DO VELHO HÁBITO DE CUIDAR DOS VELHOS

Anna Kudriavtseva
Foto: Anna Kudriavtseva

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Vejo a minha mãe a cuidar da minha avó, a colher rapando o fundo do prato, enquanto quieta, como uma garota velha, a minha avó se entregava a esse cuidado, frágil, absorta em nebulosos pensamentos indecifráveis, consoladoramente. O último dos seus vícios: um copo de vinho às refeições. Com a bênção de São Gonçalo de Amarante, cujo báculo estampado no copo alto de asa, parecia tocá-la amigavelmente. Era, na verdade, uma minicaneca. De estimação. Como todos os hábitos e objetos do final da sua vida.

Penso muitas vezes na minha avó. Na sua mudez. Na cegueira. Na paralisia. Penso em como movimentos tão simples, como o de trocar de posição na cama, ou de levantar-se a meio da noite para ir à casa de banho, ou de acender o candeeiro, ou de beber um gole de água lhe eram inacessíveis. Penso no abismo do silêncio, multiplicado pela falta de voz, de imagens, de movimentos. Penso nos seus próprios pensamentos. Em como terá pedido ao seu Deus (em noites furiosamente insones) que a levasse, que a libertasse dessa prisão do corpo e da mente, que a deixasse fora do alcance das palavras que, dentro da sua cabeça, chocalhariam sem piedade, vergastando-a.

Quando algum de nós se aproximava da sua cama (que, com o tempo, se tornou numa espécie de lugar assustador, onde um corpo morria devagar e, vivo ainda, nos ensinava os tortuosos caminhos para a morte) sentia o arrepio que se tem diante de um santo. Puxávamos-lhe o cobertor. Dizíamos qualquer coisa. Despedíamo-nos. E a minha avó emitia meia dúzia de sons guturais, decerto em agradecimento.

O quarto adquirira, igualmente, um cheiro característico. O da caixa dos remédios. O da lixívia. O do sabonete Patti. O do detergente da roupa. O da velha manta de alpaca. O do cartucho dos doces ‒ traziam-lhe sempre um cartucho de doces aos domingos ‒ e o do pão de ló. O das bananas maduras. O da madeira da mobília. O da velhice. Tudo junto. Como uma orquestra de odores desafinada.

As visitas rarearam. Deixámos de escutar-lhe os passos no corredor. Repetir as mesmas histórias, vezes sem conta, com a mão da minha avó poisada na sua mão deixou se ser possível, porque os poucos amigos da minha avó foram desaparecendo. A solidão nos derradeiros meses foi apenas contrariada pelos magníficos esforços da minha mãe e dos outros filhos, que a lavavam, vestiam e alimentavam, entre discursos e censuras começados sempre por um «Ó minha mãe…». Penso muitas vezes nessa solidão. Porque a receio mais do que tudo na vida. Porque essa solidão se transformou na minha definição de inferno. Imerecido, profunda e totalmente, no caso da minha avó…

Quando morreu, ninguém se espantou. A tristeza foi-se entranhando em nós… Não fui capaz de chorar, exceto muitos dias depois, quando na imensidão do quarto vazio compreendi que o lugar de cada pessoa é insubstituível e que a morte (pese os labirintos para onde nos foge a memória às vezes) tem em si, no seu escuro alçapão, um ser definitivo e terrível. «Não, nada será como dantes!»

Revejo os desvelos, as arrelias, os ditos por dizer, a segurança e o conforto desse último reduto, que (como num casulo) embrulharam a minha avó Amélia no fim. Aprendi tanto com a sua decrepitude! Jamais se pôs sequer a hipótese de um lar de terceira idade. Jamais se equacionou outra proteção que não a da casa. Os tempos eram, ainda, os do alto dever de «proteger os nossos velhos». Os ralhos eram manifestações de amor zangado e não de profissionalismo mascarado de amor. As chagas curavam-se com mercurocromo e tintura de iodo. Acordava-se a meio da noite para, como aos recém-nascidos, ser trocada a fralda. Se havia lágrimas no canto do olho da avó, a voz da minha mãe crescia no torpor da casa, «Ó minha mãe, você que tem?», e uma sucessão de chamadas telefónicas (para os outros filhos, para a médica, para o hospital) punha-nos a todos em sentido. Ganhar tempo contra o fim inevitável parecia, mais do que uma obrigação, uma obstinação.

Leio, agora, que o Governo quer punir os maus-tratos contra os idosos. Como se a lei pudesse pela força suprir o que o amor perdeu em força… Como se uma sociedade ‒ como esta, como a nossa! ‒ pudesse, à conta de normativos legais, reaprender a cuidar dos mais velhos. Como se uma cegueira (uma amnésia quanto ao futuro) a tivesse desabituado à ideia de que envelhecer envelheceremos todos e que, assim como fizermos, assim nos farão.

E, por isso, penso. Penso muitas vezes, aproveitando o vago marulhar das árvores nestes dias outoniços de agosto. Como se ainda fosse a tempo de alguma coisa. Penso na minha avó. Penso na minha mãe, metendo-lhe a comida na boca. «Ó minha mãe, você é pior do que uma criança…». Penso nos resmungos da minha avó. Nos sons guturais. No báculo de São Gonçalo que usaria, se pudesse, para dar à minha progenitora um enxerto. E o tempo passou. E é como se não tivesse passado…

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TUDO GENTE BOA

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Rui Palha
Fotografia de Rui Palha

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Sempre foi um defeito considerável este meu hábito de meter conversa e querer conhecer as pessoas. Não consigo ficar-me pelo «Bom dia», «Boa tarde», «Como está?», «Como tem andado?». Às duas por três, estou a saber a alcunha, a parentela, a história do divórcio, os resultados dos exames médicos, os sonhos de infância de toda a gente. E a compreender, a consolar, a aconselhar, a passar a mão pelo ombro, a dizer «Vai ver que sim! Vai ver que sim!». E a contar algo meu, a explicar que isto custa a todos, a mostrar que não há nada mal nenhum em ser-se frágil, querendo ser-se forte, nas coisas que nos tocam mais fundo.

Sempre fui incapaz de ignorar uma boa história, mesmo se para a conseguir me arrisco a uma reprimenda. Porque é fácil exasperarem-se comigo, pelo tempo que demoro nas lojas, na rua, no gabinete, na sala de espera, no parque de estacionamento. Só para me despedir do colega, da moça do balcão, do amigo reencontrado, do pedinte, do transeunte estrangeiro (de guia turístico em punho).

‒ João, vens?

‒ Já vou, amor! Espera só um bocadinho…

Aprendi este ofício com Maria Antonieta, vendedora ambulante, peixeira, na cidade do Porto, quando lá vivi, nos tempos universitários. Aprendi com esta profissional da psicanálise o costume de ler nos olhos e de entrar, com licença ou sem ela, nos corredores complicados da alma e da cabeça de cada pessoa. Aprendi-a como se aprende o jargão, ou uma anedota, ou um trejeito, ou seja, à conta de tantas vezes conversar consigo, de me rir consigo, de lhe entregar confidências, de lhe escutar outras tantas à puridade.

‒ Olha, olha… O senhor doutor da mula ruça!

‒ Bom dia, dona Maria Antonieta…

‒ Ó caralho, que cara é essa?

‒ Cansaço… Estive a fazer noitada…

‒ Menino, cara de enterro não faz dinheiro! Cara de gente é que é sempre para a frente!

E trepávamos os dois a escadaria íngreme da rua da Bandeirinha; ela, de avental plástico e com a canastra sobre uma rodilha na cabeça, saracoteando as ancas; eu, com o saco a tiracolo e a Teoria da Literatura do Aguiar e Silva debaixo do braço. Enquanto não desembocávamos na praceta, ficava ao corrente da humanidade vizinha: das maleitas e da solidão da dona Esmeraldina, octogenária com filhos mas sem família; dos cornos do Freire, a quem sempre faltou coragem para o suicídio; dos calotes da Magali, beldade da rua que diziam ser acompanhante; da condicional do Francisco Terra, regressado meia dúzia de dias antes de Paços de Ferreira.

‒ Tudo gente boa. Conheço-os como a palma da minha mão…   

E eu, dividido entre as mamas da Magali e o descontrucionismo de Derrida, a aceitar a explicação.

‒ Tudo gente boa… Dava um rim por esta gente, menino… São meus fregueses e meus amigos… Quando for dar aulas, vai ver como se afeiçoa depressa à miudagem…

‒ Sei lá se vou dar aulas…

‒ Ó caralho, que anda você a fazer com os livros?… A passeá-los?…

Aprendi a ir ao fundo das coisas, a deitar a rede onde o parece ser em menor número e miúdo, quase insignificante. Aprendi-o com jeito, com modos, com arte, com a intuição de que por detrás de cada rosto se esconde uma vida, com o respeito que se exige a cada mágoa e a cada miséria.

‒ Ó Xico, fica lá com meia dúzia de chicharros, homem!

‒ Hoje não.

‒ Caralho, se tos dou, é porque hoje vais ficar com meia dúzia de chicharros…

E o Xico anuía, com o cigarro amolecido, barba por fazer e olho inseguro, relampejando a cólera e a aguardente.

‒ Olha lá! Tira-me esse cu do sofá e vai dar uma volta! Deita-me o olho ali à velhota. Ela que tome o remédio. Se precisar de ir à farmácia, diz-mo tu, ouviste? Tira-me esse cu de casa…

E o Xico dizia que sim com a cabeça, agradecia em monossílabos, aceitava um pouco de luz pelos intervalos da sua paliçada.

Fiquei com o costume. Absorvi-o à medida que me foi parecendo ser mais e mais urgente espalhar essa luz por outras humanidades. Porque a humanidade, em geral e decerto em particular, vive como uma toupeira, escavando às cegas e vivendo sem alegria. Sei que irrito, que aborreço, que prolongo um simples encontro casual, uma compra, um pedido de informação, um «olá», num acontecimento, às tantas numa gargalhada, algumas vezes numa lágrima à esquina do olho.

Tenho escutado reprimendas, avisos, ameaças. Tudo porque acredito nas coisas boas que guardamos em silêncio. Porque gosto de viver menos depressa e ir ao encontro da alma. Porque, como a varina, prefiro o ritual da luz, a multiplicação dos gestos e das boas palavras.

‒ Tudo gente boa, menino…

Ela, indo-se embora, deixando um rasto brilhante de escamas no empedrado. E os moradores à janela, a cismar, a fumar, a esperar pelo dia seguinte, pela hora do aceno, do cumprimento, da companhia.

QUANDO OS ETERNOS NOS MORREM

Herberto Helder (Alfredo Cunha)
Fotografia de Alfredo Cunha

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«A morte – diz o canto – é o amor enorme.» Herberto Helder tinha 33 anos quando publicou este verso (em Poemacto) e é irónico que essa mesma morte, ou outra morte qualquer, tenha finalmente levado um tal poeta. Essa mesma morte, ou outra morte qualquer, foi anunciada quatro dias mais tarde a Tomas Tranströmer ‒ se é possível que um poeta morra! Fica-me de memória esta sua meditação de 1983, deixada no poema «Bilhete-Postal Negro»: «Acontece, a meio da vida, a morte bater-nos à porta / e tomar-nos as medidas. Essa visita é esquecida, / e a vida continua. O fato, porém, esse / é cosido em silêncio.» (cito a tradução de Alexandre Pastor).

Quis o destino que assim fosse. Que se falasse de morte, no sentido puro que a morte pode ter, na estação em que a paisagem se enche com o branco imaculado das magnólias, com o matizado azul do agapanto, com o vermelho da amarílis, com os salpicos da serralha e das pascoinhas, com o verde da hortelã e do funcho, com o amarelo veemente do tojo. O espaço é enxuto, luminoso, celebrante. E, contudo, a morte anda-nos na boca.

É sabido o modo como Herberto Helder (nascido no Funchal, em novembro de 1930) e Tomas Tranströmer (nascido em Estocolmo, a 15 de abril de 1931) viveram discretamente, distanciados de certo ruído que lhes obscurecesse a visão do mundo, fiéis à servidão da metáfora com que definiram tão profundamente o ethos e o pathos humanos. Como tão bem notou Pessoa/ Ricardo Reis, «Cada um cumpre o destino que lhe cumpre», e eles, Herberto e Tomas, cumpriram-no, na certeza, na convicção inabalável de que a poesia fosse esse destino.

Dir-se-ia inevitável o conhecimento destes dois poetas. A muitos de nós, leitores-admiradores do seu (diferentíssimo) espaço criativo, tal encontro deu-se no universitário, em curtas seletas e traduções extraídas do Jornal de Letras, em edições muito folheadas e quase sempre sublinhadas por frenéticos lápis de discípulo. De Herberto havia a Poesia Toda, milagre de edição de que nunca consegui um exemplar! De Tomas Tranströmer havia pouca coisa. Inesquecível, porém, o contacto com a pequena recolha que nos era dada em Vinte e Um Poetas Suecos, de que fiz nessa altura, criminosamente, uma edição policopiada. Beleza plástica e contenção lírica, expressão do pormenor, domínio do inefável, brevidade e sentido de humor, eis como me chegou a poesia do psicólogo Tranströmer.

AQUELE QUE ACORDOU COM O CANTO SOBRE OS TELHADOS

Manhã, chuva de Maio. A cidade está calma
como uma cabana. Ruas tranquilas. No céu
troa azul-verde um motor de avião ‒ a janela está aberta.
O sonho onde se dorme de membros estendidos
torna-se transparente. Move-se, tateia
pelos instrumentos da visão ‒ quase no espaço.

(Tradução de Teresa Salema, Vega)

Não me recordo do primeiro poema que li de Herberto Helder. Lembro-me do estremecimento provocado pelo poema que principiava pelos versos «São claras as crianças como candeias sem vento, / seu coração quebra o mundo cegamente. / E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema, / pelo terror dos dias, quando / em sua alma os parques são maiores e as águas turvas param / junto à eternidade.» (sexto andamento do poema «Elegia Múltipla» de A Colher na Boca). Com fervor quase religioso, como tomado pela mesma devoção com que leem alguns os seus guias místicos, fiz-me acompanhar na última década pelo volume precioso Ou O Poema Contínuo. Li-o integralmente vezes incontáveis, certo de que vive ali o génio e o sortilégio do melhor que se escreveu em língua portuguesa em toda a sua já vasta história.

Lenha ‒ e a extracção de pequenas astros,
áscuas. De poro a poro,
os electrões das corolas. Somente no mais escuro
não há nada. No escuro a carne é um buraco
invisual, e o que arde é o pão
no estômago, e nos brônquios
cortadamente
o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência
das imagens. O que toca o órgão mais profundo
do sopro não é a música
nem chama: apenas um dedo de mármore entre
as têmporas como
uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam
a boca, morremos afogados
no espelho, no rosto. E se a loucura um instante
levanta as pálpebras.
A grande válvula do corpo.
A escuridão, a terra.

Tomas Tranströmer (Ulla Montan)
Fotografia de Ulla Montan

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No verão de 2012 senti um fervor idêntico, quando principiei a ler os Cinquenta Poemas de Tranströmer editados pela Relógio d’Água. Não há na poesia do sueco o ritmo torrencial, encantatório, melódico dos versos de Herberto. Há, ainda assim, a mesma subtileza dos silogismos, o poder da imagem, a afirmação da palavra poética num mundo dolorosa, progressivamente mais prosaico. Há a beleza escultural, marmórea, luminosa de verdades que, não raro nos escapam, e que representam o privilégio da revelação e da sensibilidade poéticas.

FURACÃO ISLANDÊS

Não um terramoto, mas um sismo celeste. Turner, bem amarrado, podia ter pintado aquilo. Ainda há pouco, uma luva solitária passou por mim redemoinhando a muitos quilómetros de distância da sua mão. Lutando contra o vento, tenho de chegar à casa que está do outro lado do campo. Como uma bandeira, adejo no furacão. Sou radiografado, o esqueleto entrega o seu pedido de demissão. O pânico aumenta enquanto avanço aos ziguezagues, vou a pique, vou a pique, acabarei por me afogar em terra firme. Que pesado se torna tudo o que tenho de arrastar, o que será para uma borboleta rebocar um batelão! Chego, por fim, ao destino. Um último combate com a porta. Já entrei, já entrei! Agora estou atrás da enorme janela envidraçada. Que estranha e fantástica invenção não é o vidro ‒ estar tão perto e não ser afetado… Lá fora, em debandada pelo campo de lava, uma horda de corredores, vestes insufladas, gigantes e transparentes. Mas eu já não esvoaço. Sentado atrás do vidro, quieto, sou o meu próprio retrato.

(Tradução de Alexandre Pastor, Relógio d’ Água)

É quase manhã quando escrevo estas palavras. O trissar das andorinhas e dos estorninhos enche o espaço. Penso com o espanto de um mortal na complexa roda do tempo. Nos poetas que nos morrem e no quanto lhes devemos. No que dever significa e talvez nem saibamos. Na imprecisão com que se diz morreu o poeta Herberto Helder. Na devastação de se pensar que o poeta Tomas Tranströmer desapareceu. Porque um e outro deixaram seguidores, vagos epígonos, amantes, sementes e metáforas, luz. E talvez pudesse confessar o quanto um e outro trouxeram para dentro do meu coração por vezes despedaçado e maltratado. Ou talvez devesse explicar que a poesia de um e de outro enche uma pequena parte das minhas estantes de poesia, aonde regresso amiúde, como quem pretende converter-se a uma melhor humanidade. Ou talvez pense (pensando melhor) que talvez os poetas morram mesmo e que a morte de um poeta seja talvez a morte lenta da própria humanidade. Talvez pense que afinal não são tantos assim os que se importam e os que têm estantes de poesia em casa. Talvez pense que poucos serão os que regressam a certos livros de poesia como quem regressa a uma fé, ou a uma cela, ou a um certo silêncio impermeável. Talvez a humanidade tenha, finalmente, deixado os seus poetas morrer. E queira morrer com eles e sem eles, numa infinita e incapaz solidão.

DIGA-ME VOCÊ, MEU CARO

Andre du Plessis
Fotografia de Andre du Plessis

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Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, eu desempregado, tu no lar de idosos. Aquela frase soou. Certeira e inesquecível como uma reprimenda.

‒ A ruína é sempre mais feia do que bonita, não lhe parece?

Eu desempregado, tu segurando uma bengala, de pé, com olhos trocistas. Em volta um armazém de corpos tremelicantes e babosos, corpos esquecidos retomando às vezes numa grita desenfreada o caminho das dores e da frustração.

‒ Que lhe parece esta velharia toda?

Eu desempregado, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Eu sem voz, aquecendo as mãos desamparadas de um avô a quem o Alzheimer veio furtar os últimos farrapos de lucidez. Eu acabrunhado, aturdido, com a alma pesando-me na alma, como um cacho de melancolia. Eu atrozmente perseguido pelo inverno de uma ponta à outra ponta das paredes. Eu desejoso de me tornar numa centopeia e de poder esgueirar-me por uma fresta. Eu desempregado, em fuga. E tu quieto, vertical como uma âncora suspensa. Em proa. Agudo como um discurso da consciência.

‒ Já viu bem a miséria que nos espera?

Foi por esta altura que nos conhecemos. Que cruzámos palavras. Que estreitámos a distância. Que aprendemos o preço da amizade. Essa que nos obriga a mentir e a falar verdade e a mentir como só na verdade se mente.

‒ Nem tudo na velhice é forçosamente mau, não acha?

Tu muito sereno. Tu muito contido. Tu muito senhor das palavras que, ditas no momento exato, ficam gravadas para sempre. Tu com um sorriso enigmático, quase de mofa, quase de simpatia, quase feliz, quase pungente.

‒ O senhor parece tão bem disposto!

E as velhotas guinchando, chorando, batendo palmas num estertor de loucura. E os velhos, com os coturnos calçados, com o fio de baba, com a lágrima ao canto do olho, enquanto as funcionárias, sempre com voz estridente, sempre fingindo euforia, vinham meter-lhes a sopa na boca, rapar os iogurtes, acomodar-lhes os travesseiros.

‒ Tem aqui tantos amigos!

E tu sem resposta. Tu mordendo o lábio, cheio de intenção. As sobrancelhas franzindo, aconchegando um pensamento satírico, com vontade de me mandar à merda. Tu incapaz de acreditar na piedade voluntariosa. Tu sereno e belo como um mestre grego. Aproximando-te. Mastigando a verdade. Pondo-me a mão no ombro.

‒ Um dia saberá distinguir tão bem a vida da morte, que lhe parecerá insuportável o tempo perdido…

‒ Como assim?

‒  Lá chegará! Lá chegará…

E eu desempregado, à procura de um norte. E tu desprotegido, à espera do fim. Um de cada lado, agarrados à mesma visão, como as duas serpentes entrelaçadas de um caduceu.

‒ Vejo que é bom rapaz. Pena é não ser lá muito esperto…

Foi, sem dúvida, por esta altura. O frio de novembro estampando-se em todas as janelas, embaciando-as, fechando-as numa estranha obscuridade de cinzas e pó. Eu asfixiando, ajudando uma senhora a erguer-se, outra a sentar-se. Tu aos ziguezagues, atravessando um corredor, saindo para o quarto.

‒ Ou talvez seja mais esperto do que parece… E me julgue tolo!

Foi por esta altura que nos conhecemos. O frio de novembro cobrindo os ossos. As horas caindo na penumbra depressa de mais. A noite caminhando como uma sombra gigante sobre os olhos. Foi assim que nos tornámos íntimos. Cheios de retórica. Irmanados pelo mesmo parágrafo de tristeza e de amor. E nunca pude responder-te. Nem agora que morreste e te levam baloiçando, fechado num enigma de mogno, com a cruz ao cimo, feia e sinistra, brilhando, prometendo a eternidade…

‒ Não é feliz aqui?

Eu desempregado. Tu calado, voltando-me uma última vez o rosto, com aquela última frase na ponta da língua, como a despedir, como a dizer, como a perguntar.

‒ Diga-me você, meu caro: o que é a felicidade?

O ANTÓNIO

Rui Pires
Fotografia de Rui Pires

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Estou a vê-lo, ao pé de mim, a desembrulhar consoladamente caramelos de fruta, sentado na soleira da porta, com as calças arregaçadas, socos nos pés, a tesoura da poda presa à ilharga, numa presilha de couro, como um polícia com o cassetete. Nunca compreendi essa necessidade de ter sempre à mão a tesoura da poda. Nem as calças arregaçadas. Nem os bolsos cheios de rebuçados. Era o seu modo de enfrentar a vida, suponho. Mastigava como um macaco, depressa e de um modo desajeitado, enfiando de quando em vez os dedos na boca para soltar a massa pegajosa que dentro dela rolava e se colava ao palato. A mulher era má. Estou a vê-la também. E a ouvi-la. Esbracejando, insultando o silêncio das oliveiras, ofendendo o conforto demorado do sol. ‒ Os insultos são pedradas às vezes insuportáveis.

‒ O velhote fechava os olhos, igual a um gato mandrião, deixava-se entregue aos pensamentos e ao resto açucarado do último caramelo. Parecia cambalear para dentro de uma redoma. Podiam chegar de fora os piores palavrões, queria lá saber…

Eu gostava muito dele. Além de partilhar as guloseimas, ofereceu-me certa vez uma tesourinha da poda. E uma presilhinha de couro. E uns tamanquinhos com as tachas brilhantes dos tamancos novos. Éramos amigos. Vizinhos, sim, mas amigos! Esbanjava dinheiro como esterco, acusou-o até ao fim a megera. Para ele um amigo está acima dos centavos. Aliás, aprendi a palavra centavo numa das novas conversas. Porque nós tínhamos conversas no intervalo da sorna. Conversas como as que se têm no meio de um ofício. Quando se zangava, e zangava-se de um modo silencioso com a mulher, sempre com a mulher, o velhote ia para o campo e levava-me consigo. Por causa desta coisa de ser amigo de alguém zangado com a sua mulher, sofri também da sua revolta silenciosa e das sonoras imprecações da D. Etelvina, para quem eu era o ajudante.

Ajudante! Uma honra sem limite! Cada um, de cada lado da mesma árvore, cada qual a zelar pela produção, pelo bem-estar do horto, pelo salário da casa. As peças de xisto queimavam os olhos, refulgindo a luz de julho, e eu muito solidário, o xis dos suspensórios imitando o xis dos suspensórios do mestre, a ouvi-lo falar da sua própria meninice, dos tempos incompreensíveis em que se fugia da guerra e se comia uma malga de sopa ao jantar sem mais. Era como um avô narrando uma fábula. E eu como um neto prestes a adormecer no embalo da narrativa. O velhote tinha um jeito danado para seduzir, com uma voz feérica, uns olhos serenos, um riso de malandro! Tanto me ensinava a estacar feijão e pimentos, como a fazer doce de amoras em folhas de videira! A mulher detestava-nos esta cumplicidade.

 ‒ Ó Tónio, rais te partira! 

Escabroso pretérito mais-que-perfeito. Foi com ela que o aprendi. Megera! Estou a vê-la, com olhar impiedoso, a medir as suas rasas e meias rasas de milho, a queixar-se do marido displicente às freguesas do azeite, lambão, preguiçoso; e ele, sem dar cavaco, a regar as cebolas; e eu, atento já ao mundo, a sonhar com o futuro, a querer ser engenheiro, a magicar em tratores e searas de centeio, a semear estradas ondulantes de pão, como as que o velho António me descrevia nas suas historietas do Alentejo natal! As minhas férias ressoavam pelo lajedo à cata de raposa (e nunca o bom do homem quis armar uma esparrela, não fosse o animal cair às mãos erradas), subiam às parreiras para apanhar os aviões de papel transviados (voar era um sonho comum, só muito mais tarde me dei conta), desciam às salgadeiras para provar presunto, entravam nas capoeiras para surripiar ovos de codorniz e das fêmeas de garnisé, abriam os pipos para os lavar do sarro, fechavam os à puridade (debaixo de ordens precisas) armários e gavetas onde se ocultavam tabletes de chocolate amargo, chocolate proibido, francês, vigiado pela patroa até ficar esbranquiçado e incomestível, chocolate que o meu amigo fazia questão de salvar e de dividir comigo! Éramos, em suma, uma dupla! Ele, o mentor, Eu, o ajudante!

 ‒ Ó Tónio, rais te partira!

E o António esquivava-se, levando-me pelo braço até às leiras fofas do quintal, onde acabara de mergulhar os bolbos dos jacintos e das orquídeas. Porque as flores, como os convidados para uma festa, se preparavam então com tempo e com amor. E todo o ano os narcisos, as açucenas, os lírios, as violetas eram um espalhafato de perfume e de cor, atraindo os abelhões e os poetas porvindouros. Tanta memória se me alumia no correr das palavras!

Uma manhã fui parado à saída da porta pelo meu pai. Nesse dia não pude correr para casa do casal de lavradores. Nem nesse nem no outro, nem nos outros a seguir. Palavras de um léxico frio, incógnito, nasciam de todos os lados como ervas daninhas: vascular, cerebral, coma, máquina, defunto, velório, funeral, campa, cemitério. Esperei que o meu pai me deixasse correr de novo para casa do velhote, com a foice no coldre, os tamancos nos pés, livre e feliz como esses pardais comuns que nos escoltavam as caminhadas pelo meio dos campos e dos montes. Passou tempo, demasiado tempo, até que tornei a ver o António; e quando mo deixaram ver, ele tornara-se uma fotografia oval, sépia, encastoada numa lápide onde (havia descoberto já o milagre das letras) o nome ANTÓNIO BRÁS MARRAFA se fazia acompanhar de números e de belas frases odiosas, que não pude senão compreender e odiar!

A quinta tornou-se um baldio gigante. Mais tarde um loteamento. Depois um feio arrabalde de prédios brancos, que se tornaram sujos e degradados. A velha foi levada para o Porto, por uma filha igualmente áspera e azeda. Não soube rigorosamente mais nada acerca da sua existência. De resto, só as palavras a trazem, por defeito, por arrasto, como neste instante, em que fecho os olhos e me deixo embalar pelo suco pegajoso dos caramelos Penha, comprados num dos últimos mercados de café da minha terra. A quinta, que era um paraíso, desfez-se em múltiplos cacos, que não resisto a apanhar. Nenhuma tarefa, nenhuma missão me foi alguma vez dada com tanta dignidade: ser o ajudante, prolongar a memória, coser uns aos outros os trapos dessa vida passada, sorrir, mastigar ao mesmo tempo tantos rebuçados que seja preciso enfiar os dedos na boca para os libertar.

Vale muito a pena! O sol é morno, a luz forte (como no interior de um poema), a redoma bela e silenciosa, indiferente a tudo o mais, como num sonho, como numa história começada pelo «Era uma vez».

CADA UM DE NÓS VIAJA PARA O LUGAR DE TODOS

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Helmut Newton_young woman
Fotografia de Helmut Newton

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No preciso instante em que o autor destas palavras escreve a vírgula à direita, zarpa em direção a um ponto cada vez mais minguado no horizonte um batelão. Nele vai um moço de quem me afeiçoei nos últimos anos, moço generoso, antigo aspirante a um posto na Marinha, com ideias próprias, porém com um desgosto a morder-lhe o coração desde que em Itália, num bordel, conheceu uma dessas mulheres fatais, sicilianas, mistura de sangue latino e mourisco, capazes, como o próprio diabo, de roubar-nos a alma indefesa e de elevar-nos à condição imerecida de mártires. 

‒ Pois então o senhor fala-me de amor? 

‒ Eu falo sempre de amor, meu caro jovem. 

‒ O senhor começa a parecer um poeta… 

‒ E tu começas a parecer-me um bom ouvinte! 

‒ Bem, o senhor diz as coisas de um modo… 

‒ A mim só me interessa perguntar e nunca dar respostas ou ter certezas… 

Lisboa ofende-se facilmente com as opiniões de um velho. Não digo toda a Lisboa, não pelo menos a que atraca aqui, neste antro de gente de mar e rio sem nome, sem passado, sem destino certo. Gente que vem beber aguardente e cismar ao pôr-do-sol, estivadores corruptos, marujos desencaminhados, antigos pescadores de olhos baços, com medo da saudade do mar. 

Uma tarde o moço sentou-se no outro lado da mesa. Vinha bêbado já. A conversa durou menos do que um braço-de-ferro contra um maricas. 

‒ Você aí, com esse ar de intelectual. Está-me a foder a paciência… 

Não respondi. Não foi preciso. Puseram-no imediatamente na rua a pontapé. Meia dúzia de chapadas depois, o moço voltou para pedir desculpa. Mas estava tão bêbado que se pôs a chorar. Chegara de Messina havia três semanas. 

‒ Deixei de acreditar nas pessoas… 

‒ Isso não é uma doença, meu amigo. Isso é a cura! 

No coração do próprio universo, nas cordas incandescentes dos triliões de sóis sobre as nossas cabeças e debaixo dos nossos pés há sempre o rosto de uma mulher. Que ela possa incendiar-nos de alto a baixo, em profundidade, para sempre é coisa que não me surpreende. Sou já tão cheio de idade que todas as histórias diferentes me parecem aos poucos a mesma história. 

À minha frente, caído numa ridícula prostração de macho abatido, um desgraçado ensarilha-me na sua história. Escuto-a sem pressa, sem perturbação, sem surpresa, com os seus ziguezagues, com os seus parênteses, com as suas heroicas fanfarronices: uma mulher de beleza inigualável, o ciúme, a promessa de vingança, o ajuste de contas, facas, um tipo no chão (ou dois), uma fuga precipitada até a um cais sórdido, depois o tribunal marcial e o castigo, a expulsão, e agora somente a rememoração de lençóis interditos, somente o macho com cio e com saudade… 

‒ Nunca mais tive paz… 

‒ Nada do que contas é assim tão extraordinário, meu rapaz… 

‒ O que mais me dói é a falta que me faz o perfume dela. 

‒ O perfume? 

‒ O cheiro do corpo. Não conheci outro paraíso até hoje … Um homem aninha-se nele e deseja morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez… Mas o senhor não ia entender isto, nem que lho explicasse mil vezes… 

Tão néscio és, meu caro jovem. As regras do amor são eternas. Valem tanto hoje como no tempo de Cleópatra. Tão verdadeiras neste instante como no dia em que o primeiro marinheiro fugiu da Sicília, amaldiçoado pela peste. Como se um homem chegado a esta idade, como se este corpo mirrado não tivessem conhecido a mesma inexplicável sedução que te faz enlouquecer no interior da tua própria masmorra. Como se o amor, girando eternamente na mesma calha em espiral não fosse o ADN da espécie. 

Passaram-se entretanto três anos. No preciso instante em que escrevo estas palavras já o batelão se dissipou com o nevoeiro dourado do horizonte. Duas vezes por semana nos reencontramos. Às vezes a aguardente é toda a linguagem que temos em comum. Às vezes, como um relâmpago inesperado de verão, tu recomeças a litania. 

‒ Pois então o senhor fala-me de amor? Por uma puta? 

‒ Falo de amor, meu caro. Falo do teu amor!… 

‒ Sabe lá o que é o amor! 

Com nostalgia leio nos teus olhos a nostalgia. Há sempre o rosto de uma mulher. Essa mulher que te consome as entranhas. Olhos negros como corredores mal alumiados e perigosos, a pele macia e perfumada, os seios duros. A mesma labareda que um dia nos lambe o coração virgem e nos abandona, em cinzas, nus, expostos, à miséria de sobreviver-lhe e de lhe acalentar a memória. 

‒ O cheiro do corpo dela… É dele que me recordo todos os dias… 

Leio nos teus olhos a nostalgia, a impotência e o ciúme e a loucura de três anos de distância, três anos de homens possuindo-lhe o corpo, três anos de álcoois e peixe frito, três anos em que tornaste num igual a estes farrapos que aqui entre semeiam os crimes de saguão, a desobediência militar, o contrabando, a vingança… 

‒ Um homem aninha-se nele e quer morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez… Não ia entender nem que lho explicasse mil vezes… 

‒ Estou certo, meu amigo, que somos o movimento oposto das árvores. Dos ramos crescemos para as raízes… Com o passar do tempo cada um de nós viaja para o lugar de todos. Esse lugar, essa terra quente e apaziguada, espera-me há muito. O nevoeiro vem chegando, penetrando cada vez mais os meus ossos. Mas tu és jovem. Tu ainda podes tudo. Tens de lancetar essa ferida terrível e tresloucada… 

‒ Deixei de acreditar nas pessoas… 

‒ Basta! 

Conheço uma só forma de curar o mal do amor. Que é multiplicá-lo! 

No preciso instante em que anoto estas últimas palavras, regozija-te, meu caro amigo. Todos os meus pertences couberam numa caixa, numa chave. Leva-la contigo, sem compreender. A italiana, posso corrobora-lo é ainda muito bela. Bom trabalho me deu encontrá-la, trazê-la, instalá-la, deixá-la de presente a quem precisa de fé. O tempo ensinou-me a errar todos os caminhos para encontrar apenas um. A mim nunca me importaram as respostas ou as certezas. Sou um homem descrente. Mas por uma vez desejo não ter-me enganado. 

‒ Um homem aninha-se nele e quer morrer assim, como se estivesse a nascer outra vez… 

Não precisas sequer de explicá-lo, meu bom amigo. As regras do amor são eternas. Eternas! Não ias entendê-lo agora, nem que to explicasse mil vezes.

O DIA EM QUE ME ENSINASTE A VOAR

Jay Satriani
Fotografia de Jay Satriani

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Foi há tanto tempo que começo a duvidar se esse dia realmente existiu, avô. A memória das coisas e a memória dos sonhos às vezes flutuam tão perto que deixamos de as distinguir. Queria ser igualzinho a ti. Usar uma bengala, como a tua bengala. Segurar na cabeça uma boina de feltro escuro, como a tua boina de feltro. Sentir cruzados nas costas uns suspensórios como os teus. Ser igualzinho a ti. Rir como tu rias, caminhar devagar como tu caminhavas, puxar de uma escada e subir a uma macieira, como tu fazias. Ir à algibeira e puxar de uma navalha de osso, como a tua navalha; cortar a maçã em pedaços e comê-la com os olhos postos no infinito, como tu fazias com os olhos, quando comias uma maçã e te sentavas na soleira da porta, esperando que o sol acabasse a sua volta e te viesse sorrateiramente a noite. Foi há tanto tempo, avô, que principio a desconfiar da minha cabeça e, sobretudo, do meu coração traiçoeiro… 

Lá chegou o dia em que te confessei esse devaneio. Tinha tantos… Tu sorrias. Tão devagar que o sorriso, como a luz da tarde, parecia de gesso e sem fim. Tu sorrias, como se de lá de muito longe (da tua própria infância), te acenasse um miúdo igual a mim… Como se lá do arrebol doutro século, amparado por um velho igual a ti, te acenasse a vaga recordação de um sonho igual ao meu sonho. Tinha tantos, avô… Escutavas sempre com ternura infinita, mesmo quando te contei esse meu sonho de querer ter umas asas e voar. Mesmo se me ralhasses por trepar aos bardos e às arvores e aos telhados. Porque eu queria voar. Porque eu queria parecer-me com os pássaros e estudar o azul. Porque eu queria conhecer as coisas como as conhece o vento quando ergue em torvelinho o pó e nos tomba o cavalo de pau… E tu sorrias, sorrias com esse sorriso belo de quem compreende os sonhos sem os manchar com a ironia ou o sarcasmo. Tu sorrias como se sorri ao sol, quando as tardes demoram e nos espera uma noite em solidão. E isso é o ofício sagrado dos avós. E essas são as tardes mais infinitas que nos ficam, mesmo quando a memória começa a duvidar de si mesma e as horas se parecem mais curtas do que as horas de antigamente e o sorriso mais doente e a soleira mais estreita e os sonhos mais impossíveis… 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Queria ser igualzinho a ti. Vestir como tu camisas de flanela. Fumar como tu maços de Definitivos. Usar como tu, à cintura, uma tesoura da poda e ir indo pelo meio dos campos aparando e limpando os ramos, contemplando o milagre das estações sucessivas, esperando que o tempo cumprisse a sua palavra e te levasse em paz… Igualzinho a ti. 

‒ E se te fizesse um papagaio de papel para aprenderes a subir ao céu? 

‒ Eia, isso queria eu! 

E seguir, confiar, agasalhar-me na sabedoria dos teus gestos. Ver-te juntar numa mesa cartão e cola, sisal e paus descamados de giesta. Ver-te com decisão erguer um trapézio, enquanto me bebias o espanto e semeavas em mim esse amor que abre brechas nas paredes densas da morte. 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Foi há tanto tempo, avô! Custa acreditar há quanto já. Ainda os outeiros tinham a magia dos outeiros. Ainda os dentes de leão vogavam sem medo, roçagando-se suavemente na nossa boca. Ainda o azul que os pássaros bebem se podia olhar no espelho límpido dos charcos escavados pelas chuvas de março. Ainda a terra era livre e perfumada. Ainda os dias eram perfeitos na sua dádiva de poesia. 

‒ E se segurasses neste novelo para eu te explicar como se faz? 

‒ Eia, isso queria eu! 

E és tu, velho trôpego, és tu quem me vem à cabeça, tu, devorado pela artrose, consumido pelas dores (quantas vezes me comovo ao lembrá-lo), és tu quem eu vejo ainda correndo, mancando, gemendo sobre as ervas, falseando ridiculamente os passos, para que esse mágico losango de cartão pudesse ascender ao lugar dos sonhos, para que eu pudesse aprender sozinho a arte dolorosa de acreditar… 

Não sei por que me recordo agora de tudo isto. 

‒ Pois tu queres voar, meu filho? 

‒ Pois quero! 

Nem porque se tornou cega a luz azul de março. Nem porque se tornou seca a cratera dos charcos. Nem porque se tornaram tão pesadas as asas do amor que me ensinaste. Nem porque deixei de saber erguer ao alto, como um pedaço de mim, como uma extensão de mim, esse trapézio de cartão, preso a um novelo de sisal. Foi há tanto tempo que começo a duvidar se esse dia realmente existiu. Perdoa, avô! 

‒ E se hoje fizéssemos um corrupio? 

‒ Eia, isso queria eu! 

Nem porque não sei sair correndo como tu, a mancar, suportando as dores, para que as pás coloridas de uma pequena ventoinha pudessem, como os pequenos pardais distraídos da primavera, que depois de curados tu soltavas, acreditar e voar. Porque isso era o meu sonho. E não sei (o tempo tem destas coisas) como fui capaz de o esquecer…

UMA MAÇÃ

S. J. Carter - Apple
Fotografia de S. J. Carter

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Houve um momento na minha vida em que as expressões «cirurgia», «recobro», «cuidados intensivos», «cateter», «convulsão», «estável» e outras afins foram estranhamente próximas. Estava desempregado, mas isso não era importante. A minha namorada quis acabar tudo: eu esqueci-lhe o nome num mês.

Lembro-me é do hospital. Das zonas húmidas. Dos cheiros seguindo-nos pelo corredor como fantasmas. Das janelas gradeadas abrindo para um jardim inculto, onde gatos tristes miavam para nós com infinita tristeza. Lembro-me dos botões do elevador, das dedadas no espelho, dos restos de fita-cola onde antes teria existido um AVISO da administração. Lembro-me finalmente dos maxilares, que me doíam ao aproximar-me do quarto onde o meu pai convalescia. Lembro-me do odor intenso a cremes gordurosos, a emplastros e compressas, a óleos e loções usados na enfermaria da secção de Cirurgia Plástica. Esses cheiros ainda hoje os sinto, como sonhos complexos transbordados dalgum depósito da minha memória.

As mais das vezes sentia-me só, desamparado, alvo desse cruzar de rostos que é como o entrechocar de pedras no espaço. Sentia-me só. Desamparado. As árvores lá fora continuavam árvores, os aviões os mesmos aviões riscando o céu, a cidade a mesma cidade. E, porém, eu sentia-me profundamente desamparado e tudo era diferente, como se as árvores fossem outras árvores, os aviões outros aviões, a cidade uma estranha paisagem insuflável, tremendo debaixo dos meus olhos.

Vivida na primeira pessoa, alimentada pelo nosso coração, uma história é realmente HISTÓRIA. E, tal como sucede a uma povoação dizimada por um terramoto, por uma tempestade, por um incêndio descomunal, a minha história era já uma vida nova a recomeçar, enxertada numa existência em ruínas.

Aconteceu-me ser surpreendido um par de vezes por circunstâncias ainda mais extraordinárias do que as que vivia já ‒ até no decurso de um cataclismo se pode alcançar uma certa normalidade. Aconteceu ser surpreendido pelo lugar vazio onde esperava ver um doente abatido e traumatizado. «Complicações» é o nome que se costuma dar a este tipo de surpresas. Nunca as visitas chegam a perceber bem as causas e os efeitos imediatos das ditas «complicações», nem o que nelas há de incúria e incompetência dos serviços hospitalares, que se defendem e escondem num emaranhado vocabular, repleto de tecnicismos e impessoalidade. As visitas compreendem apenas a gravidade das coisas com duas singelas, cruas, desumanizadas frases:

‒ Sinto muito! Houve uma complicação!

Habituei-me ao vagar das horas. Ao desfilar dos pijamas e dos adesivos em cruz. Ao ar zangado das batas brancas. Ao ar insosso dos tabuleiros com massa e ervilhas. Aos gatos tristes lambendo-se entre os arbustos feios. À luz fria das ambulâncias. Habituei-me à solidão das máquinas de café. Ao desamparo dos grandes relógios do corredor. Às viagens de cá para lá na autoestrada sombria.

Havia uma médica bonita. A única boa impressão daquele lugar naquele tempo era os olhos rasgados da médica anestesista. Havia um banco comprido, de madeira, anacrónico, no meio do corredor. Uma ou outra vez nos sentámos juntos para o «ponto de situação». Era uma médica metódica, incapaz de multiplicar palavras acessórias. Para exemplificar e ilustrar o que dizia socorria-se de um bloco de notas, onde desenhava órgãos e sistemas e metabolismos e crises, com setas e sinais de movimento, como se veem nos manuais de Medicina. Tratou-se sempre por «você», embora não existisse entre nós diferença de idade. Tratou-se sempre por «você», mesmo sem ter usado a palavra «você» uma única vez. Quando pretendia conversar comigo mais a sério pedia a uma enfermeira que chamassem «o filho». Abria a porta do seu gabinete com um sorriso formal, forçado, diplomático; fazia com a mão o sinal do «entre», do «sente-se», do «oiça-me, se faz favor». Começava sempre (começou sempre) por um «receio não ter boas notícias». Lembro-me que o desamparo era maior junto da médica bonita. Lembro-me de a minha cabeça vogar à toa, aturdida pelos prefixos e sufixos atarraxados a palavras dolorosas, meio enigmáticas, totalmente desconhecidas… Lembro-me de pesquisar, de ver dia após dia dissiparem-se os últimos farrapos de inocência. Vivida na primeira pessoa, alimentada pelo desespero, todas as histórias se tornam cicatrizes, cicatrizes indeléveis e imortais…

Certo dia, quando atirava a cabeça para dentro das mãos, como se atira uma bola de basquetebol, quando penava no mesmo banco anacrónico a meio do corredor, quando esperava que as lágrimas renunciassem ao ofício fácil de saírem da toca obscura, sentou-se na outra ponta um dos sujeitos de pijama e robe da ala norte. Olhei-o por entre os dedos, apanhado pelo desconforto da sua presença. Era um homem de meia-idade, como o meu pai. Um homem com um horroroso penso a meio da garganta, franzino, barba mal aparada, farripas desgovernadas e oleosas, olhar vazio, alma caída sobre uns chinelos comuns de quarto. Senti ímpetos opostos: levantar-me, ficar, cumprimentá-lo, esperar que fosse embora… Na verdade tinha uma vaga ideia do indivíduo. Alguém me dissera algo sobre ele não «bater bem da cabeça». Não pude confirmá-lo. O facto é que o nosso silêncio, o seu olhar vazio, o mútuo desconhecimento, o tê-lo na outra extremidade do mesmo banco curto e anacrónico tornava o instante demorado e embaraçoso. Inesperadamente ouvi estas palavras perfeitamente inesquecíveis:

‒ Não faz ideia das saudades que eu tenho de comer uma maçã!

Endireitei a cabeça. Julgo que o tronco também. Tenho a certeza que todo o meu ser (de alto a baixo) se endireitou. Considerei o homenzinho com surpresa, estupor, perplexidade. Considerei o curativo sobre a laringe, o olhar espetado contra a luz magra do outono, o robe de malha impregnado de todos os odores que faziam daquelas quatro paredes enormes um território devastador.

‒ Não pode comer maçãs?

‒ Pois não…

Seguiu-se um silêncio duplamente comovido. Infeliz.

‒ Pois não… Há dois meses e meio que não provo sólidos… tiraram-me um cancro… nem sequer fumava muito, sabe?… agora não posso comer coisas duras…

Licenciei-me em Línguas e Literaturas, venci prémios escolares e literários, fui aclamado em comícios políticos, assinei ensaios, fiz pós-graduações, dei aulas durante a centenas de alunos… Era ali, contudo, um osso lascado, um pedaço de tijolo, uma coisa inerte. Não pude erguer uma só palavra sábia, razoável, de conforto.

‒ Passo bem sem as outras coisas… mas das maçãs, não faz ideia! Sinto cá umas saudades de comer uma…

Nada pude dizer. Pela primeira vez na minha vida percebi na boca, na cabeça, nas entranhas, uma voragem de palavras e pensamentos. Incapaz de dizer, como hoje sou incapaz de calar: o homem, sempre com o mesmo olhar vazio, sempre com a mesma tristeza, leve como empalhado, levado pelo mesmo vento silencioso que o trouxe, foi-se afastando pelo corredor, passo lento, cada vez mais frágil, cada vez mais gravado na memória.

O meu pai regressou a casa após um mês e um dia de internamento. Do sujeito pouco pude apurar depois disto, sequer o nome, sequer o resultado da sua luta. Penso muitas vezes na maçã que lhe apetecia, na maçã que desprezamos dia após dia, enquanto nos distrai uma multidão de coisas inconfessavelmente estúpidas, superficiais, inúteis. E sei (há sempre uma lição, com sublinhado, no final das melhores histórias) que uma vida completamente nova irrompeu em mim, nascido em algum baldio da alma, vinda pela boca de algum anjo da guarda: quem sabe, quem sabe…