O pintor

pintor e mar
Fotografia de Ilnur Kalimullin
para a Céu

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Em setembro tudo é melhor cogitou o pintor. Preciso de limpar os telhados, de varrer os pátios, de cuidar do jardim. O pó do mar, o lixo dos turistas e o sol de julho e agosto trouxeram o caos a este meu esconderijo. O homem considerou com devoção o seu ateliê repleto de telas, caixas de bisnagas e pincéis, suportes de madeira e mesas em esquadria. Era um pequeno reino de linhas enfileiradas e cruzadas em fanática harmonia, em aprumo absoluto.

O homem colocou o seu caderno de esquissos sobre a mais estreita das três mesas e por cima do caderno depôs a lapiseira que recebera uma vez das mãos de Giorgio Morandi. Preciso de dar um destino a todos estes estudos. Talvez aproveite algum deles, ou talvez precise de os apagar a todos da memória. Nada de imprestável deve permanecer tempo demais na nossa existência pensou.

Com o homem vivia um gato. Era um animal asseado e silencioso, a quem o dono confidenciava histórias verdadeiras e ocasionalmente poemas por si compostos enquanto pintava ou aparava as sebes, ou aspergia detergente no pano de abrilhantar os vidros.

Com o felino e com o pintor viviam discos de jazz e música erudita, uma biblioteca de razoável dimensão e uma coleção de cachimbos. O homem não fumava, o que não queria dizer que não gostasse de morder a boquilha e de encher-lhe a cabeça com tabaco importado. Imaginava o prazer do lume a incinerar as folhas de Black Cavendish e de poder refastelar-se com o aroma e o paladar enxuto que delas haveria de ascender à saliva prolixa. Era um estranho ser de gostos extravagantes.

Em setembro tudo é mais humano. Preciso de descer ao reduto das coisas, de ir ao banco, de comprar vinho e enlatados, de aparafusar e olear dobradiças, de responder a Picasso e a Pasolini.

Com o homem, o gato e os discos de John Coltrane, viviam três acácias gigantes voltadas para o Mediterrâneo. O homem gostava bastante desta trindade arbórea no alto da ravina onde vivia. Só elas apreciavam o azul como ele sabia apreciar, destituídas de pressa, hipocrisia ou subterfúgios. Olhavam o azul infinitamente e em profundidade, numa, em duas, em três pinceladas imortais. Preciso de fazer as pazes com o azul disse o homem de si para si mesmo.

Setembro vinha no caminho dos dias. Era o seu tempo predileto. Era o tempo ideal para renascer ou assim.

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