maior parte do tempo com o meu pai, cujos interesses são sobretudo a horta e os trabalhos manuais. E o meu pai divide a maior parte do seu tempo comigo, cuja evasão são sobretudo a escrita e o sonho de uma casa nova.

Vejo-o muitas vezes de sandálias nos pés, sem peúgas, no meio da hortaliça e do cebolo, mesmo nas difíceis manhãs frias de nevoeiro e chuva. Ou então derreado ao sol, sem chapéu, com um alicate nas mãos, a embeiçar uma dobradiça ou a corrigir as tamis de uma peneira. E eu irrito-me com a sua teimosia, com o olhar que me faz de lado como se estivesse mesmo a dizer-me:

Vai para o raio que te parta.

E preciso de aspirar uma grande quantidade de oxigénio, de escolher melhor as palavras que saltitam na cabeça num modo de peixes na canastra:

Pai, olha o frio. Mete-me umas meias. Calça umas botas.

E ele, barricado em si, cheio de impávida mestria, a consertar a dobradiça, a remendar a peneira, a arrancar ervas dos talhões verdíssimos, a ignorar-me, a fazer de conta que a idade não é para todos, à espera da reprimenda seguinte:

Pai, este sol mata. Põe um boné nessa cabeça, se faz favor.

O tempo apanha-nos quase sempre nas dúvidas metódicas. O carteiro veio? O que havemos de fazer para o almoço? A tua irmã virá aqui mais logo? Quando é mesmo a tua consulta de urologia?

Uma casa com dois homens é um barco sem leme e com dois motores. Parecemos abelhudos porque somos abelhudos. Turramos como bichos teimosos, inflados da certeza de que o outro não sabe o que faz e que se a mãe fosse viva isto piava de outra maneira.

Porém, seria hipócrita não falar de mim.

Muitas vezes paraliso na sanita com o Expresso de há quatro dias nas mãos, a coaptar pedaços de um artigo de economia, a passar os olhos pela revistinha de turismo, a pastar com a palha dos analistas políticos.

Vais demorar muito aí dentro?

E o tom é repleto de sarcasmo. É irritante. Um tipo precisa de paz para apurar as nuances da sociedade, para se informar, para curar o mal da cabeça. Não respondo. Nunca respondo a provocações desta espécie.

Anda-se com o aspirador de um lado para o outro, com esfregões e detergente dos vidros. Mas às tantas cai um verso de cangalhas, jeitoso, precioso, fundamental. Atiro-me ao caderno, escrevo, rasuro, releio, reescrevo, anoto, gloso, divirjo setas entre os versos e as linhas. E é nesse poço de silêncio, quando mais e melhor me sabe o ritmo das palavras, que me atordoa a voz intrusa das coisas práticas:

Vou ao LIDL. Precisas de alguma coisa?

Ultimamente tenho-me perguntado para que serve tudo. Uma casa é um labirinto de tarefas. Há sempre pó nos mesmos esconsos e reentrâncias, nos mesmos rendilhados da madeira, nas mesmas dobras de marfinite dos anjinhos. O sabão da espuma reaparece sempre na mesma cerâmica e sobre o mesmo espelho. Por muito que me acocore para aspirar a base dos móveis e por debaixo das camas, lá me encontra o sempiterno cotão malfadado a obrigar-me a despedir do seu poiso, numa sequência de dominó, edredões e cortinas e caixas com arrumos e sapatos e sapatilhas e chinelos. E há os pratos para lavar, a roupa a estender, o ferro à espera do cesto com calças e camisas, os pátios a suplicar por água, os vasos das orquídeas a exigir manutenção. Uma casa é um cativeiro brutal. De recordações, de objetos, de embrulhos, de quinquilharias e bagatelas que acumulamos por simples deslembrança da vaidade e do vento que passa do Eclesiastes.

E depois há o relógio que oxida tudo. As caleiras, as tubagens, as linhas de raciocínio, a memória.

Pai, a porta do frigorífico!

E ele, como quem não quer a coisa:

Não fui quem deixou a luz do escritório acesa.

E eu a inchar de vingança:

Nem eu quem deixou uma torneira aberta na casa de banho do anexo!

E ele saturado de razão:

Sempre quero ver quando chegares à minha idade, sim, sim.

Contemplo a minha vida. Velho e jovem em simultâneo. Derreado e criativo paradoxalmente. Esperançado e sem fé no mesmo passo. Cismo nos livros abandonados sobre a mesinha de cabeceira, nas muitas viagens que devo à vida, nos projetos esfarrapados pela invernia precoce, na agulha que pulou na bússola das minhas paixões. De repente já não sei quem sou nem no que acredite.

E é por culpa disso que me agrada tomar o pequeno-almoço com o meu velhote. É certo que me repete todas as manhãs as suas façanhas de Don Juan dos tempos da tropa. Mas recompensam-me os morangos frescos, acabados de colher no quintal. Há alturas em que maça escutar pela milésima ducentésima quinquagésima quinta vez a peripécia das faúlhas do comboio que lhe sujaram a camisa branca e o fizeram abortar missão numa conquista romântica para os lados da Trofa. Mas impressiona tê-lo ao pé de mim, a viver com energia autêntica o sopro de Adão, em lugar de estar longe, perdido numa penumbra de corredor, mordido por uma ventosa qualquer.

E a aturar-me. Porque se há coisa que muito me espanta é que haja no mundo quem disponha de paciência para o fazer.

Como disse, de repente já não sei quem sou nem no que acredite. Tiro um café na máquina e desço ao esconderijo. Atiro-me ao computador e ponho-me estas frases à frente. Precisava delas. Por uma ou por outra razão precisava.

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