Um inédito

Fotografia de Rasa Kasparaviciene

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A edição em linha da Der Spiegel publicou há dias a descoberta num antiquário da pequena cidade de Vauffelin de um caderno (pouco volumoso, em formato A6) com inéditos de Robert Walser, conhecido entre nós pela edição de Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos, antologia encantadora de prosas curtas, que o escritor compôs ao longo da sua (um tanto enigmática e discretíssima) passagem por este mundo.

O texto que se segue integra o corpus do manuscrito entretanto deixado às mãos vorazes que o vão dissecar. Boa ou má, a tradução é nossa. Partilhamo-la, comovidos.

Se velas por um doente e ele dorme, se o estalidar da lenha torna mais impressivo o silêncio geral da casa, se a tarde é – como todas as tardes frias e ensombradas de janeiro – propensa à meditação e quem sabe ao ensimesmamento, então talvez guardes para ti alguns instantes em que valha a pena ainda dar uso a um pequeno lápis rombudo e a um pedaço de papel.

Não existe nada que se compare à paz pungente daquele que espera. Na maior parte das vezes o relógio encontra um modo de entrar em nós e de pôr-nos agitados e doridos, porventura mesmo vazios. Não é o caso da presente situação: o crepitar da lareira e a sonolência da luz quase desmaiada nas paredes aquietam-nos os gestos.

A vizinhança de um enfermo a precisar do nosso cuidado inspira-nos uma preocupação idêntica à que se tem com um coto de vela: a todo o momento o pavio pode findar-se e a chamazinha despedir-se num fio esbranquiçado de fumo derradeiro. Mas enquanto arde, esse restinho de cera é maravilhoso, é enternecedor, é um estímulo a que veneremos o presente.

O mesmo se dirá da corda retesada, ao longo da qual drapejam as nossas camisas e cujos fiapos fazem prever esse ápice doloroso em que as duas partes se dividem para sempre e jamais voltarão a tocar-se. O quebrar da matéria é uma punção. Mas uma corda de sisal morre quando tem de morrer. O sentimento do dever cumprido não necessita de explicação ou de ser prolongado.

Termino agora, agradecendo, leitor, o teu tempo. O tempo é precioso, posso concluir que muito belo também. Um texto quando lido por outros olhos é praticamente um milagre. Nem imaginas quanto, meu bom amigo. Nem quão profundo!

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O macho

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Fotografia de Viktor Cherkasov

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Duas vezes por semana vinha Nicolau Balestra a cambalear ao longo da linha do comboio, muito bêbedo, muito zangado com o governo, muito capaz de tirar o cinto das calças e de começar a espalhar amor pela casa, vergastando indiferentemente um dos dois rapazes ou uma das quatro mocinhas bonitas de tranças loiras, que a mulher parira e que em pouco ou em nada se pareciam com o pai.

O braço firme de Rosalina Pires é que o travava sempre. Um mulherão esta Pires, uma mulher de pelo na venta, uma desenrascada.

Na aldeia todos conheciam o modo de vida desta gente. No dia de Nicolau receber a jorna, havia azeite, bacalhau seco, arroz na despensa. A seguir recompunha-se a miséria, que só não era maior porque Rosalina a seu modo encontrava meios de ir buscar o dinheiro que Balestra esbanjava na bodega com os quartilhos, com amásias, com o jogo da sueca.

Nicolau era pedreiro-alvenel. Afora isso não era coisa nenhuma. Rosalina por sua conta tinha a lavoira doméstica, o gado, a prole, a casa. E não sendo pequeno o afã, quantas ocasiões tivera ela de abandonar tudo e de meter-se noite cerrada pela beira do caminho de ferro e ir buscar o homem à taberna.

Todos conheciam o proceder da matrona. Entrava e quedava-se em silêncio à porta, segurando um grosso cacete nas mãos pendidas. Nicolau assim que a via, ou alertado pelos parceiros da jogatina, agitava-se profundamente:

– Bem, meus senhores, esta é a última… É para acabar…

E saía não muito depois da tasca, de cabeça baixa, com ar de quem adivinhava o pior, não sem antes ela lhe atirar sem piedade ou pejo à cara:

– Tens-nas certinhas!

Nicolau e Rosalina Pires habitavam uma casa antiga de pedra, bastante rústica e sem conforto que se achasse, de dois andares. No primeiro ficava a loja: ocupavam-na inteiramente as cortes, as coelheiras, os toros de eucalipto empilhados, o giestal seco, o lugar húmido das pipas e das alfaias agrícolas. Era aí que estava pendurado o jugo e levantada a carroça que a junta de bois devia puxar. Em cima era os cómodos, a cozinha, a saleta, os três quartinhos. Havia também uma retrete. Tudo aninhado e esquálido, pequeno demais, sujo demais, frágil demais.

Comiam o caldo à vez, que a mesa perto da lareira era para quatro e não para oito. E rezavam o terço ao lume, um terço mastigado e triste, a maior das noites recitado pelo pai de família. A menos que Rosalina tivesse pressa. Nesse caso, era ela quem tomava as contas do rosário e impunha a disciplina às ave-marias e às santa-marias. O marido já em ceroulas e a meter-se entre os cobertores da cama, ouvia-a em sobressalto:

– Rais parta. Tenho de ir lá abaixo apanho penso para a bicharada!

– Agora?

– Tu o que queres, homem? É um instante e fica feito!

Nicolau Balestra gostava pouco daqueles esquecimentos de Rosalina. Ela ia e às vezes demorava-se. Ia e regressava com o rosto afogueado, como se tivesse estado a malhar na eira. Não raro, Balestra adormecia mesmo e acordava num repente, como se acometido pelo susto de uma alma penada ou pelo gemido penetrante de um gato com cio.

– Ó mulher, demoras? – berrava Balestra de cima para baixo.

– Já vou, homem! Estou a apanhar para hoje e para amanhã! – resmungava a Pires de baixo para cima.

Em Póvoa de Santa Cristina todos conheciam aquela canseira. Dificilmente se ignora numa aldeia a balança torta dos machos fanfarrões ou a conduta torcida das fêmeas fanchonas.

Havia alturas em que a altercação em casa destes dois se ateava como uma fogueira alta. As moças fugiam de casa aos gritos e os rapazitos ficavam no cancelo à espreita, tão apavorados quanto as irmãs.

– Ai… ai… ai – chegava a planger-se nas paredes de dentro. Era uma voz lastimosa, de pessoa surrada, em apuros.

Foi num serão desses que os militares da guarda republicana apareceram. Apareceram mansamente, a pé, com os pesados capotes e a baioneta embainhada, com a curiosidade a estalar.

– Ó Balestra! Ó da casa!

Os ais interromperam-se logo, colhidos pela surpresa.

– Ó Balestra, podemos subir?

Nicolau assomou à porta da cozinha enfumarada, a esfregar as mãos, cheio de solicitude. O que desejavam os senhores guardas? Claro que lhes assinava o visto da ronda? Oferecia-lhes até um copo de vinho e, se os senhores guardas esperassem, ainda comiam bolo com sardinhas e um bocado de pão, que se estava a cozer e não tardava a ir para a mesa.

O segundo sargento Martins declinava. Que assinasse e eles iam à sua vida, ainda a patrulha tinha muito quilómetro pela frente. Nicolau voltou-se para a mulher e declarou brutal:

– Assina aqui tu, anda lá… Senão continuas a comer, sua filha da …!

Ela, que já havia lavado as mãos, secava-as entretanto no avental. Assinou. Depois, num tom nada amigável, deu a ordem:

– Enche aqui dois copinhos de aguardente a estes homens.

Balestra foi buscá-los ao armarinho. Nas costas do seu colete de flanela, desenhada várias vezes a torto e a direito, ainda cheia de farinha peganhenta, via-se a pá do forno.

O Balestra insistia com cara de mau:

– Só assim, minha filha da …! Só assim tu aprendes…!

E serviu a aguardente aos dois da ronda noturna, muito senhor da situação e com as costas quentes.

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O cemitério

Wilderness, Mikkel Wejdemann
Fotografia de Mikkel Wejdemann

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O cemitério paroquial de Ancohuma, na província boliviana de Larecaja, situa-se a mais de seis mil metros de altitude. Pese os nevões contínuos que se abatem sobre ele a maior parte do ano, aí celebra-se a vida como num campo de girassóis. No lugar onde cada mulher e cada homem da aldeia foram sepultados erguem-se lápides de madeira colorida, pintadas em tons de amarelo vivo, mel, limão ou ocre, com dizeres rememorativos a respeito dos defuntos e não sobre a eternidade ou acerca da dor dos que ficam e que podem ainda contemplá-las:

«Aqui mora Hernández, que gostava de comer bem e cujos peidos enchiam a taberna», «Neste lugar jaz a pequena Emília, que sabia já escrever o nome quando o Pai Celestial a chamou para junto da sua lareira», «Esta é a campa de Eva, mulher de Pablo e depois de Juan Alonso, mãe de tanta filharada como a primeira que veio ao mundo», «Aqui enfiaram os restos mortais de Romero, forasteiro encontrado em Ventanas Rojas com estricnina na boca. Dizem que era um biltre. E era».

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O ninho

Baby
Fotografia de Ummu Nisan Kandilcioglu

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Todos os anos no primeiro dia de janeiro, Artur Bentino punha as suas notas de conto a soalhar, presas por pedrinhas brancas no parapeito da janela alta do quarto. Às vezes chovia e então esperava mais algum tempo até o sol de começo de ano poder acariciar o papel.

«É para dar sorte» explicava aos poucos que ousavam perguntar.

A mulher sabia que era por vaidade e velhacaria. Assim, convenceu o amante a ir lá roubá-las, usando uma estaca com um prego na ponta em forma de gancho.

À medida que as notas se iam desprendendo dançavam um momento no ar, às voltas, e vinham depois cair no chão recoberto de lama e de bosta e o tipo recolhia-as uma a uma, raspadas já pela imundície.

«Isto também dá sorte» satisfazia-se ele com orgulho irónico.

Quando o serviço ficou terminado, a mulher jurou que uma pega-rabuda tinha acabado de levantar voo da janela, levando no bico o último dinheiro.

«E como era a pega?» desesperou-se Bentino.

«Ora, como era a pega! Há de ser como todas as outras: matreira, arisca, linda…»

Artur Bentino bem a procurou, à cata do milionário ninho que tanto lhe custara a juntar. Mas o melhor que descobriu foram duas ou três tocas de poupa, vazias, repletas de fezes ressequidas e de velhas tiras de jornal – a fazer de palha.

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O fradinho

mink, ruin, Anja
Fotografia de Anja

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Embora estivesse acostumado à solidão, o velho frade agostinho gostava de descer ao povoado de quando em quando. Fazia-o uma vez por mês. Nessa altura saciava-se de conversa, bacalhau frito, imagens do mundo capazes, no regresso, de alancarem consigo e com o asnozito serra acima.

Era o último da congregação. O mosteiro, tomado de assalto repetidamente pelos larápios e pelas silvas, decaíra a um tal estado de degradação que havia quem jurasse que partes do campanário, da sala do capítulo e mesmo do refeitório se tinham despegado num monte de entulho.

O fradinho nunca se queixava. Ia como vinha, sorrindo, com o hábito cada vez mais puído e o corpo cada vez mais mirrado. Até que deixou de aparecer.

Os homens nesse dia prodigioso de começo de inverno puseram-se a caminho e muito a custo venceram as cordas de vegetação que se lhes ensarilhavam nos braços e lhes tolhiam a marcha. Quando lobrigaram os caboucos do mosteiro, compreenderam que nada dele se mantinha de pé. Num dos retângulos de pedras muito direitas, viram o que restava de uma antiga lareira, as paredes mascarradas entre os azulejos, um panelinho de barro com uma asa.

Onde estava o frade?

Uma revoada de pombos assustou-os. Vinha de outra parte, onde velhas camas ferrugentas se alinhavam no maior silêncio. Numa delas, deitado de lado, coberto por uma manta andrajosa, sem outro teto que o céu do Senhor, encontraram-no. Junto do leito, a alimária (feita pele e osso) ainda respirava.

Os homens tremeram de piedade e de franca comiseração. Assim que se preparavam para erguer o morto, a fim de lhes darem sepultura, ele abriu os olhos e quase sem força, num levíssimo flamular de voz, saudou-os:

– Feliz Natal, meus filhos!

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Vim até cá acima e fiquei

montanha, solidão
Fotografia de Jeremy Sanders

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Vim até cá acima e fiquei.

De quando em vez venho até cá acima e fico. Fico em silêncio, a escutar muito tempo as coisas que só se escutam em silêncio, sentado num lugar pertíssimo de mim, num sítio onde as palavras me parecem aos poucos pequenas assombrações, quero dizer pequenas cabeças enevoadas, minúsculos vultos sem sentido, fósforos frios que deixei de saber deflagrar.

Fico e às tantas fecho os olhos. Às tantas as coisas fluem, as coisas vêm-me involuntariamente à boca, as coisas passam-me diante as retinas, atiram-se-me à nuca, coisas como os murmúrios da avó Amélia, coisas como o cheiro triste da murta nos dias que se seguem ao Natal, coisas como a castidade absoluta das suítes de Bach, coisas como a maciez dos seixos, como a cor fulminante do papel debaixo dos versos de Camões.

Vir e ficar é doloroso.

As memórias conhecem caminhos, encontram-me, convulsionam num modo de regurgitação. Estou em silêncio e sinto gente desesperada a querer falar-me, sinto pedaços avulsos de mim a precisar de paz, a pedir que os apague ou lhes dê uma morada acalentadora, que os compreenda ou que os exorcize em definitivo.

Vem-se cá acima e fica-se.

Fica-se a meditar na quantidade de fracassos. No primeiro romance por escrever. Na profissão mal encontrada. No amor que se abandonou em parte incerta. Fica-se a matutar na mole de sonhos interrompidos. No doutoramento por fazer. Nos filhos que não vieram. Nas viagens ao Japão e à Antártida. Fica-se a cismar na multidão de rostos que foi preciso conhecer e esquecer ao longo dos anos. No peso morto que se deixou atrelar aos tendões e não é a nossa pessoa e não é a pessoa dos outros e não, na verdade, a pessoa de ninguém. Fica-se a cair para dentro, como uma pedra num poço.

A avó Amélia era um colosso sem que o tenha sabido. Foi-o até ao fim, quando muda, paralítica, cega, se queixava em gorgolejos, em sibilâncias, em gestos que nos diziam que queria comunicar e não podia. Só os pensamentos a mantinham viva, suponho. Só teimando com a comida ralada, suponho. Só apertando-lhe as mãos e afagando-lhas e beijando-as. Só assim a mantínhamos no lado de cá da solidão. Só pronunciando devagar pequenas frases que o seu ouvido, suponho, aceitava ainda.

Venho cá acima e fico defronte a isto.

Diante desta paisagem de granitos e ervas ressequidas pela geada. Fico sem um pio, a escutar o vento, a deixar que o caracol dos anos que me leve e me traga de volta, sem saber ou poder replicar ao parto doloroso das imagens que se soltam deste movimento em espiral de ir e vir.

Venho e fico.

Fico, suponho, à espera que alguém se dê conta de como estou a ficar cego, paralisado, emudecido. À espera que me segurem ambas as mãos e me não deixem partir para o lado de lá. O lado de lá dá-me arrepios. Tenho pavor ao outro lado da solidão. Não sei se a avó Amélia pensava muito nisso. Nos fracassos e sonhos por acabar, não creio. A avó era um colosso. Suponho que os colossos nunca morrem inteiramente sozinhos e a avó era, sem o saber, um colosso. Suponho que só os fracos vivem atormentados por esse medo. O medo de levarem uma vida inteiramente desperdiçada. O pavor de saberem que nunca serão grandes, ou lembrados, ou apertados na mão.

Vir e ficar é doloroso.

As memórias conhecem atalhos, encontram-me, despoletam pesadelos. Ninguém imagina com que remorso. Com que furor. Com que que ódio.

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A igrejinha do perdão

Igreja românica com neve
Fotografia de Georgi Danielyan

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Há invernos em que o ermo alcantilado e a pequena igreja de São Benedito não se veem por causa da neve. Ela suavemente mergulha do céu níveo e negro, cai durante dias e semanas, fina camisa de camadas frias, lentas e insonoras, até desfigurar por inteiro a paisagem.

Os habitantes de Reosa-Romano persignam-se na direção do horizonte branco, porque a igrejinha lá está, escondida ao lado da grande magnólia-perene, uma e outra grandes borrões inseparáveis das outras formas ajoujadas pelo fremir do vento e pela bruma.

Dizem que na era dos cruzados se refugiaram nela cristãos e mouros, judeus e ciganos, gente foragida e gente rica, gente vilã e gente nobre. Dizem que nos lugares onde a terra acaba e o abismo se precipita todo o coração é coragem e toda a coragem uma forma de perdão. Os habitantes de Reosa-Romano repetem esta frase há demasiado tempo e, por isso, já só em parte a compreendem.

Nos dias de sol, os montanheses escalam o granito íngreme e sobem ao adro. Depois penetram o espaço escuro e silencioso do templo para rezar, para descansar ou simplesmente para saciar a curiosidade.

Desde há séculos que um velho padre espera os visitantes no confessionário. Merecer a absolvição é um feito de que vale todo o esforço. Se esse sacerdote é chamado para junto de Deus, outro toma o seu lugar. Esse velho benevolente, cuja penitência é pedir e conceder o perdão, aí nos espera desde sempre, é o que dizem.

Nos meses hiemais de dias opacos e ínvios ou nos meses luminosos da primavera e do verão, de alguma coisa hão viver estas pobres criaturas eremitas. Ninguém ao certo sabe de quê, ou como, ou onde.

Há quem afirme que tudo não passa de uma fantasia e que no interior da pequena igreja não se vê vivalma desde há mais de quinhentos anos, quando uma horda de cavaleiros cristãos, ou sarracenos, ou mercenários a soldo, massacrou todos os inocentes que dentro dessas paredes se ajoelhavam e erguiam as mãos.

Há quem afirme, pelo contrário, que tudo é verdade. E aponta uma adaga ao próprio ventre. Quem não acreditar que faça justiça, ou que retire a sua palavra.

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