Vozes de burro

Fotografia: Antonio Grambone
Fotografia de Antonio Grambone

 

No começo da rua Franquelim Pimenta batia na sola dos sapatos com fúria. E era depois de lhes pôr em cima uma camada bastante de cola industrial, de lhes cuspir uma gosma de álcool e de imprecações, enquanto os olhos iam e vinham, conforme o movimento dos pares de pernas das senhoras e raparigas do colégio.

— Minha menina, ai que rico tacão!

A boca tartamudeava, com os pequenos pregos presos nos lábios. Havia quem se zangasse, quem respondesse ao piropo ordinário.

‒ Malcriado!

Mas o aparato de loiras com as mamas ao léu nos calendários e o garrafão meio escondido entre as pilhas de sapatos e chinelos por arranjar, tinha o efeito de um repelente. O Pimenta ficava na sua. As senhoras e raparigas ofendidas na delas. Tudo em ordem. Quem não queria piropo não passava perto da sua lojinha. Que culpa tem um homem de vir ao mundo com um par de olhos, menino?

O estabelecimento do Pimenta ficava na rua dos artesãos, paredes meias com a carpintaria-funerária Campos Elísios, com as máquinas de costura da Dona Eufrásia e com o botequim do Sr. Maciel Bemposta. Um pouco adiante, na mesma rua, havia uma loja de ceras e santinhos, uma padaria, um garageiro, um ourives, um serralheiro e a farmácia. Tudo muito misturado, tudo enfileirado, comércio para as dores do corpo e para as da alma.

Nessa rua aprendi eu a maior parte dos provérbios que conheço. Por exemplo que “Vozes de burro não chegam ao céu”.

O ditado veio, entre outras, da boca do sapateiro. O artista percebia de quase tudo. Quando lhe negavam uma evidência ou o contrariavam razoavelmente, zurrava logo:

 ̶  Sabe vossemecê uma coisa? Vozes de burro não chegam ao céu!

Alguém lhe punha em causa a soma a lápis de uma conta, alguém lhe atribuía um dito de véspera, alguém lhe negava as virtudes dos rebuçados de Régua, alguém lhe falava mal do Sporting, e o Pimenta, apimentado:

 ̶  Sabe o amigo uma coisa? Vozes de burro não chegam ao céu!

 ̶  Está a chamar-me burro?

 ̶  Tem vossemecê orelhas a condizer…

 ̶  Como?

 ̶  Estou a chamar-lhe burro, jumento, jerico!!!

Se a coisa não passava, se a teima ia mais além, tornava-se o insulto de monta.

 ̶  Ó meu grandessíssimo filho da puta, quer você ver como elas se fazem aqui nesta loja?

E voava a camurça de um sapato, um botim de senhora, uns tamancos…

Houve alturas em que me assustei. O Pimenta, esgazeado, ameaçava um cliente, o cliente raspava-se, o projétil cortava-nos – como uma bateria inimiga, a escassos centímetros da testa ‒ a linha fina do horizonte.

‒ Isto, menino, é uma cambada de burros! Não percebem um caralho da vida… Bem me dizia a minha mãezinha, vozes de burro…

A mochila vinha de arrasto, a pontapé. A escola arrasava: reis de Portugal sim; contas de dividir não; verbos sim; prova real não… De modo que sair dos portões de ferro da escola, dobrar a esquina, escutar o sábio calão do Pimenta era uma alegria, uma cura, uma catarse.

‒ Faça-me lá a conta, Sr. Franquelim…

‒ Ora, deixe cá ver: solas, pomada, … ‒ Como está, D. Etelvina? ‒ berrava de súbito cá para fora; … ora, deixe cá ver: nove e quatro treze e dois dezasseis… e vai um ‒ Olá, Senhor Doutor, bom dia! Como passou? ‒ gesticulava; … ora, portanto, e vão dois…

Conseguia até esquecer os ralhos, as ameaças, os puxões de orelhas, a numeração romana. Nada me dava mais prazer do que excomungar a sala de aula, ouvindo e compreendendo o vivo movimento do mundo. Nada como a genica linguística do Peyroteo do calçado, olá para um, vai tu à merda para outro, cuspo e martelo, como passou, Senhor Doutor para a frente, que rico tacão para trás, martelo e cuspo, sempre assim, o dia inteiro, com o lápis (de papel dizia ele) aninhado na orelha…

A didática não tinha fim. Sabia que um dia me faria falta. Ouvia-se até chegar a casa. Sobrepunha-se mesmo ao barafustar da peixeira com a modista, à política debatida entre o funesto loiro da loja dos penhores e o taxista, à voz dos reformados que atiravam a bisca, às vizinhas que cortavam na casava. Franquelim Pimenta era um professor no seu palco. O calão engrossava.

De modo que uma vez disse na aula:

‒ Foda-se, Severo… És um cagarolas!

O Severo queria copiar o gerúndio dos verbos estrugir, burilar, transcorrer (do alçapão benigno da professora saíam verbos simpáticos), mas tinha medo.

Eu, que me dispunha a ajudar, disse com enorme prestígio gramatical:

‒ Foda-se, Severo… És um cagarolas!

Veio a reprimenda. Violenta, eriçada, húmida de saliva. A sala tremeu desde os caboucos até ao forro de cortiça no teto. Respondi-lhe. Aí não se ficou a mão da professa, que me ficou gravada nas bochechas. Cinco dedos, uns dez anéis, um par de estalos de cada lado ‒ certeiros, sapudos, impressivos.

A minha mãe (que certamente me trataria da saúde) pediu desculpa. Aquilo não se repetiria, Senhora Professora…

‒ Que lhe disseste tu mais, meu tratante?

‒ Chorei, supliquei… O que dói uma colher de pau, senhores!

‒ Que disseste tu à professora, meu carbonário?

Deus furioso exigia a verdade.

‒ Fala, bandido! Que disseste tu à tua professora?

Olhos esbugalhados, gritos, imprecações, a promessa de que o meu pai ia saber de tudo… Considerei. Vacilei. Já chegava de pancada.

‒ Vozes de burro não chegam ao céu…

‒ O quê?

‒ Foi o que eu disse à professora, mãe – confessei por fim, imerso em ranho…

‒ Ah, meu maldito…, meu macareno… Ai, que eu mato-te!… – disse a minha progenitora à beira de uma síncope, enquanto eu fugia, enquanto eu me atirava pela janela à rua, enquanto eu fugia também deste lado da guerra, para procurar abrigo, algures, a meio da terra de ninguém, nalguma trincheira…

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Que bem que se está aqui!

moses stell
Fotografia de Moses Stell

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As manhãs são prodigiosas. As manhãs de sábado e de domingo. As manhãs das férias e dos feriados, dos dias de café silencioso e olhos fechados contra o sol. As manhãs de música barroco e de janelas abertas. As manhãs de caderno em cima da mesa e caneta de aparo. As manhãs de depois de termos feito amor, quando te despedes com um beijo antes da piscina e do ginásio ‒ tu a tornear o corpo, eu a cismar em trapézios de palavras. As manhãs de quando os vizinhos mais novos não estão. De quando a rua acorda como as ruas da infância, devagar, sonolentas, sem relógio. As manhãs de quando os miúdos das moto 4 se extinguiram no horizonte, por causa da prova nos matos alentejanos. As manhãs de quando os outros miúdos, os das noitadas, das passas, das bebedeiras, das curtes, do pandemónio de copos plásticos partidos e latas amolgadas, se encontram ainda na ressaca das respetivas camas.

‒ Que bem que se está aqui!

E é um bem-estar que me ilumina as coisas à volta. Que me faz olhar para a mobília e para o interior de um livro com o mesmo desvelo com que observo à varanda o senhor Afrânio, o septuagenário mais educado e galante que conheci.

‒ Bom dia, senhor Afrânio!

‒ Muitos bons dias, meu caro Lopes!

Um bem-estar que tem a sua própria química molecular, as suas leis físicas inconfundíveis. O ar respira-se melhor, mais leve, menos sujo e rarefeito, como se os pulmões se dessem conta do milagre que os dilata. A fruta e as velas de cheiro açucarando as paredes. Os detergentes e o teu perfume não mais agradáveis do que o fiozinho de cigarro subindo da professora Clotilde, antiga mestra do Magistério Público, que à sacada, à puridade, vem cuidar dos seus jacintos e gerânios e begónias e agapantos, falando-lhes, confidenciando-lhes, namorando-lhes as pétalas.

‒ Que bem que se está aqui!

E ao dar-se conta da minha presença, chávena na mão, olhos semicerrados, ronronando, se assusta em pouco.

‒ Bom dia, senhora professora!

‒ Como está, João?

Gosto de colher estas sementes. De ressuscitar sem pressa. De escrever como outrora, repleto de esperança e de inconsequência, para ninguém e, quem sabe, para quem me entenda. Gosto de rasurar as frases, de erguer-lhes balões corretivos, glosas e anotações, segundas linhas, sublinhados e círculos, setas e chavetas, novas rasuras, riscos e desabafos de frustração. Gosto de encher a casa com a máquina de escrever, com as suítes para violoncelo de Bach, com os meus pensamentos, com a minha loucura, com o meu coração.

‒ Que bem que se está aqui!

E é quando o voo é mais longo e mais profundo. Quase como se me esquecesse da minha pele e dos meus ossos e dos meus males de alma e dos azedumes e das vezes em que a vida me pareceu uma infinita tortura. O martelar de cada tecla, a subtil variação das notas musicais, o reflexo de cada raio de luz no vidro das janelas e na madeira e na carne macia de cada fruto, tudo, tudo tão sincrético (para me servir de Lévi-Strauss) e de outra espécie de tempo, como se o contasse agora por séculos em vez de segundos.

‒ És um tonto, meu amor!

‒ Eu sei… Eu sei!…

E as manhãs adquirem a expressão de uma eternidade de que jamais saberei dar conta. Porque o amor que nelas desabrocha, como o das flores da professora Clotilde, é um eflúvio transcendente, um caudal de espírito capaz de adocicar os solavancos metálicos do elevador e de tornar risível a discussão na rua sobre futebol. Porque Bach e o café e o caderno cheio de rabiscos são capazes de me bem-dispor, a ponto de me esquecer das aulas e das agendas e dos recados mais ínfimos… Como se a vida pudesse seguir sem eles… Como se eu pudesse viver a vida sem a vida dos outros, ombros direitos e o rosto erguido, concentrado somente no discurso puro do meu espaço…

‒ Que bem que se está aqui!

Confesso que são as melhores manhãs. Quase inconfessáveis. Quase intraduzíveis. Quase de um outro eu. Como se de um outro eu que visitasse de vez em quando, como quando se visita um outro eu no álbum de fotografias… Falo destas manhãs de sábado e de domingo, de férias e feriados, de café silencioso e olhos fechados contra o sol. E tu vens, muito devagar, sem um ruído, tão adolescente como quanto te conheci, colocar-te atrás de mim, pondo-me as mãos nos olhos, invadindo-me com o teu aroma, preenchendo-me com as tuas formas, calando com as tuas poucas as minhas palavras prolixas.

‒ És um tonto, meu amor!

E eu sei que sim. E eu sei que sim. E nada é, juro-to, tão belo, tão magnífico, tão importante como essa última sintaxe, esse modo de findar o trabalho, retirar a folha do cilindro, cheirar contigo a tinta, ler a duas vozes, sorrir, adormecer no aconchego do teu corpo, sem pressa, como se o tempo o contasse agora por séculos em vez de segundos.

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