História do Padre Angélico

Vulcão, Kanenori
Fotografia de Kanenori

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Saiu de Fiumicino em direção à Sicília, como faz todos os anos. Entrando no vulcão, cujo cone fez o tempo parcialmente derruir num amontoado de lixo basáltico, põe-se a alisar o solo cinzado e sujo onde, com a ajuda de uma vara, faz perfurações para nelas sepultar bolotas de carvalho vermelho. Lança-lhes um gole de água e persigna-se. Depois é com Deus e com a natureza.

Um ato tão incompreensível pede pelo menos uma explicação excelente.

Num dos seus sonhos de juventude, a pessoa de quem falamos viu-se num bosque primitivo, em cujo chão folhas recortadas brilhavam sob o efeito da lua e onde uma neblina translúcida se mexia a cada passo que dava. Não havia aí ruídos, intrusos, serpentes tentadoras. Via-se, nesse sonho, tão velho que as suas mãos aparentavam o aspeto calcinado de raízes. E tão feliz que não duvidou que o único lugar da terra igual ao de Adão fosse um onde a terra se pudesse reinventar, lavando-se (como num banho de vitriolagem) do bodum humano.

Aos vinte e cinco anos, já depois de ordenado, deixou aqui as primeiras sementes. Agora, no miolo do caldeira adormecida, vão brotando a esmo os miraculosos troncos da sua teimosia. Ou da sua loucura. Decidiu que a localização da choupana fica para mais tarde. Quando as árvores tiverem atingido a altura de um ciclope, virá construí-la, edificar o seu eremitério, provar a modernidade do seu sacrifício.

Onde antes era uma garganta para o inferno, Nosso Senhor quererá outro Éden. Desta vez sem Evas ou répteis. Sem anjos com espadas de fogo.

Um ato tão incompreensível deve ter outra explicação que desconhecemos.

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Via-se bem

Mulher idosa, por Panfil Pirvulescu.
Fotografia de Panfil Pirvulescu

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A velha, via-se bem, lacrimejava. Não havia meio de acender o fogão maldito. Já por duas vezes os dedos trémulos haviam precisado de imiscuir-se no buraco do serrim e de retirá-lo aos bocados. Recolocou o bastão numa das bocas e pela terceira vez, via-se bem que com irritação, pôs-se a peneirar a serradura para o seu interior. Depois com o cabo da foice começou a comprimir as aparas lentamente no espaço em volta. Vinha-lhe à cabeça a história do aerograma: que dor tão funda para aquela família! Retirou o bastão com cuidado, de modo a aguentar o espaço aberto no miolo do serrim e de seguida lançou pelo largo orifício um bocado de papel a arder. Era uma tarde inusualmente fria, não se recordava de um julho assim. Curvou-se mais um pouco e recomeçou a soprar. Fazer deflagrar a chama exigia perícia, paciência, temperança. A velha não tinha filhos, mas não os ter tido não significava que não se doesse da dor dos outros. De dentro do tubo mole das aparas começou a crescer uma língua de fogo. Dentro da cozinha às escuras, o fumo rodava, entretanto, mais espesso, mais azul, mais implacável. Fazia arder os olhos. A velha, via-se bem, chorava.

Os rapazes iam para África a mando do governo. Iam e às vezes não voltavam. Como se governavam lá não o sabia a velha, que fora sempre apenas senhora do seu mundo, enterrada desde a infância nos campos e nos montes, nas singelas coisas das pessoas simples. O filho da Aninhas foi dos tais: levaram-no de pé e trouxeram-no dentro de um caixão selado com chumbo. Uma mulher, ainda que velha e solteira, dói-se dos destinos funestos dos outros. Na solidão da cozinha podia soltar as lágrimas, ainda que lágrimas dolorosamente paridas no silêncio lágrimas e talvez estéreis. Sobre as bocas do fogão colocou as grelhas e sobre as grelhas as pequenas panelas enegrentadas. África é longe, a infância é longínqua, a morte é ainda mais distante, ainda mais intransponível. Pobre rapaz!

À hora habitual, a moça subiu o lanço de escadas e deu a fala acostumada.

– A bênção, madrinha!

– Oh, filha, Deus te abençoe!

– Venho da casa da Soledade. Venho parva…

– O que foi?

– Não sabe o que aconteceu ao Sê Pereira e à Aninhas?

– Já soube, filha. Já soube…

– Chegou um aerograma da Guiné, do Torcato.

– Já sei, filha. Já sei…

A velha regressou ao bolso do avental. Limpou o canto dos olhos com o mesmo pedaço de tecido esquálido onde se assoou a seguir. Seria um daqueles gestos mecânicos que repetimos sem pensar. Depois serviu-se de uma bacia com as batatas e a cenoura que descascou com uma tristeza doente. Que espinho para uma família receber um aerograma do Ultramar um mês depois de fazer o funeral ao filho que o enviou!

– Acho que foi para uma gritaria ontem à noite. Coitados…

A velha soergue o rosto sem dizer nada.

– O Torcato mandava dizer que estava bem, que graças a Deus já pouco faltava para acabar a comissão… que neste Natal já cá estaria para casar com a Rosalina e começar a construir a casa…

Lá atrás, num dia de nevoeiro, uma mulher bastante jovem vê-se engolida pelo desespero. Uma outra, mais adulta, sopra sobre um pedaço de pedra, onde o serrim teima em não arder. «Tudo se há de arranjar, tem calma rapariga.» O fumo circula como uma cortina ofensiva, dá volta às paredes mascarradas de uma cozinha onde o mais belo fruto da vida está guardado, envolto num cobertorzinho macio. «Tem calma, rapariga. Tudo se há de arranjar. Essa criança terá um pai e uma mãe e tu terás uma vida pela frente.» «Como será isso?» «Confia em mim. Se vais para a França, deixa-a a comigo. Tudo se há de arranjar.» «Vossemecê o que fará com o menino? Cria-o por mim?» «Não te aflijas. Nosso Senhor pensa em tudo, ele há de ter pai, mãe e casa.»

– Ai, madrinha. Uma pessoa fica maluca. A Aninhas queria tanto que o marido livrasse o Torcato da tropa… Dinheiro não lhes falta, nunca faltou.

– Sabe Deus o quanto ele tentou.

– Olhe que não é o que se diz por aí…

– O povo o que sabe? O povo fala com peçonha, que é para isso que o povo serve.

– Oh, madrinha. Se ele quisesse… O moço ainda agora estava vivo!

– Cala-te, rapariga! Não sabes da missa a metade… O Pereira bem quis untar os beiços a muita gente, mas os do governo não deixaram…

A noite demorava. A velha retirava de outra bacia as folhas carnudas da troncha para as inspecionar. As palavras, via-se bem, saíam-lhe penosas, amaras, pesadas. O nariz, via-se bem, pingava. Os olhos, via-se bem, pareciam pedrinhas em brasa. Uma devastação nova caía ali, como um pesadelo renascido. Talvez dissesse à rapariga para meter um punhado de caruma e uma pinha na lareira e umas achas e um toro. Não se lembrava de uma tarde de julho assim tão fria.

Dentro da sua cozinha, apenas alumiada pelas duas bocas do fogão rudimentar, sentia-se fulminada por uma estranha traição. Vinham-lhe sempre à cabeça o aerograma, as esperanças do rapaz, as malditas quelíceras da guerra, os homens do governo que arrancavam filhos às famílias para os lançar na imensa África dos caixões numerados e chumbados. A velha, via-se bem, secava a amargura. Era preciso, em todo o caso, suportar a vontade de Nosso Senhor, fazer o caldo, sobreviver.

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Ludro

dunas, dunes
Fotografia de Peggychoucair

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Perder umas eleições como as que perdeu Rubens van der Meer no ano passado é um golpe duríssimo. Primeiro sentiu uma fúria incontida em relação à maioria de idiotas neerlandeses que preferiram o seu oponente, Andries Michels, um tecnocrata corado e mentiroso, nascido nos viveiros políticos do partido liberal, incapaz de uma ideia desempoeirada e de uma palavra autêntica. Depois, aos poucos, deu-se conta de que o molestavam os corredores, os assentos do seu próprio partido, onde se mastigava a mesma doutrina e onde medravam à sombra cogumelos tão venenosos quanto os que via do outro lado da bancada parlamentar.

O desencontro progressivo com os meandros deste ofício de governar e antigovernar conheceu um episódio significativo na manhã de 17 de março.

Nesse dia e após horas consecutivas de chuva torrencial, Haia acordou num caos de sinalização luminosa, barreiras de proteção, agentes da polícia com oleados gesticulando veementemente: por toda a parte se via água a emergir das sarjetas, uma água suja, salgada, malcheirosa. Rubens van der Meer considerou, ensimesmado, que se usassem na câmara baixa as mangueiras dos bombeiros e lavassem com elas os gabinetes, as galerias dos deputados, a boca dos membros do governo, a massa vil de todos os que ali fazem carreira, imaginou se usassem água de pressão em quantidade suficiente para uma higienização razoável, sairia um enxurro tão turvo, tão porco, tão podre como esse ludro que paralisava as ruas da cidade naquele momento.

A decisão de se demitir não apanhou ninguém de surpresa.

E, porém, todos se apressaram a comentar a sua coragem e retidão, a remeter-lhe mensagens fraternas de solidariedade.

Rubens van der Meer não respondeu a nenhuma delas. Em vez disso, partiu em silêncio para a ilha de Schiermonnikoog, onde comodamente se instalou com a mulher, com o cão e com a biblioteca.

Na época boa, quando os ventos amainam e o mar vem enroscar-se nas dunas recobertas de gramíneas, vemo-lo caminhar lentamente pelos longos areais, descalço, sem telemóvel, aspirando em grandes sorvos o ar frio. Não podia imaginar que a fala oceânica possuísse diferentes fonemas. Nem sequer que, entre os grandes penedos húmidos, os belos ostraceiros de bico alaranjado pudessem exibir um talento tão ostensivo. A sua missão não é outra senão criar esquecimento.

Reconheçamo-lo: a obra mais pura de um homem é justamente essa intrigante forma de apagar memórias inúteis.

Perder umas eleições como as que Rubens van der Meer perdeu no ano passado pode ser a melhor coisa que sucede na vida de um homem. O arquipélago frígio é um território delicado, ele próprio fruto de um combate imenso. Quando a mulher – a bela Margriet de olhos verdes-abacate – o alcança e o abraça, não duvida que as pequenas coisas são as únicas por que vale a pena entregar a alma.

E, no entanto, não encontrou ainda um modo de esvaziar o seu ódio, os seus múltiplos ódios guardados e entranhados, o seu sentimento de justiça por cumprir. Um dia (sabe-o no mais fundo de si) espera ainda o poder de se desforrar…

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Um bom pai

Raffaello Sanzio - A Sagrada Família com cordeiro, 1507
Raffaello Sanzio, A Sagrada Família com cordeiro, 1507

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Pelas mãos do Dr. Paul Gilbert passaram vezes sem conta os manuscritos descobertos nas cavernas de Qumran, perto do Mar Morto, e também os papiros encadernados em couro desenterrados em Nag Hammadi, ou os que se acharam no túmulo de Jebel Qarara.

É universalmente reconhecido como um dos maiores especialistas da Bíblia massorética, uma autoridade na leitura (das diversas versões) dos evangelhos canónicos e dos apócrifos, autor de inúmeros ensaios que se tornaram uma referência no mundo académico (por exemplo esse best-seller A verdade ou a sombra dela nos Evangelhos Gnósticos, dado à estampa não há muito tempo publicou pela The University of Chicago Press).

Resta acrescentar que domina o aramaico, o hebraico, o grego (incluindo o dialeto koiné) e o latim, entre outras línguas antigas de que a civilização se vai desapegando. Não fosse a unânime aclamação, seria alvo certamente da nossa inveja mais grosseira.

Ao Dr. Gilbert confiaram o texto agora mesmo vindo à luz do deserto nas montanhosas imediações do Mosteiro de Santa Catarina do Sinai. É um documento antigo (plausivelmente dos séculos III ou IV, porém, e com grande pena da comunidade científica, pouco preservado, que contém frases enigmáticas escritas em copta.

“Enigmáticas” é dizer pouco. Talvez “controversas” fosse adjetivo mais apropriado. O Dr. Gilbert suspeita tratar-se de um novo evangelho, que em breve há de nomear e dar a conhecer ao mundo.

Eis um trecho em que concentrou a sua atenção.

«…e então, o menino alegrou-se. E Maria alegrou-se com ele e também José se alegrou e as servas. Da fonte brotava um manancial de água fresca onde vinham as aves do deserto saciar-se da sede. Dela beberam Jesus, Maria e José, os servos e as servas, as alimárias e os outros animais.

Havia por ali algumas figueiras com os seus frutos. Tendo-os visto Jesus, a uma trepou sem conseguir alcançá-los, e posto que se desequilibrou e caiu e magoou, chorando pelo sangue que aflorava à palma das mãos, José – cheio de bondade – o levantou e consolou, lavando com a água da fonte as feridas e pondo sobre elas a sua saliva para as cicatrizar.

Maria, que a tudo assistiu preocupada, considerou como José, seu esposo, era um bom pai, amigo do menino, e de si e dos servos e servas, temente ao Senhor, e generoso nos pequenos gestos que fazia. E, assim cogitando, secretamente se regozijou como mãe e esposa e mulher, e pôs em José, apesar de a sua idade ser distante já da juventude, todo o seu amor…»

O Dr. Paul Gilbert releu cada uma das frases traduzidas. Teme tê-las traduzido mal. Encontra nelas uma porção maravilhosa de heresia e de amor. Quem terá composto semelhante discurso? Que amor é esse que tão confusamente se insinua?

No seu íntimo, Paul rejubila: estas palavras são uma lufada de ar fresco no corredores bolorentos em que se acamou ao longo dos séculos a piedade mística de Maria.

Vem-lhe à memória a História de José, o Carpinteiro, narrada pelo próprio Jesus. Um bom homem, um pai ancião que morreu aos cento e onze anos e cujo corpo jamais seria tomado pela podridão. Tê-lo-ia amado a jovem Maria de um modo humano, aprendido com os anos, com a maternidade e com o sofrimento?

O Dr. Gilbert lê e traduz. O papiro é fragílimo. Sente vertigens, quase, de lhe tocar!

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A divergência

Dylan Gillis
Fotografia de Dylan Gillis

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«Pimenta no cu dos outros é doce» respondeu com a costumada contundência Venceslau Rodrigues.

E tendo-o dito, encarou o chefe, um indivíduo que fora homem e sorria agora petizmente, falsamente, mansamente, um tipo que se pretendera grande e luzia agora numa vermelhez apequenadora e terrível, um nédio que enganara três partes do mundo e que agora segurava nas partes extremadas da calva – hemisfericamente ridículos e ralos – tufos de uma pilosidade suja, situada sobre um crânio balofo de onde lhe saíam, por hábito, frases ocas, melódicas, melosas, idiotas.

Venceslau detestava-o. Detestava-o como se detesta um traste. Como se detesta um vendido. Um pulha. Aquele chefe era uma puta política.

«Não conte comigo. Não entrarei nesse seu jogo, Mascarenhas. Não mesmo!»

O corado recompunha o sorriso, recebia a negação com regozijo íntimo, numa mistura antecipada de ressentimento vingável e de vingança exemplar.

Escutava o vogal como o escutavam os outros todos na mesa em forma de ovo, na mesa que era a sua cabeça cintilante e ovular e quase lisa.

«Meu caro, Venceslau: o Partido (pronunciava partido com uma entoação magnífica, com uma oclusão artificialíssima da letra pê, de modo a torná-la mais explosiva), como bem sabe, nunca prescindiu do direito de cada um opinar ou de manifestar as suas convicções, ou de proferir as suas opiniões, ou de discorrer sobre as suas opções. Sempre foi apanágio deste Partido ouvir, debater, conciliar. Aprovo muito esse seu impulsivo verbal.»

O nédio olhava em volta para reclamar a unanimidade.

«O Venceslau faz-se vincar pelo apelo do coração, o que muito louvo. Este Partido, mau grado as apreciações da comunicação social e de alguma oposição, é um Partido permeável à multiplicidade de tendências e juízos…»

Na mesa comprida, oval, cintilante, sem pó, repleta de excelentes canetas de aparo e de impecável papel, os outros rostos viam, ouviam e calavam com sossego e naturalidade. A questão extremava-se. Era uma divergência entre o vogal Venceslau Rodrigues e o presidente-chefe Pompílio Mascarenhas. Uma quezília quase pessoal.

Nestas ocasiões, deve imperar o máximo silêncio, o máximo mutismo, a máxima inexpressão. Quando muito, um rosto destes (que veem e ouvem e calam) aspirar o oxigénio com um pouco mais de veemência, pode arquear as sobrancelhas, principiar o que em princípio há de parecer uma tossidela. Mas sem certezas. E, por isso, o melhor nestas lutas é não tossicar, franzir o sobrolho, respirar.

«Conheço bem a pluralidade e a democracia deste partido.» redarguiu o outro. «O que o senhor pretende é criar uma caça às bruxas cá dentro. Quer expulsar os incómodos, ponto. Admita-o, Mascarenhas! Propõe uma revisãozinha estatutária, aperta a malha, às tantas acusa, depois persegue, por fim expulsa.»

Venceslau Rodrigues falava para o invisível. Na mesa comprida e oval e cintilante, sem pó, as suas palavras caíam num dos pratos da balança. No outro sopesava o sorriso maligno de Mascarenhas. O silêncio era o fiel, a travessão, o cutelo, o próprio ato de avaliar. A questão extremava-se. Era uma divergência.

Nestas coisas, a inexpressão é imperiosa. Leitor, nem um cocegar nas mãos, nem uma tremura nos olhos, nem um pio!

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Páraic O’Reilly

Patou Ricard
Fotografia de Patou Ricard

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Dezembro verte uma fina camada de vidro sobre as casas. Em toda a parte doem os nós dos dedos e os ossos. Páraic levanta as golas do sobretudo e sai da taberna. Na Irlanda, a lua cheia é neste mês uma presença transfiguradora: os telhados e chaminés húmidos das aldeias, os bosques e rios atafulhados de velhas divindades mágicas, os promontórios cheios de espuma lá em baixo, tudo para onde o nosso olhar se dirige espelha uma majestade que as palavras não sabem dizer, tal como acontece nos sonhos. Páraic vê nessa iluminação (e em nenhum outro lugar mais do que nela) a presença antiga e visceral de Deus. Não o entendem.

Desde que abandonou o mosteiro (porque foi monge este Páraic O’Reilly), escreve, bebe e às vezes ensina. É vagamente o que se imagina ser um poeta e sem dúvida o homem mais só em todo o condado de Clare nesta noite solsticial de vinte e três, ou vinte e quatro.

Emborcado o último gole da última cerveja em Killarney, toma a resolução. Vem caminhando perpendicularmente ao bojo negro da Catedral de Santa Maria, onde os coros locais ensaiam já, ou ainda, cânticos de louvor ao que nasceu e ao que há de nascer nesta data. Páraic mete-se no carro e arranca para norte. São duas horas e meia, a andar bem, mas vale a pena.

Aqui viveu a infância, aqui vive ainda a melhor parte de si. Páraic sente o formidável cheiro do mar misturado com o do campo. Ardem-lhe os olhos, a garganta também dá sinal de si. Não será por muito tempo. Encontra-se pertíssimo das falésias de Moher. A meia-noite não tarda. Calculou com minúcia cada etapa da viagem. Abandona o automóvel num estradão, espiado somente pelo olhar atónito das corujas, e avança em passo firme até ao extremo do penhasco onde ergueram a Torre O’Brien.

O revérbero lunar nas águas do Atlântico hipnotiza-o. A beleza das coisas não pode provar senão a magnificência do Senhor. Os homens deviam contemplá-la assim, amá-la sem limites ou subterfúgios. De nada serve rezar se não se compreende o encantamento da perfeição divina. Desde que abandonou a condição de monge, foi-lhe ministrada por completo a lição mais dolorosa da sua vida: os caminhos do Senhor são, não apenas insondáveis, como sobretudo paradoxais. É um eremita, um pária, e conhece melhor do que ninguém o significado da busca de redenção, agora que passou à vida secular e se sente odiado por toda a gente.

Lá ao fundo as ondas fosforejam, o vento glaciar empurra-o, todos os seus sentidos o impelem a seguir em frente. Liscannor oferece passagens excecionais para o outro mundo: um passo avante e será um salto, duzentos metros de voo e o fim de todo o seu suplício.

Mas é, então, sugado para o âmago de um círculo de fogo. À sua volta, à meia-noite em ponto, uma claridade terrena acende-se como por milagre. São fogueiras altas, deflagrando desde as escarpas de Doolin, a norte, até aos promontórios de Baile an tSéipil, a sul. Páraic ouve, de chofre, um cântico levantar-se, nascido na garganta de centenas de mulheres que ali de súbito, será um prodígio, surgem do meio das trevas, vindas do nada.

É uma festa pagã, um ritual de que ouvira falar uma vez há muito, mas em que não acreditara. Talvez em honra de Dagda (deusa da sabedoria), ou de Fand (deusa do mar), ou de Tan Hill (deusa do fogo), ou de Arianrhod (deusa do lar), ou quem sabe de Aine de Knockaine (fada do amor e da fertilidade). A vozearia multiplica-se com o rufar de tambores e guizos e ululantes saudações ao inverno que chega.

As mulheres dançam frenéticas, percorrem o manto esverdeado do litoral e atiram os braços à lua cheia. Depressa engolem na sua roda Páraic, apertam-no contra os seios e as coxas, beijam e acariciam-no. Trazem-no de volta à vida para que nelas produza a vida. Esta, insuflado por uma espécie de êxtase orgíaco, cumpre. Cumpre com todas as suas obrigações, não sabe como, nem com quem. Dizem que nessa noite gera setenta filhos.

Evidentemente que as lendas mentem. Do sémen de Páraic O’Reilly vêm ao mundo, quem sabe, sete, três, um filho, talvez nenhum. Setenta, juram por cá.

E que diferença faz?

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Um pedreiro

Fernando Silveira
Fotografia de Fernando Silveira

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Era um pedreiro quase analfabeto, originário de uma das aldeias mais recônditas de França, daquelas que vemos poisadas como ninhos de grifos nos píncaros das montanhas. No entanto, as suas mãos cortavam, cinzelavam e ornavam os blocos de granito com a prodigiosa sabedoria com que os autores escrevem tratados.

A catedral precisava de obras, por isso, de mãos como as suas. Subiu a um lugar tão alto que nele não se podia caminhar sem o poderoso mal das vertigens. Ficava no campanário, acima do vigamento e dos sinos. Aí, mal disfarçada por teias de aranha, lia-se a seguinte inscrição:

LUCIUSC RECTOR FABRICAE
ANNUS DOMINI MCLXIII

Não compreendeu o que dificilmente podia ler. Também pouco diziam as duas linhas abertas com o escopro. Nelas apenas o nome daquele que no passado conduziu os trabalhos de construção do imponente e maravilhoso templo – outro montês e iletrado, a quem o tempo destruiu o rasto.

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