Tudo gente boa

Rui Palha
Fotografia de Rui Palha

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Sempre foi um defeito considerável este meu hábito de meter conversa e querer conhecer as pessoas. Não consigo ficar-me pelo «Bom dia», «Boa tarde», «Como está?», «Como tem andado?». Às duas por três, estou a saber a alcunha, a parentela, a história do divórcio, os resultados dos exames médicos, os sonhos de infância de toda a gente. E a compreender, a consolar, a aconselhar, a passar a mão pelo ombro, a dizer «Vai ver que sim! Vai ver que sim!». E a contar algo meu, a explicar que isto custa a todos, a mostrar que não há nada mal nenhum em ser-se frágil, querendo ser-se forte, nas coisas que nos tocam mais fundo.

Sempre fui incapaz de ignorar uma boa história, mesmo se para a conseguir me arrisco a uma reprimenda. Porque é fácil exasperarem-se comigo, pelo tempo que demoro nas lojas, na rua, no gabinete, na sala de espera, no parque de estacionamento. Só para me despedir do colega, da moça do balcão, do amigo reencontrado, do pedinte, do transeunte estrangeiro (de guia turístico em punho).

‒ João, vens?

‒ Já vou, amor! Espera só um bocadinho…

Aprendi este ofício com Maria Antonieta, vendedora ambulante, peixeira, na cidade do Porto, quando lá vivi, nos tempos universitários. Aprendi com esta profissional da psicanálise o costume de ler nos olhos e de entrar, com licença ou sem ela, nos corredores complicados da alma e da cabeça de cada pessoa. Aprendi-a como se aprende o jargão, ou uma anedota, ou um trejeito, ou seja, à conta de tantas vezes conversar consigo, de me rir consigo, de lhe entregar confidências, de lhe escutar outras tantas à puridade.

‒ Olha, olha… O senhor doutor da mula ruça!

‒ Bom dia, dona Maria Antonieta…

‒ Ó caralho, que cara é essa?

‒ Cansaço… Estive a fazer noitada…

‒ Menino, cara de enterro não faz dinheiro! Cara de gente é que é sempre para a frente!

E trepávamos os dois a escadaria íngreme da rua da Bandeirinha; ela, de avental plástico e com a canastra sobre uma rodilha na cabeça, saracoteando as ancas; eu, com o saco a tiracolo e a Teoria da Literatura do Aguiar e Silva debaixo do braço. Enquanto não desembocávamos na praceta, ficava ao corrente da humanidade vizinha: das maleitas e da solidão da dona Esmeraldina, octogenária com filhos mas sem família; dos cornos do Freire, a quem sempre faltou coragem para o suicídio; dos calotes da Magali, beldade da rua que diziam ser acompanhante; da condicional do Francisco Terra, regressado meia dúzia de dias antes de Paços de Ferreira.

‒ Tudo gente boa. Conheço-os como a palma da minha mão…   

E eu, dividido entre as mamas da Magali e o descontrucionismo de Derrida, a aceitar a explicação.

‒ Tudo gente boa… Dava um rim por esta gente, menino… São meus fregueses e meus amigos… Quando for dar aulas, vai ver como se afeiçoa depressa à miudagem…

‒ Sei lá se vou dar aulas…

‒ Ó caralho, que anda você a fazer com os livros?… A passeá-los?…

Aprendi a ir ao fundo das coisas, a deitar a rede onde o parece ser em menor número e miúdo, quase insignificante. Aprendi-o com jeito, com modos, com arte, com a intuição de que por detrás de cada rosto se esconde uma vida, com o respeito que se exige a cada mágoa e a cada miséria.

‒ Ó Xico, fica lá com meia dúzia de chicharros, homem!

‒ Hoje não.

‒ Caralho, se tos dou, é porque hoje vais ficar com meia dúzia de chicharros…

E o Xico anuía, com o cigarro amolecido, barba por fazer e olho inseguro, relampejando a cólera e a aguardente.

‒ Olha lá! Tira-me esse cu do sofá e vai dar uma volta! Deita-me o olho ali à velhota. Ela que tome o remédio. Se precisar de ir à farmácia, diz-mo tu, ouviste? Tira-me esse cu de casa…

E o Xico dizia que sim com a cabeça, agradecia em monossílabos, aceitava um pouco de luz pelos intervalos da sua paliçada.

Fiquei com o costume. Absorvi-o à medida que me foi parecendo ser mais e mais urgente espalhar essa luz por outras humanidades. Porque a humanidade, em geral e decerto em particular, vive como uma toupeira, escavando às cegas e vivendo sem alegria. Sei que irrito, que aborreço, que prolongo um simples encontro casual, uma compra, um pedido de informação, um «olá», num acontecimento, às tantas numa gargalhada, algumas vezes numa lágrima à esquina do olho.

Tenho escutado reprimendas, avisos, ameaças. Tudo porque acredito nas coisas boas que guardamos em silêncio. Porque gosto de viver menos depressa e ir ao encontro da alma. Porque, como a varina, prefiro o ritual da luz, a multiplicação dos gestos e das boas palavras.

‒ Tudo gente boa, menino…

Ela, indo-se embora, deixando um rasto brilhante de escamas no empedrado. E os moradores à janela, a cismar, a fumar, a esperar pelo dia seguinte, pela hora do aceno, do cumprimento, da companhia.

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Gosto de conversar contigo

Frank Decker
Fotografia de Frank Decker

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Gosto de conversar contigo. Gosto da tua voz, que é meiga e cheia. Gosto dos teus olhos, caindo e recaindo sobre os meus, tão devagar como duas pedras em câmara lenta. Gosto das tuas palavras. Do teu perfume. Do modo como apanhas o cabelo e penteias as farripas tresmalhadas. Às vezes nem te oiço. Sinto apenas a percussão doce das frases a massajar-me a cabeça. E (nunca to disse) apetece-me mergulhar no teu colo, deixar que me embales, adormecer a teu lado.

A vida é tão igual a si própria. Somos todos tão escravos dela! Tão incapazes de sentir. Como se pudéssemos ter dentro de nós cabos e fios e fusíveis, em vez de sentimentos. E, por isso, um dia disse isto.

– Um dia acabamos morrendo sem termos sequer começado a viver!

E tu sorriste. Era um dia de final de outono. E tu passaste a mão pelos cabelos. Era uma daquelas tardes em que o nevoeiro parece chegar de longe e atravessar a janela e engolir tudo em nós e ao redor de nós. E tu disseste. 

– Acho que tens andado distraído, Xavier! Tens mesmo de abrir os olhos… 

E o nevoeiro vinha de longe, de fora, do fundo. Passava pela janela como um exército marchando, como uma boca devorando a paisagem, como um buraco absorvendo os pensamentos. E eu senti-me tão mole, tão aluído, tão triste que não encontrei palavras e foram elas que se disseram sozinhas. 

– Não ando distraído. Já não consigo é distrair-me. Já vivi tudo. Já sei tudo. Já adivinho tudo. A vida é a porra de uma repetição! Nem um milagre me podia salvar agora. 

E tu sorriste. E o teu sorriso era um astro frio, alumiando a anos-luz. Tocaste-me o rosto, deixaste os olhos cair, soar no imo do poço, afagaste-me o cabelo, meneaste a cabeça, disseste. 

– Estás doente. Precisas de curar-te. Essa tristeza é uma sombra maldita, a pesar toneladas de um peso morto e sem justificação. És tão bonito, pá! E tão infeliz! 

E eu sinto. Não tenho medo de sentir. De experimentar de uma ponta à outra os impulsos elétricos do medo e da surpresa e da desilusão. Nada receio. É como uma vertigem. É como fechar os olhos e ir. Já vivi tanto. E, no entanto, os teus olhos poisaram em mim e puxaram-me. Como um magnetismo sem explicação, eles alavancaram os meus olhos, fizeram-me agarrar uma réstia de luz e caminhar. 

– Gosto de conversar contigo! 

E o teu abraço é desde então uma casa. Nunca na vida tive tanto medo. O teu abraço apertado faz-me sentir desde então uma criança renascente. E eu sinto uma mistura de tortura e de prazer quando me tocas e o teu perfume e a tua voz e os teus olhos aquecem as minhas tardes enevoadas. 

– Tens de abrir esses olhinhos! 

E dou comigo a pensar nos teus cabelos. E a ouvir pela primeira vez as tuas palavras antigas. E a sair de um túnel terrível. E a escutar outra vez o silêncio das ervas e o rumor das coisas que havia esquecido nos meus olhos. E dou pela paisagem descobrindo-se, desembaciando-se, desimpedindo-se. E talvez me apeteça dizer-te palavras novas, enxutas, belas como grãos de cereal e puras como o toque das unhas na pele, como as tuas mãos finas e firmes. 

– Não ando distraído!

E tu, abraçando-me, acalentando-me como um sol inesperadamente crescido entre as nuvens, tu beijando-me como um milagre, tu sorrindo como um vidro amplo e sem mácula, completas a última frase. Que trago comigo. Que levarei comigo.

– És tão bonito, pá!

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O homem que pedia cigarros

Foto: Tatsuo Suzuki
Fotografia de Tatsuo Suzuki

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O homem chegou e sentou-se na mesa ao lado. Suspirou. Fê-lo tantas vezes e tão fundo que conseguiu a minha atenção. Foi o bastante. Endireitou a posição da cadeira de modo a ficar mais próximo. Sorriu. Pediu um cigarro. Dei-lho. Não tardou a contar-me a sua vida.

‒ O meu problema são estes dentes de merda!

Mirei. Uma boca combalida com hematomas e roxidões suspeitos, um sorriso feio, esburacado, agarrando dois dentuços sobreviventes, tortos como estacas de uma paliçada em ruínas.

 ‒ O que lhe aconteceu? Caiu?

O sorriso, que não lhe saíra do rosto, aprofundou-se. No refluxo dos lábios, viam-se agora as gengivas dolorosas, inflamadas, rubicundas, onde cicatrizes hemorrágicas testemunhavam uma enfermidade que nunca eu vira.

‒ Não. Tenho é a boca toda lixada!

Duas pessoas quiseram confirmá-lo. A segunda era uma senhora devota da Marie Claire. Exibiu aquele ar de quem acabou de engolir comida estragada. O homem sorriu-lhe também. Não desgostou que nos tivéssemos interessado por si, que o olhássemos de soslaio, que franzíssemos o nariz, que lhe reprovássemos a vida. O homem (via-se!) apreciava que o mundo lhe estendesse uma mão. Que o mundo lhe estendesse ao menos um dedo!

‒ Isto está a dar cabo de mim, sabe?

E pausou.

‒ No outro dia o meu irmão levou-me lá a casa um bife. Mas não pude comê-lo, por causa destes dentes de merda… O que vale é que estavam ali uns gatos… Atirei-lho. Só comi o arroz e as batatas…

E pausou de novo.

‒ Se você me pudesse arranjar outro cigarrito!

Dei-lho. A rapariga do café aproximou-se. Veio explicar ao homem que não podia importunar os clientes. Que precisava de ir-se embora. Que não voltasse. Que o patrão não o queria lá. E o homem fez uma momice, um sorriso doido, como se aquilo acabado de escutar fosse um jogo e ele tivesse principiado a divertir-se muito. O meu caderno, escancarado como uma porta inútil, registava meia página de coisas cuidadas, frases com brilho, ideias promissoras. Não podia agora compreendê-las. O homem fez uma vénia com as mãos juntas, como quem faz a súplica a um santo. A rapariga expirou pelo nariz, contrariada. Recolheu a chávena na mesa entretanto abandonada pela senhora impertinente e regressou ao interior. Uma hora de trabalho (como foi possível?) reduzida num piscar de olhos à inconsistência das cinzas… O homem quis ser agradável (lia-se-lhe nos olhos a vontade de querer saber). Perguntou.  

‒ O senhor é daqui?

‒ Sim. Quer dizer, mais ou menos…

Apontou para o isqueiro. Emprestei-lho. As mãos muito magras deram-me a impressão de estar a conversar com um moribundo. Arrisquei.

‒ Isto faz-lhe mal! Não devia fumar tanto!

‒ Não, não… Os cigarros são porreiros, tiram-me as dores todas…

Um casal chegou. A rapariga julguei reconhecê-la da televisão: sem devolver qualquer vestígio de empatia pelo mundo, devorou o espaço em redor multiplicando sons. Percebi que o meu refúgio naquela esplanada havia cessado. Uma nova espreitadela ao caderno fez crescer a labareda da frustração. Detestei-me. Detestei o desgraçado que, cadeira com cadeira, continuava a sorrir e a soprar o fumo numa espécie de êxtase. Detestei a fulana arrogante. Fiz menção de sair e de me despedir.

‒ Bem, muito gosto em conhecê-lo!

O homem levantou-se para me apertar as mãos.

‒ Muito gosto, meu senhor!

O desconforto foi indizível. A beata queimava-lhe quase os dedos. A tarde tornara-se subitamente fria, como muitas vezes sucede na passagem das estações. Consultei o telemóvel, ocorreu-me um contacto, teclei. Do outro lado, uma voz recebeu-me, acalentou-me. O homem erguera-se. Apanhava desprevenido o casal. Pedia tabaco. A rapariga, elegante, com a cigarette espetada entre o indicador e o médio, continuava a falar sem lhe voltar o rosto. Do outro lado do telemóvel, a voz confirmava o encontro para as cinco. O carro continuava ali mesmo, sonolento como um cachorro. Entrei. Abri os vidros. A rapariga da televisão exaltava-se, arremessava com desprezo a beata para o jardim. E o homem mergulhava. Como um nadador, como um pai aflito, o homem lançava-se em sua perseguição. O desconforto foi enorme. Ele, triunfante, saltando no relvado como um doido, estrafegando com os dois dentuços, esforçava-se por reacender o corisco. Do outro lado do telemóvel, a voz despediu-se. Fiquei mudo. A voz perguntou-me se tinha ouvido. Disse que sim. Estava bem, sim. Estava combinado. E o homem desapareceu como tinha vindo. Em direção ao nada.

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Pessimismos e happy ends: um guião, o filme

Sven Fennema
Fotografia de Sven Fennema

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Acordei esta manhã encavalitado num ponto de interrogação: porque somos todos tão pessimistas? Todos, sim! Ou quase todos! A esmagadora maioria dos espécimes da espécie! Pessimistas, avessos à ideia de sorte, descrentes de que o happy-end ainda se vende nos mercearias antigas e nas lojas gourmet, aziagos, autorrebaixadores, soturnos. Porquê?

Eu sou um dos tais.

A vida deu-me sempre com o rolo da massa e é caso para dizer que me habituei a caçar o meu quinhão de felicidade e a fugir através de buracos impossíveis na parede. Sou dos que acham que isto não vai passar, que isso não tem remédio, que aquilo não se resolve num passe de mágica. Sou dos que pedem por favor que não me massajem as costas com meia dúzia de palmadas amigas e o ego com duas frases exclamativas. Sou dos que pensam que a minha equipa ainda vai sofrer um golo nos cinco minutos derradeiros do jogo, que desaba num desânimo invencível se ela tem só meia hora para empatar a porcaria do jogo. É-me inato descrer na possibilidade de um golo salvador a meia hora do fim.

Eu sou dos tais, dos derrotistas, desse partido principal de homens e mulheres calejados.

E, contudo, acordei esta manhã a meditar em factos inegáveis e objetivos históricos. Escapei com menos de dois anos aos ataques da bronquite e da asma. Escapei a um atropelamento aos doze. Mais tarde a um aparatoso acidente de viação. Escapei a uma peritonite apendicular aos vinte e um. Escapei, aliás, a quase todas as ites que vêm certificadas na legislação (otites, gengivites, gastroenterites, a uma parotidite infeciosa). Escapei intacto a todas as turmas de todas as escolas por onde passei, como professor, formador, estagiário ou simples assessor pedagógico (muitos afundaram nestas selvas não cartografadas). Escapei a manobras partidárias e a habilidades políticas. Escapei aos desgostos, às perdas, às renúncias e aos vexames. Escapei até ao tribunal terrível do espelho e aos castigos da consciência, algures no alçapão da alma (ou do córtex cerebral). Ainda não morri neste país demente e corrupto!

Pessimista até dizer chega.

E, porém, esta manhã acordei rodeado por um silêncio de pássaros cantando (peço encarecidamente que saiam e batam a porta, se se põem para aí, do outro lado da parede branca, a assinalar-me paradoxos, oxímoros e nonsenses). Acordei desempregado, mas saudável. Abatido pela fadiga, mas depois de uma noite intensa de escrita. Triste, mas feliz. Porque acordei. Porque aqui estou, diante vós, confessando-me pessimista em greve, derrotista em crise, se calhar (afinal) talvez um pouco, um pouco mais, de otimista, vencedor até aqui nos palcos em que a vida e a morte debateram posições e se convenceram de que o seu jogo de xadrez deve continuar.

Acordei agarrado à bengala de uma profunda meditação.

Porque nos acontece (não raro) desatarmos a questionar tudo. E quando digo tudo, quero dizer tudo. Mais ou menos como quando decidimos arrumar umas coisas na garagem e damos por nós a remodelar a casa, a pintar as paredes, a trocar de carro. E eu acordei assim, triste, feliz, falando em voz alta para mim mesmo em silêncio, perguntando, respondendo, questionando.

Que raio! Porque não levantar o traseiro e fazer alguma das coisas que sempre quisemos ter feito? Porque não meter na cabeça de uma vez por todas que somos tipos fantásticos, com humor, charme, inteligência? Porque arrastar, como uma sombra, como o peso de uma maldição, a crença de que acabaremos mal, enxotados, sarnentos, lambendo as feridas? Porque não preferir a luz limpa de uma narrativa boa, com final memorável? Se os amigos não faltam? Se a cabeça, mesmo muitas vezes no meio das nuvens, continua acesa e a fervilhar de ideias? Se o coração cicatrizou de todas as punhaladas e ainda bate?

Talvez tenhamos nascidos gauches como Carlos Drummond de Andrade, mas não nascemos avessos à simpatia, nem à confiança, nem à certeza de que quem iniciou este filme (com um argumento de tal qualidade) o pode terminar melhor ainda. Deus, os deuses, as leis da Física Quântica, todas as leis do universo, parecem ter sabido sempre acomodar as coisas. Admitamo-lo: a própria existência é um acidente feliz.

Bebo, por isso, o meu café matinal com aquela sensação de que algo em mim aconteceu, de que qualquer coisa transmudou, como quando um grânulo de areia sai finalmente de dentro da peúga atormentada. De resto, o mais extraordinário dos epílogos, como num filme de mestre, é aquele sobre o qual nada sabemos, de que pouco suspeitamos, em que nos resta esperar. E este, o da vida, não duvidemos, é obra para limpar os óscares todos!

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Café

Fotografia de Abílio Silveira

Logo pela manhãzinha o cheiro do café espalha-se pela casa, intenso e delicado como os pés de uma criança. Minha mãe sempre acordou cedo. Foi ela a primeira pessoa no mundo a quem admirei o vício. Fá-lo fresco, de borra, todas as manhãs, na velhinha cafeteira de alumínio: a água ferve, depois são duas colheres e meia (das de sopa) bem medidas com a preciosa farinha escura lá dentro; a mexedura produz o característico som de castanholas e também uma pasta em espiral, girando firmemente como as primeiras galáxias, isto até a borra assentar. Quando na superfície se acumula uma película semelhante a uma nata vulcânica, a mesma colher levanta-a e deixa respirar o café que pode, finalmente, ser vertido numa chávena (das grandes). Minha mãe gosta de esmigalhar a broa, juntar-lhe o açúcar, submergir tudo e comer a mistura como se come o melhor dos acepipes. Isto é feito numa tigela (ou malga) das do caldo. É um pequeno-almoço minhoto, generoso, excelente para a diabete e para a azia… Eis um original retrato da infância.

O vício, como a cor dos olhos, uma fortuna ou determinadas doenças, herda-se. Eu sou herdeiro do vício de café! Herdeiro da malga com broa e dos rituais do preparo da borra. Herdeiro do vício que não admite censura ao vício: que mal pode haver em gostar-se assim de café? Herdeiro da vontade de conversar sob o protetorado da chávena! Entretanto fui introduzindo rituais novos à conta das máquinas: no tempo da saudosa de cápsulas, fazia-me abastecer delas como o poeta Teixeira de Pascoes se abastecia de onças de tabaco («Dá para aguentar uma guerra!», explicava ele); agora, neste tempo de máquina de cachimbo, encho a despensa de sacos de cinco quilos de sólido, granulado, aromático café torrado, normal ou seleto, da Colômbia ou africano, em cujo interior gosto de mergulhar a volúpia dos dedos, como se o fizesse de facto num alforge de ouro. Eis um retrato decalcado da infância.

Entre o primeiro e o segundo retratos há toda uma longa caminhada. Estou certo que em algum momento desta história pessoalíssima do café me seduziu um terceiro retrato: o de Fernando Pessoa, composto por Almada Negreiros, em 1954. Nele vemos a pose imortalizante do poeta, que anda há seis décadas a inspirar a pose dos inspirados da literatura: a mão direita do autor de Mensagem poisando sobre uma folha manuscrita, a esquerda segurando um cigarro aceso, uma caneta atravessando horizontalmente o papel, o número dois da revista Orpheu e sobretudo o recipiente do açúcar e a chávena de café! Nesse retrato vemos o homem de génio emoldurado por uma profusão de linhas direitas, quadrados e losangos em geométrica e estudada correção, numa referência limpa ao êxtase do conhecimento. Pessoa, o frio e empedernido Pessoa, assim nos ficou morando na memória fotográfica, como o poeta das finas arquiteturas mentais, o príncipe da intelectualidade! Mas felizmente, do poeta sobra também nesse retrato o fumo do seu cigarro e a chávena do seu café! Suporto-lhe menos bem a excelente poesia do que esse gesto raro, prosaico, humano, de apego ao vício!

Ora, começando nos anos da faculdade, e sem pretender imitar a personagem de Almada Negreiros, também eu me venho surpreendendo não poucas vezes de caneta e caderno, cigarro e chávena de café em cima da mesma mesa de madeira, em incontáveis cafés do país e do estrangeiro. É uma vinheta clássica. Na história da humanidade, sucedeu à efígie do poeta de cabeça adornada de louros a estampa do poeta entranhado numa penumbra de salão, pensativo, dessacralizado e ruinoso, bebendo (entre outros preciosos estimulantes) o néctar dos trópicos. Pelo menos desde Baudelaire essa é a figura de moeda que andamos todos perseguindo, de norte a sul do universo… Vejo-me nas esplanadas do Porto, no fim (ou mesmo durante o período) das aulas, a garatujar reflexões de densíssima atividade cerebral. Imagino o olhar circunspeto dos vizinhos de mesa, a curiosidade do turista ocasional, a admiração da menina que me serve. Aí estou eu, senhores e senhoras, munido de caneta de aparo, caderno de capa dura impecavelmente branco, uma cabeça aturdida pela tropelia de André Breton, escrevendo compenetrado, fluente, ruidoso, escrevendo material que tive o decoro de destruir atempadamente, antes mesmo do enxovalho dos amigos e da crítica. Julgo que à aura ajudava a barba crescida, a boina e o sobretudo pretos de fazenda. Suponho que a postura vaga, o semblante alienado, os maços de Marlboro completavam o figurão. Estamos em 1997 ou 98. Atingia o paroxismo do pedantismo. Perdi muito por isso! Mas o café, o café, senhoras e senhores, era já então o mais honesto que tinha no ofício não oficial de escritor! Hélas! Foi ele que me levou a conhecer tascos, botequins e casas de chá, onde encontrei alguns “deuses mundanos”, alguns dos mais notáveis habitantes do “Parnaso terreal”, para me servir de José Craveirinha, mas sobretudo onde encontrei pela primeira vez o trilho solitário do homem abençoado, ou amaldiçoado (nunca saberei destrinçar), pela sina da palavra, pela emulação ao retrato de Pessoa.

Depois vieram as viagens. Do Café Gijon, em Madrid (onde Ruy Belo entreteceu palavrosamente alguns dos seus melhores poemas), ao magnífico Lobkowicz, em Praga; do Majestic, no Porto, aos soberbos terraços mediterrânicos, protegidos ao mesmo tempo por panos e lonas listradas e pela literatura de Camus, Naguib Mahfouz, e Amin Maalouf, anda o meu coração vagueando de novo. O café, não especialmente o tabaco, foi sempre o meu melhor companheiro de jornada intelectual. Ele e o poema serviram-se amplamente de mútuo pretexto ao longo dos anos; são já como independentes de mim; são já como duas almas livres que combinam encontrar-se de quando em vez, usando para o efeito o meu corpo, como se usa um bufete de hotel em dias de secreto oaristo! São como dois entes, «ligados ou desligados por nós obscuros» (como creio que Salah Stétié disse), que continuamente me encantam e escravizam!

Nos últimos tempos tenho-me ocupado com o silêncio. Gosto de contemplar. Descobri com o admirável historiador José Mattoso o dom e as vantagens da contemplação! Todo o imenso chinfrim das palavras impressas, lá chega a manhã em que o descobrimos, incomoda! Todo o imenso alarido das nossas palavras torna-se, por contraste com a pureza do silêncio, uma vileza, um desperdício, uma tontaria. Estou na biblioteca vazia da minha Vila. Vazia de gente, não de bons livros. É um espaço pequeno, contíguo ao bar. Pelas frinchas, por baixo da porta, chega o aroma subtil e contínuo do café: considero, com a certeza de um teorema testado muitas vezes, que jamais hei de livrar-me disto. Apetecem-me de imediato, como extensões mecânicas da minha pessoa, a chávena e a caneta… Esforço-me sobre-humana, desesperadamente, por vencer ambas. A contemplação exige distância, exige a semiobscuridade da cela monacal! Exige abstinência, sacrifício!

Mas como na chávena de Pessoa, como na malga de broa de minha mãe, como facilmente depreenderá o leitor, acabo esta crónica sorvendo até ao último suspiro de uma dádiva, o café, o bom, demoníaco, maravilhoso café que me trouxe a estas palavras de elogio e, perdoe-se-me a blasfémia, de veneração! E então, sim, «algures, as coisas calam-se / Leves de tão duras», notou-o ainda Stétié.

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Delírios

Paula Rego, «A Sereiazinha», 2003
Paula Rego, «A Sereiazinha», 2003

           

Na cabeça enviesada de um doente passam-se coisas inexplicáveis, coisas como decerto as que descreve o senhor Brás Cubas nas suas Memórias Póstumas, labirínticas coisas que são o eco da batalha entre o devaneio e a razão, que é como quem diz entre a febre e doses cavalares de ben-u-ron.

Por qualquer motivo da minha compleição física, sou achacado a delírios, tão mais indescritíveis quanto fascinantes: sou amiúde um pássaro sobrevoando a minha casa e o meu bairro, vendo ao pormenor os vizinhos a assar pimentos e sardinhas nos respetivos fogareiros e a fazer-me sinais ameaçadores lá de baixo, como se fosse intenção minha roubar-lhes o petisco. Outras vezes, sou outra vez criança e fujo da escola, porque a minha professora tem uns horríveis lábios vermelhos e quer-me por força beijar. Não é raro ser abordado por personagens históricas, que sobem da tumba para me fazerem interrogatórios ou pedir conselhos. Já houve um que me veio pedir a devolução de dinheiro que alegadamente me emprestara… De todos o mais espantoso foi o velho Marquês de Pombal, que insistia roubar-me o telemóvel e ameaçava despir-me em público se não lho entregasse…

Recuperado destes episódios de bullying psicótico, pude rir ou ficar seriamente convencido de ser semilouco. Mas a loucura é uma caso muito mais complexo do que se pensa; quem assim o afirma é Emil Kraepelin, que diz também «alto lá e para o baile»: nem todos os fenómenos de perturbação mental são propriamente um caso de psicose, demência, neurastenia, histeria ou esquizofrenia. A febre não faz do seu portador um louco, como o livro de filosofia debaixo do braço de um estudante não o torna propriamente um filósofo.

Assim sendo, incapaz de decidir-me quanto ao que me cabe de manifestamente louco, ou ao que é exclusivamente do domínio da febre, comecei a anotar algumas dessas fabulosas aventuras, convencido de poder servir-me delas como delas se serviram nos seus livros Baudelaire ou Borges, embora num caso o absinto, no outro a cegueira tivessem dado uma ajuda preciosa no aprofundamento e correção das ideias. Simplesmente, não pude divisar até hoje como me seria útil descrever num poema o quanto fugi do sinistro Popeye (que me aterrorizou a infância e não só por causa dos espinafres odiosos), ou como dar seguimento numa novela às façanhas conjuntas com Zorro, o meu maior herói masculino até ter-se abandalhado com Antonio Banderas…

A verdade é que os meus delírios possuem pouca literatura: é lá coisa que se aproveite Dom Sebastião ser apanhado a fumar e a faltar à lição de piano? E que dizer de Afonso Henriques a levar dois estalos por faltar ao respeito à catequista? «Aqui quem manda sou eu, meu menino» — e di-lo com uma faca em riste. Não poderia explicar numa história da minha lavra porque leva o primeiro rei de Portugal um par de bofetadas da catequista, ou porque lhe chama essa terrível figura de avental «meu menino», ou porque recita ela a catequese empunhando uma faca de degolar galinhas…

Paula Rego, acostumada a visões deste calibre, dir-me-ia existir qualquer coisa de freudiano nos meus textos. E eu haveria de escutá-la com comedimento, com pundonor, com excitação. Porque me convenceria de habitar em mim, afinal, algum ADN de artista. Mas era preciso que eu soubesse multiplicar literatura a partir desses achados piréticos. Infelizmente, a única coisa que consigo é esgotar a paciência àqueles que me trazem chá e panos molhados à cama, me trocam os lençóis e me obrigam a mudar de pijama.

Pela minha parte, recupero de um fim de semana em que me fui tomado por um mistura de constipação e de gastroenterite (infundado o receio de gripe A). Na minha cabeça, como no areal repleto de despojos de A Sereiazinha, que Rego pintou em 2003, jazem incontáveis e incongruentes fantasmas de episódios mentais, que em breve serão recolhidos pelas vigorosas mãos dos meus enfermeiros domésticos.

Porque definitivamente há circunstâncias com que lido mal e de que tiro escasso partido. Invejo quem o faz, ou fez, como o grande Machado de Assis, por exemplo, que levou longe o talento de fazer render a contrariedade da doença. Mas os grandes são grandes, e com a devida vénia me retiro… para a sopa de arroz.

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