ETERNA PARTIDA DE XADREZ

Serban Mestecaneanu
Foto: Serban Mestecaneanu

 

No seu escritório, cada vez mais oprimido pela carga de livros, estatuetas e objetos colhidos nos incontáveis recessos da História, o filólogo, antropólogo, poeta e religioso Carlos García-Ibañez, sorri amiúde para o vazio.

Chegou tantas vezes à mesma conclusão que não se limita agora senão a confirmar o que é para si já e apenas uma verdade apodítica: a marcha do tempo obedece a uma ordem desordenada e nós somos empurrados para o fluxo e refluxo dos acontecimentos como conchas e algas que o mar expulsa e reabsorve na praia. Só por milagre nos mantemos intactos.

Teodora era pouco mais que uma prostituta: acabou esposa de Justiniano, senhora de Bizâncio e santa. Maria da Escócia, Ana Bolena, Maria Antonieta foram poderosas rainhas e acabaram no vil cepo em que se exterminam eras, regimes, modos de vida.

As águas do devir, que elevam bailarinas a imperatrizes e decapitam aristocratas, deviam ensinar-nos alguma coisa. García-Ibañez pensa que a História adormece para reacordar na mesma cama. Os povos ganhariam em inteirar-se do passado. Mas talvez também isso fosse só um motivo mais de sonolência. Para si tudo tem de repetir-se inexoravelmente, como uma partida de xadrez que recomeça logo após o xeque-mate. E onde todos somos peões. Somente peões.

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A INTERDIÇÃO DE SONHAR

Shoayb Hesham Khattab
Foto: Shoayb Hesham Khattab

 

Qutuz, o sultão, rei dos mamelucos, decretou a proibição dos sonhos. Que ninguém sonhasse, sob pena de se lhe ser oferecida a viagem, violenta, para o mundo dos mortos.

Ninguém sonhava, portanto, no Cairo e em todo o vasto país que descia com o Nilo e se dirigia a leste, para lá do Mar Vermelho, até à Península Arábica. Ninguém sonhava. Sonhar era um veneno, tão nocivo quanto um preparado de cicuta ou a cuspidela certeira de uma naja. Por causa dos sonhos os homens acolhiam recados dos anjos e dos demónios, por causa deles erguiam esperanças, alimentavam revoluções, depunham imperadores, cortavam cabeças. Mesmo os sonhos mais comezinhos e inocentes (os que vogam no interior dos olhos das crianças, por exemplo) potenciam desgraças, inquietam a castidade das paredes domésticas, abrem grandes brechas na terracota, juntam-se aos beduínos tresmalhadores, conspiradores, urdidores de guerras e de mártires.

As mulheres apertavam grandes lenços negros à cabeça, para que as suas noites fossem tão escuras por dentro como por fora, sem estrelas, sem luar, sem oníricas imagens e vozes que pudessem ser recordadas de manhã. Os homens prendiam aos pulsos grilhetas e pesadas esferas de chumbo, não fossem as suas mãos tentadas a levantar-se no imo do deserto e segurar as rédeas de um dromedário, o cabo de um alfange, a frente de uma rebelião. Às crianças amordaçavam-lhes a alegria, o entusiasmo, a euforia. Tão pouco lhes destapavam a boca durante o descanso, porque muitas vezes é na calada do sono que se lavanta mais alto o mais fundo e irreprimível dos destinos.

Foi então que nasceu a lenda. Alguém se lembrou de afirmar que comendo tâmaras se obtinha o silêncio e o segredo tão asperamente procurados por toda aquela geração de não-sonhadores. Era como a resina da goma arábica com que se calafetava os interstícios no adobe para impedir que os escorpiões penetrassem sorrateiros nos quartos. Comendo tâmaras, ficava a boca tão saciada e tão fechada quanto a gula do sultão quando lhe traziam jovens amantes para serenar as desconfianças e horrores noturnos.

Em todos os bazares do reino tornou-se este fruto mais procurado do que o ouro ou a seda. Transacionava-se um punhado de tâmaras secos por caxemira pura.

Por essa razão deixaram os pobres de poder comê-las. Por causa dessa fome, não puderam nunca os pobres deixar de sonhar.

MUITO OBRIGADO!

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Pompeu Miguel Martins, João Ricardo Lopes e Paula Morais

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Não podia deixar de me dirigir e de agradecer a todos os amigos que ontem viajaram até Fafe e/ou se deslocaram ao auditório da Biblioteca Municipal para assistirem ao lançamento do meu O Moscardo e Outras Histórias.

Foi magnífica, afetuosa e soberba a sessão. Revi pessoas de quem gosto muito e de quem há muito os trabalhos da vida me vinham separando. Fui surpreendido pela presença de ex-alunos, colegas, vizinhos, camaradas, leitores que quiseram conhecer os meus contos, empregando nas suas palavras de afeto o que na vida em sociedade há de mais belo e bondoso: a estima!

Agradeço, por isso, à Regina Novais e ao Renato Leite o terem trazido Mozart ao convívio dos presentes. E com que doçura!

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Assistência no Auditório da Biblioteca Municipal de Fafe

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Agradeço ao vereador Pompeu Miguel Martins o introito generoso e intimista que proporcionou, recordando como ninguém o faria o meu percurso literário, desde a pedra que chora como palavras e o Prémio de Revelação de Poesia Ary dos Santos, que a ambos nos fez jornadear até Grândola no outono de 2001 (17 anos passaram já).

Agradeço à Paula Morais a fantástica recensão que escreveu e que partilhou com o público, aventurando-se pel’ O Moscardo com a segurança de um mestre, que é, e de uma amiga, que tem sido. Impagável é esse gesto de me ler tão bem e tão em profundidade. E tão repleta de simpatia!

Agradeço à minha irmã Catarina a produção deste vídeo, que me enche de orgulho e de alegria.

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Sessão de autógrafos

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E agradeço-lhe, ainda, a ela, à Marta e à Céu o apoio logístico dado durante a sessão, na organização e na venda do livro.

Agradeço aos funcionários da Biblioteca Municipal, em particular ao sr. Joaquim Gonçalves e à Carla Vaz, ligados à preparação do espaço e à receção dos visitantes.

E no fim volto ao começo deste agradecimento. A todos os que viajaram (do Porto, de Leiria, de Lanzarote, de Cinfães, de Matosinhos, de Póvoa de Lanhoso, de Felgueiras, de Guimarães, de Santo Tirso, de Braga, de Famalicão, de Amarante), a todos os que sendo de Fafe (tendo porventura tantos outros afazeres) não quiseram deixar de me acompanhar neste passo, o meu MUITO OBRIGADO!