O diospireiro

Fotografia de Ernesto Scarponi

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Nessa Consoada não houve neve, apenas chuva e vento. À volta da lareira não foram postos os potes de ferro, nem se escutaram vozes concordantes, extasiadas e nostálgicas. A velha cozinha recebeu somente um hóspede. Viera para cumprir o voto: enquanto fosse vivo, ainda que por uma noite no ano, aquelas paredes sairiam da ténebra e do silêncio e seriam adoçadas pelo brasume e pela sombra cada vez mais tremelicante das suas mãos. Tinha esse dever.

Sobre a longa mesa de pinho abriu a garrafa, desembrulhou o jantar, sentiu o abandono garroteá-lo, mastigou sem gosto. Os talheres enferrujados da casa, a lareira mascarrada e mal desentupida, a ausência de cânticos, a falta do aroma da canela pareceram-lhe a parte significativa e incompreensível do seu destino. Era o último, tinha essa obrigação!

Estendeu ao comprido do soalho, paralelo ao lume, um saco-cama, deitou-se nele e ao cabo de muito tempo adormeceu. Quando horas mais tarde abriu as janelas, foi surpreendido pela luz lavada, veemente, puríssima da nova manhã. Havia rútilos e revérberos macios e dolorosos, que os olhos aceitavam e rechaçavam ao mesmo tempo.

Saiu então para o pátio, caminhou pelo horto, andou no meio das ervas e das árvores, seguindo os regatos e os trilhos da murta. O cheiro do verde era tão intenso que em mais do que uma ocasião se sentiu compelido a descer as pálpebras e a aspirar em longos haustos o que da terra invisivelmente se erguia. A dada altura parou a contemplar um diospireiro. Estava ainda carregado de frutos: velhos e encarquilhados dióspiros, repletos de bolor, iluminavam os ramos quase secos, dando-lhe uma cor de cobre e de fogo e uma feição amicíssima.

O homem espantou-se. Não podia entender como, ao invés de todos os outros em volta, aquele diospireiro não tivesse sido despojado pela intempérie ou pelos pássaros famintos. Comovia aquela visão do tempo miraculosamente adormecido. Com algum esforço de imaginação, o homem conseguiu ver o desenho e o amor das árvores incontáveis que nessa altura do ano as crianças decoram com enfeites, luzes e flocos de algodão. Sentiu então que não estava só, que nalguma parte deste ou do outro mundo o aconchegavam.

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O homem muito triste

sadness, o homem muito triste
Fotografia de Miroslav Mominski

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Cruzo-me com este homem quase todos os dias no caminho para a escola. No ângulo de cimento de um murete, acompanhando a curva apertada de um caminho secundário, ocupa com a sua sombra todo o lado esquerdo do vidro do carro, e tão singular a sua comum figura que nunca resisto a deitar-lhe, muito de viés, uma mirada curiosa.

É um velho triste. Apoiado numa bengala (seria mais correto admitir que a bengala se tornou um grande braço caindo na terra), lança o rosto num movimento de rede, como quem não sabe se vai ou o que vai apanhar do dia. Julgo que me vê passar e que me não vê passar. Porque gasta os dias a olhar sem ver, fixado num ponto onde nenhum automóvel chega, nem decerto nenhuma mirada curiosa e comovida, a bengala debaixo da mão como um pilar muito hirto, pensando quem sabe, quem sabe lembrando, quem sabe cismando na curta viagem entre a infância e essa idade de tão frias e de tão feias emanações.

É um velho triste. Barba branca e rala, aguçando o queixo numa expressão inquisidora. Pele tão velha como a boca velha e escancarada, que parece arfar. Uma máscara. Todo ele numa expressão que tanto se diria alheada, distante da realidade, como nela achando e arregalando uma epifania.

O carro leva-me por lugares que me dão muitas vezes o primeiro verso, a primeira linha, a primeira impressão de uma fotografia. Às vezes, como aqui e agora, ao interceptar este ancião, sinto uma cobardia inexplicável. Finjo que não percebo o que é óbvio, que não toco o que palpável. Ponho-me a mexer nalgum manípulo, troco de estação de rádio, fiscalizo criminosamente o ecrã do telemóvel. Aquela expressão triste do velho, porém, está lá, entrou, já me não permite evasivas. Volto-me, esforço-me por não olhar, mas zás, olhei-o nos olhos! O carro já me pôs noutra rua, noutra estrada, noutro ângulo de outra luz.  Mas aquela expressão de casa abandonada enche-me o vidro dianteiro. É inútil fazer de conta. É ridículo. É, provavelmente, hipócrita e cruel.

Ponho-me em devaneios morais. E, se em lugar de acelerar, eu encostasse, me apeasse, lhe propusesse um cigarro, quisesse saber o nome, lhe escutasse a vida? Se, em vez de fingir que o dever me chama muitos quilómetros à frente, admitisse que me chama aqui o dever de confortar, de saber, de vestir pele humana  e tripas humanas, cabeça humana, coração humano?

É um velho triste. Encontro-o rodeado pelas mesmas casas solitárias, pelas mesmas ervas bravas, pelo mesmo céu mortiço, junto ao mesmo alcatrão sujo e irregular. Uma cena de meia dúzia de segundos, enquanto o carro resfolega e ao longe uma sirene apita para a mudança de turnos. Dou por mim a observá-lo pelo retrovisor, como quem se dá conta que a oportunidade passou, que a separar o futuro do passado há uma estreitíssima ponte,  o presente não existe, braços e tronco vergados, lá atrás, como se ameaçasse despenhar-se, estilhaçar-se, partir-se todo, lá muito atrás, mal se vê agora, como se somente a bengala se importasse, agora é um pontinho, a reta levou-me a uma rua mais larga, uma lomba, agora já não se vê, uma subida, uma curva, e zás, já o horizonte é outro.

É um velho tristíssimo. A cena repete-se. Fica-me no vidro, junto com o cadáver dos mosquitos e a meia-lua do pó. Sou forçado a rememorá-la, preso a um remorso que os outros perdoariam, mas eu não perdoo.

Acabo por esquecê-lo, assim que retiro a chave ignição e me lanço numa corrida para a porta da escola, em cima da hora, sempre a pisar o risco, homem livre, homem preso, cheio de fé e sem fé. Caminho com o rosto um pouco levantado demais, olhos num ponto indecifrado do infinito, incapaz de pensar no que quer que seja.

Antes que o pergunte a mim mesmo, respondo: não, não sei porque tem de ser assim!

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Crónica de um domingo de outono

Yvette Depaepe
Fotografia de Yvette Depaepe

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Foi bom ter vindo.

É sempre bom chegar a esta praia, desagrilhoar-me do carro, seguir longamente pela marginal, pedir nesta e em nenhuma outra casa um café tirado, bebê-lo às escondidas do mar, deixar-me em paz, como um desses áceres ou plátanos da anterior avenida, com a sensação de que sou um derrotado mas um herói, cansado mas digno, silencioso mas cheiinho de palavras (às quais dou ordem para se absterem, enquanto o café aquece), descontente mas satisfeito, sem pressa mas ansioso por regressar ao cheiro forte da salsugem. Regressar é sempre bom, ótimo, revigorante.

«Deseja mais alguma coisa?»

Desejo, sim. Em primeiro lugar, libertar-me da gente estúpida (é impressão minha, ou a gente estúpida vem sempre morar para o pé da nossa porta?). Em segundo lugar, prender-me definitivamente aos gestos de excelência, às pessoas maravilhosas que os sabem interpretar, como essa garota que me não sai da cabeça, cuja história me repetiram há dias.

«Olhe, professor, então não é que um desses meninos com trissomia se apaixonou por ela! Todos a fazerem troça no recreio e ele a chorar. Então, a garota foi ter com o menino, limpou-lhe as lágrimas, abraçou-o, deu-lhe a mão e levou-o…»

Gosto de vir também por esta razão. Para estar comigo, para pôr estas narrativas na ordem (a nossa cabeça é um caderno caótico), para descortinar lógicas submersas nas máscaras que as coisas vestem todos os dias.

«Aqui tem o seu troco, senhor…»

Gosto da sensação do frio, da brisa veemente que me faz inchar o casaco de náilon e me enche o rosto com salpicos de espuma. Gosto destes prédios à retaguarda, calados, inofensivos, como molduras de vinhetas de banda-desenhada. Gosto destas palmeiras baloiçando, baloiçando agora e sempre que aqui estou, fazendo-me sentir em território amigo, mesmo se o outono obscureceu já demasiadamente a paisagem.

«De modo que a rapariguinha, esta mesma de que estamos a falar, teve um acidente na sexta-feira à noite. Um horror…»

Os ténis têm, é incrível, o seu modo automático de me guiar, de me levar sem que os sinta. Nem dou pelos semáforos deixados para trás, do paredão e dos pescadores solitários, do farol, das rugas de água verde acinzentadas (além quase negras), que crescem e se desfazem no molhe, pelas gaivotas que me vistoriam com o seu movimento circular, pelas folhas de jornal com restos de castanhas assadas que civilizadamente algum transeunte deixou de presente ao mundo.

«A coitadinha tirou carta há tão pouco tempo. O carro ficou debaixo de um camião, todo desfeito, professor! Morreu logo ali! Uma rapariguinha tão boa, tão educada… Um horror!»

Nem damos conta.

As palavras atam-se-nos com perícia. Por mais que as expulsemos, elas têm um modo muito seu de voltar. E nunca vêm sós. Trazem imagens, memórias, cenas inverosímeis. Como este magote que se acotovela do lado de fora da janela da mercearia, onde o senhor da funerária cola o fúnebre papel debruado de preto, com a sua cruz, com a foto, com o nome da rapariguinha bonita, com as informações imprescindíveis, com a dor da família enlutada.

«Sempre lhe digo, professor: vão os melhores e os filhos da mãe ficam, nunca lhes acontece nada… Passam sempre entre os pingos da chuva… Não percebo!»

Não demora a chuva.

Gosto deste lugar, do modo como a cabeça se me enche aqui de vazio. Nem damos conta de como a cabeça precisa tanto do vazio, tanto do silêncio, tanto da sombra, tanto de se apagar como se apaga às vezes o azul do mar debaixo de nuvens tão carregadas de dor como estas nuvens aqui!

«Tenho muita pena deste rapazinho deficiente, nem imagina! Ainda não percebeu bem o que sucedeu à amiga…»

É sempre bom caminhar sem destino, o casaco mais apertado, a tarde levando-me para muito longe (nunca sei para vou nestas tardes em que me vejo sem âncora), o frio lavando-me, a cabeça cada vez mais leve, os ténis voando (em breve estarei noutra dimensão), o mar sempre ao lado, o mar correndo quem sabe, às tantas, dentro de mim.

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O eremita

Fotografia de Derek Galon

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I

A meio e no alto do bosque fica o eremitério. Escassa gente atravessou estes portões nos últimos cem anos e nas centúrias anteriores quem o fez pôde descrevê-lo como nós o descreveremos agora: é um lugar ermo, tosco, bendito, impoluto.

Os adjetivos nada dizem, reconheçamos. Haverá quem deseje um relato pormenorizado sobre as suas escadarias, sobre as suas varandas e jardins incultos, sobre a cozinha com forno e celas desertas, sobre o oratório. Mas nem esses serão bem sucedidos. Não há que descrever mais do que paredes e arestas descarnadas, granitos com manchas de humidade e tenebrosos entrançados de silvas ameaçando o lintel das janelitas, junto à cumeeira do tugúrio.

Tudo se mantém inalterado desde a era dos primeiros santos que aqui resgataram a sua existência ao bulício e ao sorvedouro das grandes cidades. A natureza só não submergiu por completo esta edificação pelo caridoso ofício do irmão Anthony Montague, a quem cabe a guarda destas vetustas e gastíssimas lâminas, com que vai limpando como pode as balaustradas, os tetos e as esquinas de pedra musgosa.

Mas o visitante importar-se-ia sobretudo com o silêncio.

De manhã à noite, a maior gratidão do eremita é para o depurado silêncio que brota de todas as coisas em redor, por fora e por dentro de tudo. O bom silêncio envolve-o numa paz profunda e ao ter-se a ele acostumado de tal forma disciplinou o ouvido que alcança facilmente os mínimos estalidos, os mais distantes assobios, o sussurro da água nas fontes do bosque, a súbita mudança do soprar do vento na cabeleira dos pinheirais. Ao mastigar o bocado de pão à noite, os estertores da boca ou o crepitar da lenha tornaram-se palavras inteligíveis de que gosta mais do que das antigas, cujo significado lhe pareceu tantas vezes embaciado e inútil. Mesmo as orações, que medita e repete várias vezes ao dia e durante o serão, prefere pronunciá-las sem articular a língua, dizendo-as com o seu timbre de voz interior, tão belo e abafado tanto tempo. O silêncio tornou-se o seu modo de estar com Deus e o único motivo por que vale a pena continuar vivo.

Montague vive no eremitério há somente cinco anos. Veio de Dublin, onde foi casado e onde exerceu os cargos mais distintos na vida política e também na empresa multinacional EMPIRE.

Depois de nesse dia de outono ter contemplado na paisagem a formação de bulcões, sobre uma brisa quente e pressaga, lava-se agora à chuva abundante da noite com um quadrado de sabão. A tempestade faz as sombras mais suspeitas, com rebrilhos de relâmpago. Ao lume tem o eremita o seu caldo de feijão e sobre a mesa o De Civitate Dei, que vem há muito decompondo gulosamente em epifania e amor pelo próximo.

Depois de se secar num monte de trapos, sentindo a pele exalar o doce torpor da purificação, Montague dirige o olhar para o firmamento. Há no imo da sua alma qualquer reminiscência druídica, pois a natureza por si só o comove como um deus e lhe apetece alimentar-se de raízes e ervas para reencontrar um caminho perdido.

Escuta então um restolho. Um restolho e um gemido. Julga ouvir, também, o mover das bisagras e o raspar de metal sobre um lancil. Não tem dúvidas de que algo ou alguém vem aí. A pele empola-se, os pelos estão eriçados. Nunca lhe sucedeu igual. A sua santidade, tão duramente procurada nestas paragens, não o impede de apossar-se do tronco de carvalho que lhe serve de cajado e de o projetar defensivamente. É uma arma tão boa como qualquer outra e não tendo outra é esta melhor ainda. Um halo argênteo e azulado corre as paredes, invade-lhe o interior do casebre. Prepara-se para brandir o que segura nas mãos, quando uma voz o imobiliza.

– Olá, está aqui alguém?

II

A rapariga sorria e agradeceu muito o cuidado. Encontrar um chão seguro, poder abrigar-se da chuva e comer algo quente era muito melhor do que podia esperar. Não sabia explicar como ali fora parar, apenas que se perdera do seu grupo e que caminhara sozinha e desesperada durante horas, especialmente depois de anoitecer.

«Graças a Deus, descobrira aquele oásis no meio do deserto!»

Montague, aturdido, envergonhado, estremeceu ao som da palavra «Deus». Deitou uma concha de sopa no prato dela. Achou que talvez fosse avareza. Serviu-lhe outra concha. Não sabia se devia sentar-se a seu lado ou se devia comer num canto da cozinha. Ela falava, falava depressa, repleta de gratidão e de ruído. Como a rapariga não se decidia a começar a comer e o olhava fixamente, ele sentiu-se na obrigação de a acompanhar. Partilharam a refeição, depois de rezarem. Montague não percebia bem o que ela dizia, não tanto pela rapidez da sua fala, mas sobretudo porque o coração lhe batia descompassado e lhe tolhia a lucidez.

«Vivo muito perto de Cardiff, mas sou de Bristol. Na última década vivi em sete países diferentes. Adoro explorar a natureza, sabe? Passo a vida a viajar e a fotografar os sítios mais encantadores do nosso planeta…»

O lume, avivado pela mão diligente do eremita, parecia mais rubro que um rubi. Na face angulosa do granito, a silhueta da rapariga aparecia distorcida, como se da cabeça aos pés inúmeras hastes se descobrissem e a tornassem monstruosa. Por outro lado, a sua voz, vencida agora pelo cansaço e pelo sono, era menos vigorosa, mas muito mais dócil, quase sedutora.

«Quase não abriu a boca… E eu tão tagarela… Fale-me de si. Afinal, é o meu querido salvador… O que seria de mim, se o não tivesse descoberto esta noite?»

Os pelos dos braços e das pernas de Montague voltaram a erriçar. Depois de ter desaprendido determinadas facetas do mundo, aquela linguagem perturbava-o, tornava-o de novo refém de um mecanismo de que se libertara, a seguir à morte da sua mulher, muitos anos antes. O silêncio e o isolamento trouxeram-lhe o caminho do êxtase e encerraram atrás de si portas e corredores de cuja memória não estava já muito certo.

«Não sei o que lhe diga… Vivo só… Aqui… Há muitos anos…»

«Meu Deus, estou tão fascinada! O senhor é um daqueles santos, que se afastaram do mundo para conquistar o direito ao Paraíso!… Tão bonito!»

«Sim.»

«Não consigo imaginar o que tem sido viver longe de tudo! Sem conforto. Sem tecnologia. Sem o toque de uma outra pessoa!»

«Vivo com Deus.»

«Mas Deus é amor. Deus quer que nós amemos, que nos amemos uns aos outros!»

E ao proferir as palavras «Deus» e «amor», a rapariga soergueu o tom, como para espicaçar o entendimento de Montague. Sorria. Para sublinhar o poder do seu raciocínio, colocou-lhe a mão por cima da sua própria mão. O contacto da pele delicada com a pele áspera surpreendeu mais o eremita do que a afoiteza das palavras. O sorriso da rapariga fê-lo recuar. Precisava de retirar-se para orar. Tinha já passado o tempo devido.

Então, a rapariga aproveitou para lavar os dois pratos, estender o saco-cama, cuidar como podia da higiene pessoal. Depois despediu-se do anfitrião, sorriu com um «Boa noite, meu salvador!» e deitou-se.

Montague, mais uma vez, não conseguiu decidir entre usar a sua cela ou acompanhar a rapariga. Não raras vezes precisou de lidar com vermes e répteis, atraídos pela humidade ou pelo calor daquele antro. Receou que soasse a má criação não velar pelo sono da sua visita. Tanto mais que as horas noturnas durante as tempestades lhe pareciam um ensejo para descortinar a vontade de Nosso Senhor.

Ficou, por isso, diante da lareira, não muito longe do perfume que a rapariga exalava e que o entontecia. Era como uma tentação.

Rezou. Pediu perdão a Deus por todas as impurezas que nesse final de dia o pudessem ter cometido. Especialmente, quando se lembrou de Rose, a sua falecida mulher. Porque se lembrou dela nesse final de dia, sim, não da Rose murchando numa cama de hospital, mas da Rose do namoro e do casamento, bonita e insensata, que o desafiava a toda a hora, sem temer ou admitir sequer a têmpera do pecado.

«Não consegue dormir? Ou simplesmente nunca dorme?»

Montague estremeceu. A rapariga dirigiu-lhe nova pergunta.

«Assustei-o?»

«Não.»

Apesar da fadiga, do calor da fogueira, do som aconchegante da água precipitando-se das alturas, a rapariga explicou que não conseguia adormecer. Intrigava-a aquele modo de vida de Montague, aquela decisão de voltar as costas ao mundo, aquele silêncio e solidão no alto e no meio da floresta.

«Não voltei as costas ao mundo…Voltei-me para Deus…»

A rapariga abriu o fecho do saco-cama, soergueu-se (dorso encostado à mochila) e, iluminada pelas achas, disse que também Zaratustra viveu nas montanhas, mas que ao cabo de dez anos, segundo as sentenças de Nietzsche, precisou de voltar para junto dos seus semelhantes.

Um pouco depois, o eremita e ela, na mesma posição em que haviam jantado, estavam um dia diante o outro, sentados à mesa. No mesmo tom sereno, no mesmo ritmo apaziguado, disse muitas palavras doces. De quando em vez, a rapariga mexia no cabelo e sorria. A camisola que envergava tornava-lhe o desenho dos seios mais óbvio, como se ao mesmo tempo os guardasse e os expusesse. Montague não ouviu quase nenhuma das palavras que lhe foram destinadas.

Então, animada pelo assentimento do eremita, reparando mais na beleza dos seus olhos azuis (que as barbas desleixadas não podiam senão evidenciar), afogueada pela gratidão que sentia em relação a esse homem invulgarmente casto e sóbrio (mais atraente lhe parecia o seu carácter assim), a rapariga tomou-lhe as mãos e beijou-as, acariciou-lhe o rosto, percorreu com os dedos a comissura dos lábios e, por fim, beijou-os também. Montague nada fez para interromper estes desvelos.

III

O eremita acorda sempre antes alba. Hoje não. Os olhos, terrivelmente cansados, avistam uma leve coluna tisnada a subir e a tocar o cume da cozinha. É uma língua de fumo que sai do raizeiro sobre a laje da lareira. Sobressalta-se, de chofre, ao dar-se conta das orações negligenciadas. Sente frio. A fome revolve-lhe o estômago. Recorda-se da tempestade, que durante a noite recrudesceu. Agora que os sentidos recobram o seu préstimo, percebe também um perfume diferente no ar, pairando como uma memória difusa. Lava o rosto, medita as primeiras orações, come um pouco de pão e, então, sim, compreende a indolência do seu corpo: acode-lhe à cabeça a rapariga.

Não pode descortinar um único sinal dela. Não percebe quando, como e porque partiu. No chão, onde o saco-cama foi estendido, não se perscruta o mínimo vestígio. Somente o areão e alguma folha ressequida, algum inseto sossegado e em trânsito entre esconsos.

Montague, aturdido, lembra-se do corpo nu da rapariga, do corpo quente e meigo que roçou no seu próprio corpo e o submeteu. Mas o chão, o puro chão do seu tugúrio, nada informa sobre o amor que ali existiu.

A rapariga, cujas palavras irresistíveis, cujo sorriso invencível, cuja doçura o fizeram mergulhar num sono profundo, desapareceu. Procura um só indício de que a sua cabeça o não engana. Na pedra onde costuma lavar o seu prato, não pode avistar senão um prato. Não possui dois pratos, aliás. Em cima da mesa, na exata posição em que o deixou ontem, o De Civitate Dei de Santo Agostinho.

A demanda prossegue. Fora, a manhã mostra-se esplêndida, como todas as manhãs de sol que sucedem às noites de procela. Montague verifica o granito sem lama da escadaria, a pequena vereda de acesso sem sulcos ou estrias de calçado, o portão que permanece tão fechado como um segredo por confessar. Treme.

O que foi tudo? Um sonho? Uma visita do demónio?

O frio fá-lo tiritar. Sente-se horrivelmente só. Pela primeira vez, nesse lustro, as forças faltam-lhe. O que foi tudo aquilo? Uma epifania? Uma prova de fé a que Deus o sujeitou?

Treme. Sente-se doente. Na pedra da lareira acumula-se a cinza da noite. Nenhum calor, nenhuma chama, nenhuma centelha aviva os seus olhos. Somente um fiozinho de fumo resta no corpo ardido do raizeiro. Montague pensa que chegou o seu momento: divino ou demoníaco, o sopro da vida está prestes a expirar. Não sabe, não o censuremos, que interpretação dar a tudo isto…

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O último dia é sempre um primeiro dia

Clemens Geiger
Fotografia de Clemens Geiger

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A avenida cheia de gente, gente cheia de pressa, faz-me esquecer tudo. Levo encontrões, pisam-me os pés, olham-me como a um animal ferido (com o seu rasto de morte, largo como um cometa). Mas não me importo. Prefiro assim. Os rostos desfilam vertiginosos, belos, muito belos, horríveis, disformes. Não consigo lembrar-me de nenhum. Só da quantidade. Tantos rostos, tantas histórias, tantos eus engastados uns nos outros, tantos futuros incertos, possivelmente brilhantes, provavelmente encurtados, tantos passados cheios de mossas, tantas cicatrizes escondidas, disfarçadas pelos pírcingues e tatuagens. Da quantidade, sim.

No fim de contas, há o antes e aquele momento em que nos damos conta de que não fazemos diferença nenhuma, absolutamente nenhuma, num mundo repleto de drama, num mundo incapaz de aceitar o drama, num mundo cheio de gente com dramas e absolutamente incapaz de lidar com o drama. Não fazemos falta nenhuma, porra, nenhuma.

O que me fica na memória é a gente à margem, a gente assim como eu, a alimentar os pombos, a gente excluída do caudal, a gente velha, a gente que cisma cada movimento do corpo e o faz rodar devagar, a gente que tem a barba por fazer, a gente que veste casacões de fazenda e rugas descomunais, rugas pronunciadas e verdadeiras como grand canyons, a gente atrelada a cachorros feios e tão sujos que são mesmo uma fotografia, a gente que cheira a óleo e urina e suor e outras secreções talvez secretas.

A avenida é interminável. Todos cabem nalgum lugar. E eu, que me entretenho a não pensar em nada, penso como é engraçado isto de ocuparmos algum lugar, como algures, suspensa num andaime sinistro, há gente-gárgula, como além, no bojo prateado de um boeing, viaja quem sabe o próximo grito da moda, como ali, em frente aos espelhos descomunais das lojas chiques aporta a outra gente, a gente dominadora, a gente a quem se mostra a cabeça subitamente desalojada de chapéus e uma pequena vénia respeitosa. A avenida é interminável. Os vermes têm de esperar a sua vez. Só à noite podem mostrar-se. A noite pertence-lhes. À hora certa os rostos escoarão, trocarão de lugar. Quando a mais ninguém puder pertencer, a avenida há de acoitar estes rostos que olham o vazio e dão de comer aos pássaros. O espaço parecerá maior, desolador, gigantesco. A verdadeira solidão será, portanto, essa.

Mas, neste momento, sou apenas um corpo em movimento, atropelado, empurrado, levado na corrente. Os pés e os olhos esforçam-se por coordenar uma narrativa. A mole de rostos macera, deixa a sua impressão inumana, o seu toque desleal, voyeurista, como se todos fossem um só e um só fosse apenas um sonho. Não consigo lembrar-me de nenhum. Nem sequer da beleza ou da profunda fealdade de um olhar. Aqui sou maquinal e doente como todas as máquinas. Talvez tenha vindo por essa inconfessada razão.

No fim de contas, há o antes e aquele momento em que nos damos conta de que nada em nós é melhor, ou mais legítimo, ou mais perfeito do que nos outros, nestes todos que caminham, reptam, voam diante os nossos olhos. Não fazemos falta nenhuma, nenhuma, porra. E essa é ainda uma outra solidão, uma lídima solidão sem nome, que nos obriga a viver, a pertencer aos gestos, a ser, a durar, a existir para lá de todos os lapsos de memória e amor.

A avenida é interminável. Não sei há quanto tempo me não dou conta de caminhar. Caminho. Limito-me a não pensar. Em breve, terei todo um novo texto pronto. Não sei qual. Definitivamente, não sei.

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A solidão

Willy Marthinussen
Fotografia de Willy Marthinussen

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A televisão ainda ligada não tem réplica. O som atravessa as paredes, evapora-se ou subsome-se, não sei, transforma-se em rumor, decompõe-se em nada ou alcança o tudo, não sei. Sobre o sofá o homem respira. O sofá é invólucro da mesma tristeza: ganhou as formas do corpo, prende-o, afunda-o, dita-lhe uma espécie de submissão. Agosto. As esplanadas vemo-las à pinha, animadas, repletas de um sentimento confuso de narcisismo e inquietação. Não longe da sua praia, do seu jardim, da sua discoteca da moda. Férias de verão. Gargalhadas e ditos prazenteiros fendem as ruas. As luzes aclaram os becos, tornam acessíveis a torre da catedral e as margens do rio, por onde barcos se remansam e namoram. Há lojas abertas até tarde. Os turistas pagam com gosto. A felicidade é mais barata aqui e agora. Em contrapartida, do outro lado destas palavras, o aparato de paredes sombrias, o rumor de uma televisão, o verão decaindo, entrincheirado.

O homem ergue-se a custo. Enverga uns velhos calções de malha, uma t-shirt desbotada, uns chinelos miseráveis, pensamentos, pensamentos, pensamentos. Etilizados. Desconexos. Aborrecidos. Absurdos, na maior parte. Decadentes. A cair na nuca, ao ritmo dos goles de cerveja e de vodka, às vezes. O homem, dizem, foi outro homem. Nunca se sabe bem o que torna um homem noutro homem. Escreve. Dizem que escreveu a tarde toda. Menos e pior do que se desejaria. Escreveu.

«A noite fecha-se sobre mim. Engole, prende-me ao chão. Tenho o corpo rente a outro corpo, respiração com respiração, suspenso. E é quando as palavras são mais silêncio que o peso delas mais pesa. Como pedras chocalhando na cabeça, magoando o coração, ensanguentando a boca, elas pesam. Tenho o corpo rente à terra, rente à respiração das suas veias, rente aos túneis que escavam em profundidade até ao nada. É a consciência. Escuto tudo: a terra, a respiração, a torpe moleza dos meus pensamentos: como fui capaz de tornar-me nisto? Isto 

«A noite é um saco plástico, asfixiando. Arde-me nos pulmões. Os anos que tenho acumulados ensinaram-me pouca coisa. Aprendi de menos. Talvez seja, ao fim e ao cabo, um imbecil! Na ponta dos dedos, sobressalta-me um resto de prurido. O corpo, preguiçosamente, responde com desânimo. Talvez não seja ainda tão tarde. Respiro na respiração do vazio. Nunca é assim tão tarde. A voz inaudível da terra repercute-se nas minhas veias. Não, nunca será assim tão tarde!» 

«A noite abre alçapões temíveis, memórias, corredores interditos, escadarias para o além. Solipsista? Talvez! Nosomaníaco? Li Cioran. Niilista, antes mesmo de o ler. Incapaz de compreender o mal de que padeço, se porventura de algum padeço! Os outros não valem sequer o esforço de os sopesar na minha língua. E, apesar disso, sei que me olham como a um borra-botas. Um roto. Um descalço. E talvez não mereça o chão que trago aos pés. E talvez caminhe só e tortuosamente, como um louco. E talvez o silêncio seja já a soma de todos os ruídos que não distingo! E talvez pergunte, como outrora num poema, EXISTO?» 

«A noite revolve as entranhas, o negrume, as falsas gavetas do tempo. Sinto tudo. O ar que perfura cada alvéolo e sai de supetão, num movimento de fuga pelo espaço. As paredes cardíacas, trepidantes, monstruosamente vivas sob a pele. Os pássaros necrófagos que vêm empoleirar-se diante dos olhos. Sinto tudo. O ser e não ser da matéria. O eco. A dor macia do coração abrindo e fechando. A paz que o sono traz, quando por fim me deixo vencer. Sinto tudo. Tudo!» 

«A noite corre e escorre. Escorraça. A noite é uma espécie de morte branda. E a morte é um belo pedestal. Imagino-me morto, desintegrado, limpo, esquecido. Imagino-me da mesma liberdade dos átomos rebeldes. Corpo reingressado no cosmos. Sem medo agora da malha das metáforas, das alegorias, das ideias. Sem medo de caminhar, perdido na eterna revolução das partículas.» 

«A noite fecha-se sobre mim. Engole-me. Em breve o sono virá. Nada temo!»

O homem ressona. Ao redor, um pasmo de objetos derrubados, conspurcados, inutilmente empilhados. Lixo. O homem sabe que em breve pertencerá à mesma casta das formas não-existentes ‒ da não-formiga, da não-estrela, da não-gota de água, da não-poeira. Dorme. A televisão, sempre ligada, emite sons ininteligíveis. Do lado de fora, nalguma praça principal, risos e falas contentes. Cães ladrando. Automóveis circulando devagar. Tilintar de copos. Portas abrindo e fechando e abrindo. Lâmpadas e candeeiros. Poderosos holofotes. Torres de telecomunicações. Um helicóptero. O trapézio da Ursa. Constelações. O espaço.

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